"A maior perseguição à Igreja nasce do pecado dentro dela". O abuso de menores em oito países

Na véspera de a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra Crianças na Igreja em Portugal apresentar as suas conclusões, a Renascença destaca oito países onde já houve investigações, condenações e resignações na sequência de denúncias de abuso sexual por padres, religiosos e leigos.

12 fev, 2023 - 09:08 • Joana Azevedo Viana (texto), Salomé Esteves (gráfico)



Foto: Miguel Rato/RR
Foto: Miguel Rato/RR

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Boston foi o epicentro do primeiro escândalo de abuso sexual de menores e encobrimento na Igreja. Desde 2002, quando a equipa de jornalistas do Boston Globe iniciou a publicação de uma série de reportagens com acusações a padres da arquidiocese — que acabariam por levar à resignação do cardeal Bernard Law — os crimes de abuso cometidos por membros da Igreja ganharam atenção mundial.

Em vários países foram criadas comissões independentes para analisar o fenómeno, nalguns casos a nível nacional; em alguns desses países, as Conferências Episcopais encomendaram também investigações independentes ao fenómeno dos abusos.

Espanha, o país que mais recentemente abriu uma investigação, em março de 2022, deverá conhecer as conclusões do inquérito até ao final do ano.

Em Portugal, a Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais contra Crianças na Igreja vai apresentar o seu relatório final esta segunda-feira, seguindo exemplos como o de França, Irlanda ou Alemanha.

Desde o chamado "Caso Spotlight" em Boston, a questão dos abusos de menores na Igreja atravessou três papados. Em 2010, no voo que o levou de Roma a Lisboa para a sua visita pastoral a Portugal, Bento XVI declarou aos jornalistas: "Hoje vemos, de forma verdadeiramente assustadora, que a maior perseguição à Igreja não vem de inimigos externos, mas nasce do pecado dentro da Igreja."

Desde que foi eleito, o Papa Francisco aprofundou a reforma iniciada pelos antecessores, entre outras coisas ordenando o fim do segredo pontifício em casos de abuso sexual e a criação de comissões em cada diocese do mundo para se investigarem e prevenirem estes crimes na Igreja, tornando a denúncia obrigatória.


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EUA – os casos de Boston e da Pensilvânia

A investigação ao abuso de crianças por membros da arquidiocese de Boston, no estado norte-americano do Massachusetts, foi uma pedrada no charco a nível mundial. No início da década de 1980 já tinha havido algumas acusações públicas de abusos contra padres nos EUA, todas isoladas e sem consequências.

Em junho de 2001, quando o cardeal Bernard Law apresentou resposta em tribunal a uma série de alegações contra um antigo padre da sua arquidiocese, John Geoghan, o abuso sexual de menores por elementos eclesiásticos não era um tópico de discussão, nem no país nem no resto do mundo. Foi nesse documento judicial que jornalistas do Boston Globe detetaram a admissão de que, quando nomeou o padre Geoghan para a paróquia de St. Julia, em Weston, o cardeal Law sabia que o pároco tinha sido acusado de abusar sexualmente de sete rapazes da mesma família na sua anterior paróquia.

"Penso que todos tínhamos a noção, até antes de publicarmos a nossa primeira história, que este era um assunto explosivo com um potencial de impacto enorme", dizia em 2010 Michael Paulson, antigo correspondente de assuntos religiosos do Boston Globe, que ajudou o jornal a ganhar o prémio Pulitzer em 2003.

No famoso Caso Spotlight, a partir de janeiro de 2002, o Boston Globe publicou mais de 800 artigos a revelar a forma sistémica como padres da arquidiocese abusaram sexualmente de crianças ao longo de décadas e como diferentes bispos, incluindo Bernard Law, encobriram os crimes. No final desse ano, o cardeal Law apresentou a sua resignação.

Em dois anos desde a publicação do primeiro artigo, mais de 500 vítimas apresentaram acusações formais contra cerca de 150 padres e ex-párocos de Boston, gerando 250 processos-crime. Mais tarde, a própria diocese entrou em bancarrota na sequência das indemnizações que pagou às vítimas, num total de 85 milhões de euros.

