O número de processos de infração por assédio sexual ou moral nas empresas abertos pela Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) é "absolutamente insignificante" face à realidade conhecida, admite a inspetora-geral, Fernanda Campos, em declarações ao programa Em Nome da Lei da Renascença.

Segundo a ACT, a maior parte das intervenções diz respeito ao incumprimento de códigos de conduta e mecanismos de denúncia exigidos por lei nas empresas com mais de sete trabalhadores.

Em matéria de assédio moral, nos últimos três anos, a autoridade instaurou 55 processos de infração. Contudo, no que toca aos casos de assédio sexual, os números são bastante reduzidos: entre 2020 e 2021, foram abertos apenas dois processos.

A inspetora-geral da ACT, Fernanda Campos, frisa que os processos não espelham a realidade: "[São] absolutamente insignificantes perante aquilo que conhecemos".

"Cultura" de autoculpabilização

Em declarações ao programa Em Nome da Lei, da Renascença, Fernanda Campos aponta que este desfasamento se deve a uma "cultura" de autoculpabilização no momento em que a pessoa sofre de assédio.

"'Se calhar fui eu que não fiz a coisa certa. O patrão é um brincalhão, é mesmo assim, o colega é mesmo assim'. Não. Quando alguma destas atitudes frequentes deixam o trabalhador ou a trabalhadora desconfortável, deve denunciar."


Já António Garcia Pereira corrobora o desajustamento dos números apontado pela inspetora-geral. O advogado e professor universitário ilustra o caso recorrendo aos relatórios do Eurofound, os quais, por extrapolação, admitem que até meio milhão de portugueses sofre ou já sofreu assédio moral no local de trabalho.

"Basta olhar para os números que acabámos de ver referidos pela senhora inspetora-geral para ver que é ridículo, que é uma minoria absolutamente ínfima que é objeto de atuação, com vista ao apuramento da responsabilidade contraordenacional."

Universidades são "caldo perfeito" para situações de assédio

As universidades e instituições de investigação são, "provavelmente, o ecossistema mais dado a que haja situações de quase todos os tipos de assédio", diz o presidente do Sindicato Nacional do Ensino Superior, José Moreira.

"Porquê? Porque existem enormes relações de poder desigual."

De acordo com o professor universitário, existe um desequilíbrio nas relações em meio académico, indicando exemplos, como a "dependência que os alunos têm em relação aos professores, aquando do lançamento das notas", ou entre investigadores e orientadores.

"Temos aqui o caldo perfeito para que haja situações de assédio", lamenta.

No entanto, à semelhança do cenário nas empresas, a investigação sobre estes casos de assédio deixa a desejar. Segundo o dirigente, o sindicato recebe, "pelo menos, entre 20 e 30 queixas por por ano relativas a processos de assédio moral"

Contudo, as denúncias "quase nunca avançam". "Posso dizer que se avançarem uma ou duas por ano, provavelmente já estarei a exagerar."

José Moreira defende que o mecanismo de denúncia dos assédios em meio universitário tem de ser expedito e garantir independência, dando segurança às vítimas, mas também a quem é denunciado, para que não possa haver "caça às bruxas".

No entanto, a realidade não augura sinais positivos nesse sentido, como os 50 casos de assédio denunciados na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Inês Ferreira Leite, professora universitária, denuncia o clima de intimidação na instituição que era exercido sobre os alunos, com "discursos tremendistas" feitos pelos próprios docentes.

"Houve professores que iniciaram as aulas plenárias a dizer: 'O que é que vocês estão a fazer? Vocês vão acabar com a reputação da faculdade, não vão arranjar emprego'".

A também advogada penalista realça que o discurso perpetrado não fazia sentido, tentando confundir "falta de caráter de alguns docentes com a falta de qualidade de uma instituição, que são coisas completamente diferentes".

Por consequência, Inês Ferreira Leite admite ser natural que os alunos tivessem medo de denunciar novos casos de assédio: "Claro que não há ambiente para um para as pessoas se sentirem livres para denunciar. Mas isto foi deliberadamente feito. Eu não posso acreditar que foi sem querer".

Por outro lado, a advogada revela ainda não haver uma "vontade efetiva de investigar por parte da universidade", perante casos em que "não é difícil" apurar as circunstâncias em que se deram as situações de assédio.

E dá um exemplo concreto: "Um docente tinha 10 denúncias. Dessas 10, é extremamente provável que quatro, cinco, seis ou sete sejam iguais - de pessoas diferentes, mas a quem fez exatamente a mesma coisa. Então, também não é difícil saber - porque nessas denúncias era identificado o docente - a que turmas é que deu aulas, quando, em que salas, falar com os alunos... Não é difícil!"