Como os Papas lidaram com os abusos sexuais na Igreja

Desde a primeira grande denuncia nos Estados Unidos, os Papas João Paulo II, Bento XVI e Francisco pediram perdão às vítimas e implementaram medidas cada vez mais duras e rigorosas. Portugal vai conhecer na próxima segunda-feira o relatório da comissão independente sobre os abusos na Igreja.

10 fev, 2023 - 17:21 • Aura Miguel , Maria Costa Lopes (edição vídeo)



Como os Papas lidaram com os abusos sexuais na Igreja

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Há 20 anos, o problema dos abusos sexuais no seio da Igreja começou a assumir dimensão pública quando um jornal norte-americano denunciou um conjunto de crimes praticados por membros do clero e o seu encobrimento feito por alguns bispos.

Desde então, o apuramento da verdade revelou uma terrível realidade que, nos últimos pontificados de João Paulo II, Bento XVI e Francisco, mereceu medidas cada vez mais duras e rigorosas.

João Paulo II e a “tolerância zero”

Em 2002, o jornal “Boston Globe” iniciou o processo de denúncia de abusos sexuais cometidos por membros do clero. A investigação do jornal americano revelou que, na Arquidiocese de Boston, durante décadas, os casos de abusos sexuais praticados por padres permaneceram escondidos.

A divulgação desencadeada por este jornal dos EUA levou a uma onda de novas denúncias. Formaram-se associações e multiplicaram-se processos jurídicos (só em Boston houve 250 processos-crime). Mais do que uma diocese faliu devido às indemnizações, incluindo a de Boston.

Em maio de 2002, o Papa João Paulo II chamou ao Vaticano todos os cardeais norte-americanos para uma reunião sobre a questão dos abusos no seio da Igreja. No final, o Papa declarou que “não há lugar no sacerdócio e na vida religiosa para os abusadores de menores”.

Foi neste contexto que nasceu a expressão “tolerância zero”.


Papa João Paulo II fala aos cardinais norte-americano na sua livraria privada a 23 de abril de 2002. No final, o Papa declarou que “não há lugar no sacerdócio e na vida religiosa para os abusadores de menores”. Foto: Vatican Media
Papa João Paulo II fala aos cardinais norte-americano na sua livraria privada a 23 de abril de 2002. No final, o Papa declarou que “não há lugar no sacerdócio e na vida religiosa para os abusadores de menores”. Foto: Vatican Media

Poucos meses depois, em julho, durante a Jornada Mundial da Juventude em Toronto, João Paulo II disse aos jovens que “o dano que alguns presbíteros e religiosos causam aos jovens e às pessoas vulneráveis enche-nos de um profundo sentimento de tristeza e de vergonha”.

Já em 1993, o Papa polaco tinha anunciado aos bispos dos Estados Unidos que, no caso de crimes sexuais, se deviam aplicar as penas canónicas, incluindo a expulsão do sacerdócio. Em 1994, reafirmou que não podia haver qualquer tolerância para os abusos sexuais sobre menores. E, em 2001, no motu proprio ”Sacramentorum sanctitatis tutela”, (documento de iniciativa pontifícia sobre a tutela da santidade dos sacramentos) obrigava o bispo e o superior religioso a denunciar todos os crimes sexuais cometidos pelo clero contra menores de 18 anos.

A dimensão do problema foi-se agravando, ao ponto de o cardeal Ratzinger, uma semana antes da morte de João Paulo II, afirmar publicamente, nas reflexões da Via Sacra de Sexta-feira Santa, no Coliseu de Roma, “quanta sujidade há na Igreja, precisamente entre aqueles que, no sacerdócio, deveriam pertencer completamente a Cristo”. E, dirigindo-se a Deus, reconhece como “as vestes e o rosto tão sujos da vossa Igreja horrorizam-nos. Mas somos nós mesmos que os sujamos!”

Bento XVI endurece as medidas

Após a sua eleição, Bento XVI reitera a condenação destes crimes, aplica duras penas a sacerdotes abusadores, reforça as medidas contra os abusos e a sua disponibilidade em encontrar as vítimas e pedir perdão. Ao mesmo tempo, Bento XVI considerou urgente “uma mudança de mentalidade para combater o fenómeno dos abusos, a começar pela escuta e proximidade com as vítimas às quais se deve sempre pedir perdão.