Na década seguinte, em 2018, muito graças à investigação do Boston Globe, a Pensilvânia tornava-se palco de outra grande investigação ao fenómeno dos abusos na Igreja. Num relatório compilado por um grande júri liderado pela procuradoria-geral do estado, foi revelado que, durante mais de 70 anos, houve abusos e encobrimento sistémicos na Pensilvânia, com o Supremo Tribunal estatal a identificar mais de mil vítimas e mais de 300 sacerdotes acusados.

"Já houve outros relatórios de abusos sexuais de crianças no seio da Igreja Católica, mas nunca a esta escala", lê-se no documento. "Para muitos de nós, as histórias mais antigas aconteceram noutros sítios, muito longe. Agora sabemos a verdade: aconteceu em todo o lado."

Irlanda

Um primeiro relatório abrangente sobre o tema dos abusos na Igreja foi divulgado na Irlanda em 2009, mas as primeiras denúncias públicas de abusos por elementos da Igreja na Irlanda datam de 2005.

Em outubro desse ano, aquele que foi o primeiro inquérito oficial ao fenómeno no país, especificamente na diocese de Ferns, condado de Wexford, detalhou não só a gestão de 100 alegações de abuso e violação contra 21 párocos desde os anos 1960 mas também como o bispo responsável, ao invés de expulsar os padres, se limitou a transferi-los.

A esta investigação seguiu-se o primeiro relatório da Comissão de Inquérito ao Abuso de Crianças, dividido em cinco volumes e com um sumário executivo com 43 conclusões e 20 recomendações, no qual eram postas a descoberto décadas de abusos de crianças por padres em instituições católicas, incluindo orfanatos e reformatórios.

Com base na análise de denúncias de crimes cometidos entre os anos 1930 e os anos 1970, foi apurado que gerações de padres, freiras e irmãos católicos espancaram, fizeram passar fome e nalguns casos abusaram sexualmente de crianças nessas instituições, ou por outro lado encobriram esses crimes.

Das cerca de 25 mil crianças que passaram por estas instituições ao longo desse período, cerca de 1.500 apresentaram queixas à comissão, que registou 253 alegações de abuso sexual feitas por rapazes e 128 por raparigas.

Em novembro do mesmo ano, a mesma comissão, coordenada pelo Supremo Tribunal irlandês, revelava o Relatório Murphy sobre Abuso Sexual na Igreja, focado nas suspeitas de abusos na arquidiocese de Dublin entre 1975 e 2004, no qual se denunciava a forma "obsessiva" como a Igreja encobriu casos de abuso durante décadas, pondo a sua própria reputação acima do bem-estar das crianças.

Em 2011, um novo relatório sobre abusos na diocese de Cloyne, no condado de Cork, identificava 19 padres e revelava que líderes da igreja continuavam a encobrir os crimes quase até ao presente, uma década depois de terem sido implementadas regras de proteção de menores, incluindo o bispo John Magee, com a cumplicidade do Vaticano.

O então primeiro-ministro irlandês, Enda Kenny, acusou a Santa Sé de obstruir as investigações ao abuso sexual de menores por padres. Em resposta, o Vaticano convocou o seu embaixador na Irlanda. No ano anterior, o Papa Bento XVI já tinha aceitado a resignação de Magee, que se tornou bispo emérito. Em 2018, numa visita a Dublin, o Papa Francisco pediu desculpa pelo "fracasso das autoridades eclesiásticas em lidar adequadamente com estes crimes".

Ao todo, as investigações da comissão independente revelaram cerca de 15 mil casos de abuso sexual de menores por membros da Igreja ao longo de mais de oito décadas na Irlanda.

Logo em 2009, as descobertas levaram à condenação de um sacerdote de Dublin, Thomas Naughton, a três anos de prisão por cinco crimes de abuso cometidos entre 1982 e 1984. Alguns casos continuam ainda nas mãos da Justiça.


