O professor de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa, Luís Tomé, alerta que a guerra entre Rússia e Ucrânia, que espoletou, em definitivo, esta quinta-feira, "é mais arriscada do que qualquer conflito da Guerra Fria".

"Já não temos na Europa uma cortina de ferro totalmente intransponível. É tudo muito mais fluído. Na Guerra Fria tínhamos duas superpotências que controlavam todos os atores. Hoje, ninguém controla o vasto conjunto de fatores e atores por completo. Isso provoca incidentes que saem do controlo do cálculo", refere, à Renascença.

O especialista em geopolítica explica que, neste momento, há muitos cenários que podem servir de "um rastilho bastante perigoso" para gerar um confronto direto entre Rússia e as forças da NATO.

"A Rússia pode parar o apoio logístico militar da NATO à Ucrânia através de bombardeamentos. Pode fazer algo em relação aos países bálticos, alegando defesa da diáspora russa. E podem acontecer conflitos em fronteiras da Ucrânia com países NATO que podem ser focos de rastilho", indica o professor de Relações Internacionais.

"Os principais atores são racionais, mas a racionalidade é frequentemente ultrapassada pela emoção e pelas variáveis que não controlam", acrescenta.

E, no caso de um confronto direto entre soldados norte-americanos e soldados russos, é "evidente que facilmente pode escalar para um cenário nuclear".

"É isto que, creio eu, todos tentarão evitar a todo o custo", afirma, Luis Tomé.

"Putin quer reforçar posição da Rússia à mesa das negociações"

O especialista em geopolítica diz "toda a narrativa" de Vladimir Putin é confundir a Rússia com a União Soviética e o Antigo Império Russo.

"A Rússia não é a União Soviética. É uma de 14 partes, apesar de ser, obviamente, a maior. Mas para ele, Rússia e União Soviética é tudo igual", refere.

O professor de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa realça que, em 2018, antes de ser reeleito, o presidente da Rússia resumiu a sua visão histórica que, hoje, usa para legitimar a invasão à Ucrânia.

"Putin disse que a Rússia perdeu 23.8% do seu território nacional, 48.5% da sua população, 41% do seu PIB, 34.9% do seu potencial industrial e 46.44% da sua capacidade militar. Se Putin diz que a Rússia perdeu o que é seu, acha-se no direito de o recuperar", aponta.

Esta leitura de que todo o espaço ex-soviético é parte da Rússia lança incerteza para o que será, verdadeiramente, o objetivo político de Putin, segundo o especialista em geopolítica.

O presidente da Rússia pode querer apenas apoiar as duas repúblicas separatistas, se é para ficar com a Ucrânia e limitar-se aí ou se é até para ir para "uma visão mais ampla".

Independentemente dos objetivos finais, Luis Tomé acredita que, a curto-prazo, Putin "quer reforçar a posição da Rússia à mesa das negociações".

"Se não cederam à ameaça de usar a força, usa a força para cederem", explica.

China pode ter janela de oportunidade para ocupar Taiwan

E no meio de um conflito complexo na Ucrânia e que pode levar a confronto direto entre NATO e Rússia, a China "é um ator muito importante".

O professor de Relações Internacionais indica que tudo o que a Rússia tem feito "é articulado com a China" e que o regime chinês é a "alternativa para a Rússia atenuar o impacto das sanções económicas".

"Isso não implica, no entanto, que a China entre numa guerra do lado da Rússia, por causa da Ucrânia. Mas também não será mediador com o Ocidente, porque há uma grande hostilidade entre EUA e China", explica.

E o conflito na Ucrânia pode ter uma consequência fora da Europa: A China pode aproveitar para iniciar uma invasão militar definitiva a Taiwan e emular o que a Rússia está a fazer com o território ucraniano.

"Dependendo da avaliação da China à tenacidade ocidental face à Rússia. Imagine-se o que é a Rússia a invadir em grande escala a Ucrânia e a China a tomar para si Taiwan, ao mesmo tempo", aponta Luis Tomé.

"Teria um risco enorme de confrontação entre as grandes potências do mundo. Seria dos piores cenários", acrescenta.