Em abril de 2008, em resposta às perguntas dos jornalistas sobre a questão dos abusos, no voo Roma-Washington, o Papa alemão responde: “É um grande sofrimento para a Igreja nos Estados Unidos e para a Igreja em geral, e para mim pessoalmente, o facto de que tudo isto tenha acontecido. Quando leio os relatórios destes acontecimentos, tenho dificuldade de compreender como foi possível que alguns sacerdotes tenham podido falhar deste modo na missão de levar alívio, de levar o amor de Deus a estas crianças. Sinto-me mortificado e faremos o possível para garantir que isto não se repita no futuro”.


Papa Bento XVI fala aos jornalistas a bordo do avião papal, a caminho de Washington, a 15 de Abril de 2008. No voo, o Papa abordou o escândalo dos abusos e disse que a igreja estava determinada a manter os pedófilos fora do sacerdócio. Foto: Max Rossi/Reuters
Papa Bento XVI fala aos jornalistas a bordo do avião papal, a caminho de Washington, a 15 de Abril de 2008. No voo, o Papa abordou o escândalo dos abusos e disse que a igreja estava determinada a manter os pedófilos fora do sacerdócio. Foto: Max Rossi/Reuters

Bento XVI sintetiza, assim, os três níveis de ação que viria a desenvolver no seu pontificado: o primeiro é o da justiça. “Excluiremos rigorosamente os pedófilos do ministério sagrado: é absolutamente incompatível e quem é realmente culpado de ser pedófilo não pode ser sacerdote. A este primeiro nível podemos fazer justiça e ajudar as vítimas, que estão profundamente provadas”. Depois, há o nível pastoral. “As vítimas terão necessidade de se curar, de ajuda, assistência e reconciliação. Este é um grande compromisso pastoral e sei que os Bispos e os sacerdotes e todos os católicos nos Estados Unidos farão o possível para ajudar, assistir, curar”, acrescenta.

Com efeito, o Papa ordenou várias inspeções nos seminários, para assegurar aos seminaristas uma profunda formação espiritual, humana e intelectual. “Só pessoas sadias poderão ser admitidas ao sacerdócio e só pessoas com uma profunda vida pessoal em Cristo e que tenham também uma profunda vida sacramental”, afirmou defendendo a necessidade de “um discernimento muito severo, pois é mais importante ter bons sacerdotes do que ter muitos”. E por fim, o terceiro nível: “poder fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para sarar estas feridas.”

“Excluiremos rigorosamente os pedófilos do ministério sagrado: é absolutamente incompatível e quem é realmente culpado de ser pedófilo não pode ser sacerdote", sintetizou Bento XVI.

Dois anos depois, a questão dos abusos atinge gravemente a Irlanda. Em março de 2010, o Papa escreve uma Carta aos católicos do país, lida publicamente em todas as paróquias. Bento XVI reconhece que houve erros graves na forma como os bispos lidaram com as alegações de pedofilia. E diz que os culpados dos abusos "devem responder perante a Deus e perante os tribunais, pelas ações pecadoras e criminais que cometeram".

Manifestando uma grande tristeza pelos casos de abuso que continuam a revelar-se, Bento XVI aborda, de novo o assunto com os jornalistas, em 2010, a caminho de Lisboa, “os ataques ao Papa e à Igreja vêm não só de fora, mas que os sofrimentos da Igreja vêm justamente do interior da Igreja, do pecado que existe na Igreja” e, meses depois, na viagem em direcção à Escócia. “É difícil compreender como esta perversão do ministério sacerdotal tenha sido possível. É triste também que a autoridade da Igreja não tenha sido suficientemente vigilante nem rápida, decidida, em tomar as medidas necessárias. Por tudo isto estamos num momento de penitência, de humildade, e de renovada sinceridade, como escrevi aos bispos irlandeses”, refere. E, neste contexto, o Papa volta a sublinhar três aspectos. O primeiro é “como podemos reparar e o que podemos fazer para ajudar estas pessoas a superar o trauma, a reencontrar a vida, a voltar também a ter confiança na mensagem de Cristo.”

O segundo aspeto, é o problema das pessoas culpadas: “a justa pena é excluí-las de qualquer possibilidade de contacto com os jovens, porque sabemos que se trata de uma doença e a livre vontade não funciona onde há esta doença”, disse Bento XVI. E o terceiro aspecto é “a prevenção na educação, na escolha dos candidatos para o sacerdócio: estar muito atentos para que, segundo as possibilidades humanas, sejam excluídos casos futuros”.