Inglaterra e País de Gales

Foi em 2011 que o fenómeno do abuso sexual de menores ganhou dimensão no Reino Unido, envolvendo não um padre ou leigo mas um apresentador da BBC, Jimmy Savile. Com a sua morte nesse ano, começaram a amontoar-se acusações de abusos, com um inquérito a concluir que Savile aproveitou a sua fama e o seu trabalho em instituições de caridade para cometer crimes contra pelo menos 60 crianças.

No âmbito desse inquérito, em 2015 a então ministra da Administração Interna, Theresa May, ordenou a criação de uma comissão independente para investigar o abuso sexual de menores (IICSA) em instituições religiosas e do Estado, que até hoje publicou 62 relatórios com base em entrevistas a mais de 1.500 vítimas, vários deles sobre o fenómeno dos abusos na Igreja de Inglaterra e também na Igreja Católica.

Quanto à Igreja Anglicana, a religião maioritária em Inglaterra e Gales, um relatório publicado em outubro de 2020 acusa a instituição de ter promovido uma cultura que a transformou num “local onde os abusadores se podiam esconder” e onde os “agressores eram mais apoiados do que as vítimas”, levantando obstáculos à denúncia “que muitas vítimas não conseguiram ultrapassar”.

Apesar de não ter sido possível estabelecer o número real de alegações ou denúncias feitas, houve 390 condenações de agressores associados à Igreja Anglicana entre 1940 e 2018. Nesse ano, foram registados 490 potenciais novos incidentes de abuso sexual de menores, mas apenas 44% foram comunicados às autoridades.

Já no relatório dedicado à Igreja Católica, e ecoando as conclusões da investigação na Irlanda, esta é acusada de ter colocado "a sua reputação acima do bem-estar das crianças durante décadas", com o seu propósito moral a ser "traído tanto por aqueles que na Igreja abusaram sexualmente de crianças, como por aqueles que fecharam os olhos" a esses crimes.

Na auditoria a cerca de 340 instituições católicas, foram "verificados 3.072 incidentes de alegado abuso cometidos por 936 agressores" entre 1970 e 2015. Em entrevista à Renascença, a professora Alexis Jay, que liderou o inquérito, indica que daí resultaram apenas 133 condenações.

Desde 2016, adianta Jay, houve mais de 100 alegações reportadas por ano. Ainda em janeiro, o padre católico Dennis Finbow foi condenado a prisão por abusar de uma criança na década de 1980.

Austrália


Vítima de abuso Darren Chalmers num banco com numerosos cartazes à porta do local de reunião da Comissão Real de Respostas Institucionais ao Abuso Sexual de Crianças em Sidney, Austrália, 1 de Março de 2016. Foto: David Gray/Reuters
Vítima de abuso Darren Chalmers num banco com numerosos cartazes à porta do local de reunião da Comissão Real de Respostas Institucionais ao Abuso Sexual de Crianças em Sidney, Austrália, 1 de Março de 2016. Foto: David Gray/Reuters

Criada em 2013, a Comissão Real de Respostas Institucionais ao Abuso Sexual de Crianças apurou até 2017 que houve abuso de menores em 964 igrejas, lares e escolas geridas pela Igreja católica no país.

Os dados que a comissão compilou e tornou públicos abarcaram não apenas a realidade em instituições religiosas mas também estatais, com base em testemunhos de quase oito mil vítimas de abuso sexual, cerca de 60% delas em instituições religiosas. Quando terminou trabalhos em 2017, a comissão tinha encaminhado 2.562 casos para as autoridades.

Na Austrália, como noutros países, ficou também provado o encobrimento dos abusos e as dificuldades enfrentadas pelas vítimas para denunciarem os crimes e conseguirem falar sobre o que lhes aconteceu.

As denúncias da Comissão Real acabaram por conduzir à detenção do cardeal George Pell, até hoje o mais alto cargo do Vaticano a ser condenado por abuso sexual de crianças. Foi precisamente um ano depois da publicação do relatório que as acusações da testemunha J (como são identificadas as vítimas que pretendem manter o anonimato) levaram à condenação de Pell a seis anos de prisão.

