EUA – os casos de Boston e da Pensilvânia
A investigação ao abuso de crianças por membros da arquidiocese de Boston, no estado norte-americano do Massachusetts, foi uma pedrada no charco a nível mundial. No início da década de 1980 já tinha havido algumas acusações públicas de abusos contra padres nos EUA, todas isoladas e sem consequências.
Em junho de 2001, quando o cardeal Bernard Law apresentou resposta em tribunal a uma série de alegações contra um antigo padre da sua arquidiocese, John Geoghan, o abuso sexual de menores por elementos eclesiásticos não era um tópico de discussão, nem no país nem no resto do mundo. Foi nesse documento judicial que jornalistas do Boston Globe detetaram a admissão de que, quando nomeou o padre Geoghan para a paróquia de St. Julia, em Weston, o cardeal Law sabia que o pároco tinha sido acusado de abusar sexualmente de sete rapazes da mesma família na sua anterior paróquia.
"Penso que todos tínhamos a noção, até antes de publicarmos a nossa primeira história, que este era um assunto explosivo com um potencial de impacto enorme", dizia em 2010 Michael Paulson, antigo correspondente de assuntos religiosos do Boston Globe, que ajudou o jornal a ganhar o prémio Pulitzer em 2003.
No famoso Caso Spotlight, a partir de janeiro de 2002, o Boston Globe publicou mais de 800 artigos a revelar a forma sistémica como padres da arquidiocese abusaram sexualmente de crianças ao longo de décadas e como diferentes bispos, incluindo Bernard Law, encobriram os crimes. No final desse ano, o cardeal Law apresentou a sua resignação.
Em dois anos desde a publicação do primeiro artigo, mais de 500 vítimas apresentaram acusações formais contra cerca de 150 padres e ex-párocos de Boston, gerando 250 processos-crime. Mais tarde, a própria diocese entrou em bancarrota na sequência das indemnizações que pagou às vítimas, num total de 85 milhões de euros.
Na década seguinte, em 2018, muito graças à investigação do Boston Globe, a Pensilvânia tornava-se palco de outra grande investigação ao fenómeno dos abusos na Igreja. Num relatório compilado por um grande júri liderado pela procuradoria-geral do estado, foi revelado que, durante mais de 70 anos, houve abusos e encobrimento sistémicos na Pensilvânia, com o Supremo Tribunal estatal a identificar mais de mil vítimas e mais de 300 sacerdotes acusados.
"Já houve outros relatórios de abusos sexuais de crianças no seio da Igreja Católica, mas nunca a esta escala", lê-se no documento. "Para muitos de nós, as histórias mais antigas aconteceram noutros sítios, muito longe. Agora sabemos a verdade: aconteceu em todo o lado."
Irlanda
Um primeiro relatório abrangente sobre o tema dos abusos na Igreja foi divulgado na Irlanda em 2009, mas as primeiras denúncias públicas de abusos por elementos da Igreja na Irlanda datam de 2005.
Em outubro desse ano, aquele que foi o primeiro inquérito oficial ao fenómeno no país, especificamente na diocese de Ferns, condado de Wexford, detalhou não só a gestão de 100 alegações de abuso e violação contra 21 párocos desde os anos 1960 mas também como o bispo responsável, ao invés de expulsar os padres, se limitou a transferi-los.
A esta investigação seguiu-se o primeiro relatório da Comissão de Inquérito ao Abuso de Crianças, dividido em cinco volumes e com um sumário executivo com 43 conclusões e 20 recomendações, no qual eram postas a descoberto décadas de abusos de crianças por padres em instituições católicas, incluindo orfanatos e reformatórios.
Com base na análise de denúncias de crimes cometidos entre os anos 1930 e os anos 1970, foi apurado que gerações de padres, freiras e irmãos católicos espancaram, fizeram passar fome e nalguns casos abusaram sexualmente de crianças nessas instituições, ou por outro lado encobriram esses crimes.
Das cerca de 25 mil crianças que passaram por estas instituições ao longo desse período, cerca de 1.500 apresentaram queixas à comissão, que registou 253 alegações de abuso sexual feitas por rapazes e 128 por raparigas.
Em novembro do mesmo ano, a mesma comissão, coordenada pelo Supremo Tribunal irlandês, revelava o Relatório Murphy sobre Abuso Sexual na Igreja, focado nas suspeitas de abusos na arquidiocese de Dublin entre 1975 e 2004, no qual se denunciava a forma "obsessiva" como a Igreja encobriu casos de abuso durante décadas, pondo a sua própria reputação acima do bem-estar das crianças.
Em 2011, um novo relatório sobre abusos na diocese de Cloyne, no condado de Cork, identificava 19 padres e revelava que líderes da igreja continuavam a encobrir os crimes quase até ao presente, uma década depois de terem sido implementadas regras de proteção de menores, incluindo o bispo John Magee, com a cumplicidade do Vaticano.
O então primeiro-ministro irlandês, Enda Kenny, acusou a Santa Sé de obstruir as investigações ao abuso sexual de menores por padres. Em resposta, o Vaticano convocou o seu embaixador na Irlanda. No ano anterior, o Papa Bento XVI já tinha aceitado a resignação de Magee, que se tornou bispo emérito. Em 2018, numa visita a Dublin, o Papa Francisco pediu desculpa pelo "fracasso das autoridades eclesiásticas em lidar adequadamente com estes crimes".
Ao todo, as investigações da comissão independente revelaram cerca de 15 mil casos de abuso sexual de menores por membros da Igreja ao longo de mais de oito décadas na Irlanda.
Logo em 2009, as descobertas levaram à condenação de um sacerdote de Dublin, Thomas Naughton, a três anos de prisão por cinco crimes de abuso cometidos entre 1982 e 1984. Alguns casos continuam ainda nas mãos da Justiça.