"O modo displicente como alguns dos nossos políticos tratam a retirada da vida a um ser humano é condenável e assustador". Na semana em que o Parlamento vota o texto de substituição que legaliza a morte medicamente assistida, o ex-Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, insurge-se contra esta "prioridade" dos deputados.

Numa declaração, a pedido da Renascença, Cavaco diz não ter qualquer dúvida sobre a inconstitucionalidade da lei da eutanásia, que deverá ter aprovação garantida pelo Parlamento. "A legalização da eutanásia não respeita o espírito da Constituição".

Após a votação na especialidade, e depois da votação final global em plenário, a lei segue para Belém para avaliação do Presidente da República, sendo que Marcelo Rebelo de Sousa na última legislatura vetou o diploma por duas vezes, um deles precisamente por inconstitucionalidade.

O ex-chefe de Estado alerta que "autorizar por lei um médico a matar outra pessoa é um salto no desconhecido extremamente perigoso", salientando que "em alguns países europeus têm sido reportados casos de pressões sobre idosos e doentes para que aceitem ser mortos. Os mais velhos e os doentes são os mais frágeis".

A votação do diploma na especialidade irá ocorrer na quarta-feira na comissão de assuntos constitucionais, liberdades e garantias, depois de ter sido adiada durante o mês outubro, primeiro a pedido do Chega, a seguir pela mão do PS.

Arrumado que está o processo orçamental, que suspendeu os trabalhos parlamentares durante um mês, os deputados voltam à carga, e Cavaco lamenta a posição da Assembleia da República que "ao legalizar a eutanásia, contra o parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida e os pareceres das Ordens dos profissionais de saúde, abre a porta à morte de pessoas em que é duvidosa a sua autorização, como se tem verificado aliás noutros países".

Carregando nas tintas, o ex-Presidente critica a gestão de prioridades do Parlamento: "Num país como Portugal, com um dos piores riscos de pobreza e exclusão social da União Europeia e sem uma rede de cuidados paliativos a que os doentes de famílias mais desfavorecidas possam ter acesso, num Portugal em que se acentua o empobrecimento em relação aos outros países, a prioridade dos deputados é a legalização da prática da eutanásia, autorizar um médico a matar outra pessoa".

Cavaco Silva remata que isto "é surpreendente, mas é verdade" e que se trata de "mais um sinal da deterioração da qualidade da nossa democracia. São palavras duras, mas há que ter a coragem de dizê-las", conclui.

Esta terça-feira há reunião da direção da bancada do PS - partido que detém a maioria absoluta dos deputados no Parlamento - e aí será decidido se os socialistas ainda apresentam alterações ao texto de substituição sobre a morte medicamente assistida, a tempo da votação na especialidade marcada para a manhã de quarta-feira.

À Renascença fonte da direção socialista refere que "em condições normais" o texto será mesmo votado e que a bancada reservou os primeiros dias desta semana para uma "leitura atenta" do diploma "para não haver incongruências", no sentido de evitar o veto de Marcelo e "antes que se arranjasse um problema a posteriori".