Quais são os casos públicos de abusos sexuais de menores na Igreja em Portugal?

Em 34 casos investigados pelo Ministério Público, houve 12 condenações. Dois padres foram sentenciados com penas de prisão efetivas.

10 fev, 2023 - 19:30 • Salomé Esteves



Imagem: Salomé Esteves
Imagem: Salomé Esteves

VEJA TAMBÉM:


A Renascença fez um levantamento dos casos conhecidos de abuso sexual de menores no seio da Igreja e em instituições católicas em Portugal, como agrupamentos de escuteiros, escolas, colégios ou casas de acolhimento.

Alguns relatos recentes dão conta de casos dos anos 1970, 1980 e 1990. Mas muitos destes testemunhos resultaram em arquivamento ou prescrição. O longo tempo de denúncia e a falta de provas são as principais causas para que muitas das investigações não tenham sido concluídas.

Apesar de a grande maioria dos indiciados nas investigações abertas pelo Ministério Público serem a padres, apenas dois foram condenados a penas de prisão efetivas.

O primeiro caso de uma acusação e condenação efetiva encontrado neste levantamento remonta a abril de 2014, quando um catequista foi sentenciado a sete anos de prisão por 16 crimes de abuso sexual contra quatro rapazes com idades entre os nove e os 11 anos. A condenação foi de um ano e oito meses por cada crime.

O que é que estas histórias nos contam sobre o abuso sexual de menores ou pessoas dependentes no âmbito da Igreja Portuguesa? Que informações temos e o que permanece em falta? Que padrões existem nessas entrelinhas?

De um total de 39 casos encontrados, houve 12 condenações e dez arquivamentos, sete dos quais por terem prescrito as acusações. Quatro padres foram absolvidos.

Vinte e um desses casos foram tornados públicos após a formação da Comissão Independente “Dar Voz ao Silêncio”, que iniciou os trabalhos em janeiro de 2022. A comissão, coordenada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht, validou mais de 400 denúncias desde então, até concluir o seu trabalho, no final de outubro de 2022.


Um (quase) retrato dos acusados e das vítimas

Nos 39 casos contabilizados neste levantamento, a Renascença encontrou um total de 52 denunciados com várias funções dentro da Igreja, independentemente do estado do processo judicial ou das alegações: 25 padres, mais oito padres ligados a instituições dos jesuítas, três chefes dos escuteiros, três catequistas, três funcionários e monitores leigos, dois professores e um pastor adventista.

Dezassete foram referidos pelo nome, enquanto 35 permanecem anónimos. Desde grupo, pelo menos, dois destes padres já testemunharam perante a Comissão Independente. Um deles pediu o afastamento de todas as responsabilidades na Igreja Católica, e é hoje pároco de uma Igreja Evangélica.

Todos os denunciados referidos neste levantamento são homens, mas as idades variam. Dos 12 homens condenados, o mais jovem tinha 18 anos à data do alegado crime, e o mais velho, 59. De toda a lista, incluindo absolvidos, 11 homens já faleceram. Oito denúncias foram apresentadas após a morte do acusado.

Entre as vítimas são poucos os nomes que se conhecem, por haver um esforço conjunto por se proteger a sua privacidade. Mas a Renascença apurou que, nos casos em que houve condenação, o número de vítimas por perpetrador varia entre um e seis. Só apenas três casos, um ainda sob investigação e outro a aguardar julgamento, ultrapassam estes números.

Um pároco, denunciado por um dos seus pares, por ter alegadamente abusado de mais de dez menores, está a ser investigado pela Comissão Independente. Um professor de Moral aguarda julgamento, desde novembro de 2022, por 87 crimes de abuso sexual de 15 menores, entre os 14 e os 17 anos. Em 2014, um chefe dos escuteiros foi investigado pela Europol por pornografia infantil e por abuso sexual de mais de 40 crianças. O dirigente suicidou-se enquanto estava preso preventivamente, em 2014, levando ao fecho do processo criminal, por morte do arguido.

Em três dos casos em que houve condenação do acusado, as vítimas tinham menos de 10 anos à data do crime. Mas em nove, eram pré-adolescentes ou adolescentes até aos 18 anos. Uma das vítimas era maior de idade, mas por se encontrar em situação de internamento e incapacidade de resistência, é considerada equivalente a menor aos olhos da lei.


Um crime difícil de punir

Em Portugal, um ato sexual com uma criança menor de 14 anos tem uma pena máxima de dez anos. No caso do abuso sexual, de prostituição e de pornografia de menores, a tentativa também é punível.