O cardeal Pell, que viria a morrer a 10 de janeiro deste ano em Roma, aos 81 anos, desempenhava funções de secretário para a Economia, a terceira figura mais importante do Estado do Vaticano, quando em 2017 foi formalmente acusado de cinco agressões sexuais a dois menores, cometidas nos anos 1990.

Considerado culpado em dezembro de 2018, foi condenado por abusos cometidos na igreja de St. Patrick quando era arcebispo de Melbourne, com a sentença a ser confirmada em agosto de 2019.

Ao fim de 404 dias na prisão, saiu em liberdade em abril de 2020, quando o Tribunal Supremo da Austrália reverteu a sentença por considerar que não ficou provado, em primeira instância, que Pell tivesse cometido qualquer crime.

Alemanha

Foi em 2018 que a Conferência Episcopal Alemã revelou o primeiro relatório sobre abusos na Igreja, compilado por uma equipa composta por investigadores independentes das universidades de Mannheim, Heidelberg e Giessen.

Numa análise a mais de 38 mil documentos, abarcando 27 dioceses alemãs e alegados crimes cometidos entre 1946 e 2014, foram revelados 3.776 casos de abuso sexual de crianças e adolescentes, praticados por mais de 1.600 membros da Igreja.

Na altura, os académicos alertaram que os números reais deverão ser bastante superiores, entre outros motivos porque nem todas as dioceses permitiram o acesso à informação ou porque, nos casos de documentos mais antigos, algumas informações não estavam completas ou tinham sido apagadas.

No seguimento destas denúncias, uma série de dioceses alemãs decidiram pedir a escritórios de advogados para investigarem alegações de pedofilia e abusos. No contexto dos inquéritos pedidos pela Igreja, em 2021 foi revelado que na maior diocese da Alemanha, Colónia, pelo menos 386 crianças foram vítimas de crimes de abuso entre 1946 e 2018, com o Vaticano a ordenar uma investigação aos casos.

A arquidiocese de Colónia viria a protagonizar nesse ano uma polémica, quando foi dada a oportunidade a mais de 400 jornalistas e outros interessados de inspecionarem o relatório, mas sem autorização para tirarem fotografias ou fotocópias do documento e durante um curto período de tempo.

“Anteriormente, em janeiro de 2021, o Cardeal Woelki já tinha tentado que os jornalistas apenas tivessem acesso aos nossos relatórios se assinassem um acordo de confidencialidade, mas os jornalistas presentes rejeitaram a exigência”, indica à Renascença o escritório de advogados Westpfahl Spilker Wastl, responsável por essa e auditorias a outras dioceses e arquidioceses na Alemanha — também convidado a aconselhar a comissão independente responsável por investigar abusos na Igreja portuguesa, cujo relatório será divulgado a 13 de fevereiro.


Sob pressão, o arcebispo de Colónia acabaria por apresentar um pedido de resignação ao Papa Francisco, que em setembro desse ano ordenou que Woelki se retirasse para "um período de oração e reflexão" até março de 2022, altura em que voltou a assumir funções.

Na sequência de um outro relatório sobre abusos na arquidiocese de Munique e Freising, divulgado em janeiro de 2022 pela mesma firma de advogados, também o arcebispo Reinhard Marx enviou um pedido de resignação ao Papa, numa carta em que assumia: "Nós falhámos." O pedido não foi aceite.

Na sequência destes relatórios, o Ministério Público alemão anunciou há um ano a abertura de processos para investigar 42 membros da igreja ainda vivos. Desde então, vários novos dados foram surgindo, incluindo uma análise da Universidade de Muenster na respetiva diocese, publicada em junho, a dar conta de que pelo menos 600 jovens foram vítimas de abuso sexual.

Foram publicados até à data 15 pareceres de especialistas sobre o tema dos abusos sexuais na Igreja alemã, concretamente em sete dioceses e arquidioceses, incluindo a da capital, Berlim. Em preparação estão relatórios sobre as dioceses de Essen, de Eichstätt e Trier e as arquidioceses de Freiburg e Osnabrück.

Ainda não foi compilado um relatório completo sobre os abusos na Igreja em toda a Alemanha, nem noutras denominações religiosas e instituições do país.