Em 2012, os episcopados de todo o mundo foram convidados a adoptar um conjunto de diretivas, a partir do Código de Direito Canónico que definia duras sanções contra um clérigo que abuse sexualmente de menores, que podem chegar à suspensão do exercício do sacerdócio e à demissão do estado clerical.

A “dor e vergonha” de Francisco

O Papa Francisco herdou este pesado dossier do pontificado anterior. Em março de 2014, cria a Comissão para a Tutela de Menores e, em agosto desse mesmo ano, escreve uma carta aos fiéis do mundo inteiro após ser divulgado um relatório onde se refere a existência de “pelo menos 1.000 sobreviventes, vítimas de abuso sexual, de poder e de consciência, nas mãos de sacerdotes durante, aproximadamente, setenta anos”.

Na viagem aos Estados Unidos da América, em setembro de 2015, Francisco encontrou-se em privado com três mulheres e dois homens, vítimas de abusos sexuais. O Papa confessou “vergonha” por ver que “pessoas que tinham a seu cargo o cuidado terno desses pequenos os tenham violado e causado danos profundos”, E acrescentou: “Lamento-o profundamente. Deus chora”.

Francisco afirmou que os “crimes e pecados de abusos sexuais a menores não podem ser mantidos em segredo durante mais tempo”. E comprometeu-se a uma “zelosa vigilância” da Igreja Católica “para proteger os menores”. E acrescentou: "Comprometo-me a seguir o caminho da verdade, onde quer que possa levar. O clero e os bispos terão que prestar contas das duas ações, quando abusarem ou não protegerem os menores”.

"Crimes e pecados de abusos sexuais a menores não podem ser mantidos em segredo durante mais tempo", sublinhou Francisco.

Em 2016 o Papa reafirma a política de ‘tolerância zero’ na Igreja Católica para casos de abuso sexuais e critica os bispos que ignoram ou encobrem estas situações. “Um bispo que muda de paróquia um sacerdote quando se reconhece um caso de pedofilia é um inconsciente e a melhor coisa que pode fazer é apresentar a renúncia. Está claro?”, disse aos jornalistas, no regresso a Roma, durante o voo a partir da Ciudad Juárez, onde concluiu a sua visita ao México.

Em agosto de 2018, Francisco publica uma nova Carta, numa altura em que voltam a surgir centenas de casos de abuso sexual no seio da Igreja Católica e o seu encobrimento, nos EUA, na Irlanda, no Chile e Austrália. "Com vergonha e arrependimento, reconhecemos, como comunidade eclesiástica, que não estivemos onde devíamos ter estado, que não agimos de forma atempada, percebendo a magnitude e a gravidade dos danos causados a tantas vidas”, escreve o Papa.

Francisco lamenta o "sofrimento vivido por muitos menores por causa de abusos sexuais, de poder e de consciência cometidos por um número notável de clérigos e pessoas consagradas" e refere-se à impossibilidade de reparar os danos retroactivamente. Mas promete fazer tudo para " gerar uma cultura capaz de evitar que essas situações não só não aconteçam, mas que não encontrem espaços para serem ocultadas e perpetuadas”.


Papa Francisco reza durante a Cimeira sobre Abusos Sexuais, com os presidentes de todas as conferências episcopais do mundo, a 21 de fevereiro de 2019 Foto: Vicenzo Pinto/EPA
Papa Francisco reza durante a Cimeira sobre Abusos Sexuais, com os presidentes de todas as conferências episcopais do mundo, a 21 de fevereiro de 2019 Foto: Vicenzo Pinto/EPA

Mais tarde, em 2019, convoca para o Vaticano uma Cimeira com os presidentes de todas as conferências episcopais do mundo. Sob o tema “A proteção dos menores na Igreja”, 200 bispos e líderes religiosos da Igreja Católica discutiram durante quatro dias a crise dos abusos sexuais. Nesta cimeira, o Papa estabelece 21 pontos que podem ser considerados um guião para os bispos e superiores de ordens religiosas poderem lidar mais corretamente com casos de abusos sexuais. E, no discurso de encerramento, Francisco deixa oito orientações para se combater o fenómeno dos abusos na Igreja:

  1. A tutela das crianças
  2. A seriedade impecável
  3. Uma verdadeira purificação
  4. A formação
  5. Reforçar e verificar as diretrizes das Conferências Episcopais
  6. Acompanhar as pessoas abusadas
  7. O mundo digital
  8. O turismo sexual

Poucos meses depois, em dezembro de 2019, Francisco aboliu o segredo pontifício para os casos de violência sexual, abuso de menores e pedo-pornografia. Desde então, as denúncias, testemunhos e documentos processuais sobre casos deste tipo, conservados nos arquivos e departamentos da Santa Sé e nas dioceses, podem ser fornecidos a magistrados dos respetivos países, sempre que solicitados, no respeito dos respetivos ordenamentos jurídicos. O Papa determina ainda que “não pode ser imposto algum vínculo de silêncio” às vítimas e às testemunhas.