Além disso, todos os crimes de cariz sexual com crianças são, em Portugal, um crime público, o que quer dizer que uma denúncia de suspeita de um crime desta natureza pode ser feita por qualquer pessoa.

Nestes casos, as autoridades são obrigadas a iniciar uma investigação e a abrir um processo-crime, independentemente da vontade da vítima. No caso de menores entre os 14 e os 16 anos, os contornos legais mudam e o crime torna-se semipúblico.

Isto leva frequentemente a investigações com provas insuficientes, cuja consequência é o arquivamento, pela mesma razão. Em 2019, por exemplo, o Ministério Público arquivou um caso de um alegado abuso sexual de um menor contra um pároco de Cacilhas, porque o inquérito não levantou indícios suficientes para verificação de crime e a investigação concluiu que a suspeita era infundada.


Trinta e quatro dos casos levantados pela Renascença foram investigados pelo Ministério Público. Dos dois que não foram, um foi analisado pela Arquidiocese de Braga e julgado pelo Tribunal Eclesiástico, o outro foi resolvido na da Diocese de Setúbal. Este último caso está a ser revisto pela Comissão Independente.

Ambas as situações antecederam a publicação do manual “Vade Mecum”, em 2020, em que o Papa Francisco atestou a obrigatoriedade dos casos de abusos sexuais de menores por membros do clero serem encaminhados para as autoridades civis.

Os restantes três casos foram conhecidos já em 2022, no contexto das investigações da Comissão liderada por Pedro Strecht.

Quatro dos processos abertos no Ministério Público terminaram na absolvição do acusado, mas apenas um destes crimes era de abuso sexual de menor. Dois referiam-se a alegados crimes de encobrimento e um de abuso sexual de pessoa internada ou incapaz de resistência. No primeiro caso, o padre foi levado a julgamento, mas o pai da vítima declarou estar convicto da inocência do pároco. Mais tarde, a menina negou todas as acusações, apesar de a denúncia original ter sido feita por uma testemunha.

Condenados pela justiça civil

Nos processos que já se encontram fechados, 12 abusadores foram condenados a penas de prisão, quatro dos quais com pena suspensa até 20 meses.

A maior pena atribuída até hoje a um membro do clero por crimes de cariz sexual foi de 13 anos de prisão efetiva e uma indeminização equivalente a oito mil euros. Foi em 1993, quando o Tribunal da Madeira sentenciou o padre Frederico Cunha por homossexualidade com menor e por homicídio contra um jovem de 15 anos. Durante uma saída precária da prisão, em 1998, para visitar a mãe, o sacerdote fugiu para Espanha, e depois para o Brasil, onde ainda reside. O antigo padre nunca cumpriu os restantes oito anos de prisão a que foi condenado, nem pagou a indemnização. A pena prescreveu em 2018.

Em dezembro de 2013, o padre Luís Mendes foi condenado a 10 anos de pena efetiva por ter abusado sexualmente de seis crianças entre os 11 e os 15 anos de idade. Foi considerado culpado de 11 crimes de abuso sexual de menores dependentes e de coação sexual. O antigo vice-reitor do Seminário do Fundão, onde decorreram os abusos contra cinco dos menores, está a cumprir pena no estabelecimento prisional da Guarda desde 2017. Luís Mendes recorreu da sentença para o Tribunal da Relação de Coimbra, que foi negada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

Um antigo pastor adventista de Tomar foi condenado a sete anos de prisão pelo crime de abuso sexual de menor de forma continuada. O pastor terá abusado de uma menina até aos seus 15 anos, entre 2009 e 2015. A sua intenção, afirmou em julgamento, era propor-lhe casamento quando atingisse a maioridade. O Tribunal de Santarém sentenciou o antigo pastor por um total de 24 crimes.

Apesar de a grande maioria dos indiciados nas investigações abertas pelo Ministério Público serem padres, apenas Frederico Cunha e Luís Mendes foram condenados a penas de prisão efetivas. Em 2015, o padre António Júlio Santos foi condenado a 14 meses de pena suspensa pelo abuso sexual de duas crianças. No ano seguinte, o padre Pedro Ribeiro foi sentenciado a 20 meses de pena suspensa pelo mesmo crime. Dois outros padres estão, atualmente, sujeitos a apresentações quinzenais e proibidos de contactar com as vítimas.

Além de membros do clero, um professor de música, um auxiliar de ação educativa e um chefe dos escuteiros foram condenados a seis anos de prisão efetiva por crimes de abusos sexuais de menores.


Artigos Relacionados