Até ao momento, a Igreja alemã pagou mais de 40 milhões de euros em danos compensatórios a mais de 1.800 vítimas de abusos, "um procedimento que está longe de estar concluído", indica a Westpfahl Spilker Wastl.

O pagamento de indemnizações foi iniciado em 2010 pelas dioceses alemãs, num limite de até 5 mil euros em compensações. Esse valor foi atualizado para um máximo de 50 mil euros alguns anos depois.

Espanha

O El País foi quem lançou a primeira investigação a suspeitas de abuso sexual de menores envolvendo padres, religiosos e leigos de instituições católicas em Espanha. Iniciada em 2018, desde então já produziu três grandes relatórios, tendo revelado até agora mais de 900 casos de abuso.

Na sua lista mais recente, o El País dá conta de que pelo menos 39 bispos espanhóis terão ocultado casos de abuso de menores, tendo tido conhecimento dos crimes na altura em que estavam a ser praticados ou posteriormente. Destes, 14 estão vivos. As revelações têm gerado alguma tensão entre o jornal e a Igreja espanhola.

Quatro anos depois da primeira reportagem sobre o tema, o Parlamento aprovou em março a criação de uma comissão independente para investigar o fenómeno, na mesma semana em que a Conferência Episcopal Espanhola apresentou o seu primeiro relatório interno sobre abusos.

A cargo do escritório de advogados Cremades-Calvo Sotelo, a auditoria legal independente revelou que, desde a criação de um canal de denúncias em 2020, foram recebidas 506 queixas, na sua maioria acusações com mais de 30 anos, sendo que em 103 casos os acusados já tinham morrido.

A sociedade escolhida pela Igreja espanhola para investigar as denúncias prepara-se para apresentar um relatório final em breve. A aconselhá-la está a firma alemã de advogados Westpfahl Spilker Wastl, que em resposta escrita à Renascença adianta que o parecer de peritos em Espanha deverá ser divulgado "até ao final deste ano".

Em setembro do ano passado, também num primeiro relatório, a comissão criada pelo Parlamento identificou 201 queixas de abuso. Composta pelo provedor da Justiça, representantes das autoridades, vítimas de abusos e membros da Igreja, esta comissão iniciou trabalhos em julho e deverá apresentar um relatório final ainda este ano.

França

Foi em outubro de 2021 que os franceses foram confrontados com os primeiros números compilados por uma comissão independente dedicada a investigar o abuso sexual de crianças e jovens por membros da Igreja — ainda que, anos antes, houvesse já movimentações na sociedade francesa para denunciar estes crimes e expor responsáveis eclesiásticos por abuso ou de encobrimento.

Entre essas destaca-se o surgimento da "La parole libérée" ("A palavra libertada", numa tradução livre), associação criada na cidade de Lyon para denunciar abusos cometidos pelo padre Bernard Oreynat, capelão dos escuteiros, durante acampamentos de jovens entre as décadas de 1970 e 1990.



Os relatos de 10 das 35 vítimas conhecidas fizeram manchetes no país e levaram o pároco a admitir os crimes (à data, a maioria já tinha prescrito). Em 2020, Oreynat era condenado a cinco anos de prisão efetiva e com ele o arcebispo de Lyon, o cardeal Philippe Barbarin, condenado a seis meses de prisão por omissão dos abusos, que viria depois a pedir ao Papa Francisco para ser afastado da vida eclesiástica.

As sentenças tiveram lugar um ano antes de a Comissão Independente sobre Abusos Sexuais na Igreja Católica Francesa (CIASE) — criada a pedido da Conferência de Religiosas e Reliogosos Franceses (CORREF) e da conferência de bispos — divulgar os resultados da sua auditoria a crimes de abuso sexual de menores ocorridos desde 1950. A comissão foi criada em 2019, no mesmo ano em que teve lugar a cimeira do Vaticano sobre o abuso sexual de menores.