“Que amadureça em todos a consciência do dever de denunciar os abusos às autoridades competentes e de cooperar com eles em atividades de prevenção e combate”, apela Francisco.

Francisco decide também atualizar as ‘Normas sobre os crimes reservados à Congregação para a Doutrina da Fé’, com o objetivo de “tornar mais eficaz a ação judicial”. As penas previstas estendem-se agora não só aos membros do clero e religiosos, mas também a todos os fiéis que tenham lugares de responsabilidade em estruturas da Igreja. Por outro lado, reduz-se o número de situações em que aplicação de sanções fica “ao critério da autoridade”, ou seja, do bispo local. Uma nota da Santa Sé acrescenta: “Isto por si só não é suficiente para conter o fenómeno, mas constitui um passo necessário para restaurar a justiça, reparar o escândalo, corrigir o infrator”.

O Papa exige que os bispos recorram ao sistema penal sempre que necessário, tendo em conta os três fins que o tornam necessário na sociedade eclesial: o restabelecimento das exigências de justiça, a correcção do infractor e a reparação dos escândalos. “Que amadureça em todos a consciência do dever de denunciar os abusos às autoridades competentes e de cooperar com eles em atividades de prevenção e combate”, apela Francisco.

O Santo Padre assume a intenção de “reforçar ainda mais o quadro institucional” para prevenir e combater qualquer forma de violência física ou mental ou abuso, negligência, ou exploração”. As novas orientações determinam que “qualquer abuso ou maus-tratos” contra menores ou contra pessoas vulneráveis sejam “eficazmente” investigados, respeitando o direito da vítima e suas famílias a ser “acolhido, ouvido e acompanhado”. Francisco determina que as vítimas tenham o devido “apoio espiritual, médico, psicológico e legal” e recorda a importância de que aos acusados seja garantido o direito a um “julgamento justo e imparcial”, em conformidade com a presunção de inocência, bem como aos “princípios de legalidade e proporcionalidade entre o crime e a sentença”.

No seio do próprio Vaticano, cria-se também um novo quadro jurídico para os que lá vivem e trabalham, com a obrigatoriedade de “apresentação de denúncia promotor de justiça no tribunal do Estado da Cidade do Vaticano” a todos aqueles que, no exercício das suas funções, tenham “notícia ou motivos razoáveis para acreditar que uma criança ou uma pessoa vulnerável” foi vítimas de abusos. “Na seleção e recrutamento de pessoal da Cúria Romana e de instituições ligadas à Santa Sé, bem como daqueles que colaboram numa base voluntária, deve ser verificada a idoneidade do candidato para interagir com menores e pessoas vulneráveis”, acrescenta o texto.

Mais recentemente, em abril de 2022, o Papa pediu à Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores para supervisionar se as conferências episcopais de cada país estão, ou não, a cumprir as diretrizes do Vaticano, e para elaborar um relatório anual sobre o que está a ser feito e o que é preciso mudar, porque dessa transparência também depende a confiança que se deposita na Igreja. “O abuso, em todas as suas formas, é inaceitável”, disse Francisco, “mas o abuso sexual de crianças é particularmente grave, porque ofende a vida no seu crescimento”.

O Papa pediu à Comissão “atenção contínua” ao que se passa nas igrejas locais, sublinhando que ouvir as vítimas “é uma prioridade” e que “cada membro da Igreja, de acordo com o seu estatuto, é chamado a assumir a responsabilidade de prevenir os abusos e trabalhar pela justiça e pela cura”. No âmbito da Reforma da Cúria realizada pelo Santo Padre, a Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores integra agora o Dicastério para a Doutrina da Fé. E foi já neste contexto que se publicou, em junho de 2022, um “Vademecum” (manual com perguntas e respostas) sobre alguns pontos de procedimento para tratar os casos de abuso sexual de menores cometidos pelos clérigos.


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