Composta por advogados, sociólogos e médicos, num total de 22 especialistas, a equipa recolheu testemunhos através de um email e de um número de telefone criados para denúncias. Durante um período de mais de 70 anos, concluiu a CIASE, calcula-se que pelo menos 216 mil menores terão sido abusados no país por padres e outros membros da Igreja católica, sendo que o número real poderá mesmo ultrapassar as 330 mil vítimas, se forem tidos em conta os abusos perpetrados por leigos, como catequistas, e se se tiver em consideração que várias vítimas terão morrido sem nunca terem quebrado o silêncio.

Ao todo, mais de três mil membros do clero e leigos terão abusado de menores entre os 10 e os 13 anos de idade em França durante esse período, com a maioria das denúncias a remontar às décadas de 1950 e 60. Os números estrondosos levaram o Papa Francisco a assumir a "terrível realidade" com "profunda tristeza".


Ativistas denunciam inação do Governo francês e do sistema judicial em relação aos casos de abusos na Igreja francesa, exibindo nomes de vítimas de abusos que puseram fim à vida. Foto: Anna Margueritat / Hans Lucas / Reuters
Ativistas denunciam inação do Governo francês e do sistema judicial em relação aos casos de abusos na Igreja francesa, exibindo nomes de vítimas de abusos que puseram fim à vida. Foto: Anna Margueritat / Hans Lucas / Reuters

Com a divulgação do relatório, a Igreja francesa decidiu pagar indemnizações às vítimas de abusos sexuais, à semelhança do que aconteceu na Alemanha, compensações com valores entre os 5 mil e os 60 mil euros dependendo da gravidade dos casos.

Para além disso, sob recomendação da CIASE, foram constituídos grupos de trabalho sobre temas fulcrais como a formação dos membros do clero e o acompanhamento das vítimas e dos autores dos abusos. Esperam-se conclusões em abril deste ano, enquanto continuam a surgir novas denúncias em França.

Há três meses, pelo menos 11 bispos ou ex-bispos foram indiciados pela justiça civil ou canónica em França pelo seu envolvimento em casos de abuso sexual de menores, entre eles Monsenhor Michel Santier, que o Vaticano já tinha sancionado por "abuso espiritual" em 2021. Ao anunciar as suas acusações formais, a Conferência Episcopal Francesa assegurou que todos irão enfrentar processos judiciais ou disciplinares.

Chile

O escândalo de abusos no seio da Igreja chilena levou em 2018 a que todos os 34 bispos católicos do Chile apresentassem resignação, pedindo perdão pela "dor causada às vítimas, ao Papa, ao povo de Deus e ao nosso país, por graves erros e omissões que cometemos".

A resignação em massa — de acordo com o Vaticano, a primeira na história da Igreja — surgiu depois de o Papa Francisco ter acusado os bispos de terem falhado em investigar denúncias de abusos, permitindo que houvesse destruição de provas e encobrimento de padres agressores que eram mudados de sítio para sítio.

Nessa reunião, Francisco disse ter ficado "perplexo e envergonhado" perante o falhanço sistémico da Igreja chilena em combater os abusos de crianças.

Há vários anos que a Igreja lidava com polémicas de abuso no país, que ganharam novo fôlego em janeiro de 2018, quando o Papa defendeu publicamente o bispo Juan Barros Madrid, por ele nomeado para a diocese de Osorno em 2015, face a acusações de ter encoberto repetidos abusos de menores cometidos pelo padre Fernando Karadima.

Na sequência destas denúncias, o Papa acabou por ordenar uma investigação durante a qual foram recolhidos testemunhos de 64 pessoas, resultando num relatório de 2.300 páginas no qual se detalhavam falhas por parte de toda a hierarquia da Igreja chilena.

As conclusões desse inquérito levaram Francisco a pedir desculpa pelos "graves erros" cometidos e a convocar a reunião de emergência de três dias com os bispos no Vaticano. O Papa acabou por aceitar a resignação de três bispos, entre eles Juan Barros.

Até maio de 2019 tinham sido abertas no Chile investigações a 166 denúncias, envolvendo 221 acusados, incluindo 10 bispos, e 248 vítimas, 131 delas crianças à data dos alegados abusos.

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