“Tenho medo, mas aguento”: o lema de uma família que decidiu fugir da Ucrânia

24 mar, 2022 - 08:00 • Filipa Ribeiro

São duas mulheres adultas, três crianças e duas cadelas oriundas de Odessa. Estão em Lisboa há uma semana. Fugiram da Ucrânia no primeiro dia de ataques, na viagem não houve lágrimas nem choro, apenas a esperança de se conseguirem salvar e de começar do zero num país seguro e em paz.

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Até ao dia 24 de fevereiro, ninguém imaginava que as ameaças da Rússia se pudessem concretizar. A família de Natalia Stankevych estava a voltar a Odessa de uma visita a amigos quando o pesadelo começou: as tropas russas começaram a invadir a Ucrânia e a cidade junto ao Mar Negro foi das primeiras a ser atacada.

“Estávamos a regressar a casa e começaram a mandar mísseis sob as nossas cabeças” descreve Natalia. Sem nunca ter ficado com a voz embargada, nem com os olhos azuis em lágrimas conta que foi nesse mesmo dia que a família decidiu deixar tudo para trás. “Tomamos a decisão de fugir para a Moldova para depois seguirmos para a Roménia.” Com ela levou a mãe, os três filhos e as duas cadelas brancas da raça boxer. Mesmo sabendo que os animais poderiam complicar a viagem, nunca lhe passou pela cabeça deixá-los para trás. “Elas são da nossa família”, afirma Natália enquanto abraça uma das cadelas.

"Deixamos tudo para trás, casas, maridos, todos os bens que tínhamos, os nossos trabalhos, toda a nossa vida que contruímos até dia 24 de Fevereiro de 2022. Ficou tudo para trás. Fizemos isto pelas crianças, para as salvar e dar-lhes estabilidade”.

Na Ucrânia, ficou o pai e avô das crianças. É médico e tem 57 anos. Por ter menos de 60 anos e ainda estar em vigor no país a lei marcial – que impede a saída dos homens com menos de 60 anos – o pai de Natália e marido de Tatyana foi obrigado a ficar a lutar na Ucrânia. “Até agora não lhe deram armas, está na segunda linha de combate para defender o nosso país. Temos falado com ele. Tenho medo, mas aguento tudo o que se passa”, conta.

Para trás ficou também o marido da ucraniana e pai das crianças, mas parece estar em segurança. “Ele é marinheiro num navio de transporte de mercadorias da Grécia. Não sei exatamente onde ele está, apenas que ele está em alto mar”, diz a sorrir.


Cinco pessoas, dois cães, um carro “velhinho” e 700 Km até a Roménia

A viagem para fugir da guerra foi difícil. “Nós tínhamos um carro velhinho em Odessa e foi complicado fazer a viagem. Os cães tinham medo”, contam. Ainda assim, conseguiu surpreender ao subir as zonas montanhosas de leste e fazê-los à Roménia.

"No primeiro dia viajamos de Odessa para a Moldova. No segundo dia entramos na Roménia, onde ficamos mais três dias. Como tínhamos dois cães os voluntários ajudaram-nos a encontrar uma casa,” diz Natalia. A família ucraniana ficou até conseguir ajuda para viajar para outro país.

Durante a estadia na Roménia, a família doou o carro “velhinho” aos voluntários, para que eles pudessem ajudar outras pessoas. Foi também na Roménia que decidiram pedir ajuda para vir para Portugal.

“Pensamos num destino onde conseguíssemos ter paz longe da Rússia e percebemos que para além de ser longe, Portugal é muito parecido com Odessa, porque fica junto ao mar e tem um clima tropical.”

A ajudar à decisão da escolha do destino estava também o facto de a família conhecer pessoas que tinham amigos em Portugal e, foi assim, que chegaram ao contacto de Volodymyr Nikulin - um ucraniano que está em território nacional há 22 anos.

Volodymyr e os pedidos de ajuda

Volodymir, que está sentado entre Natalia e Tatyana, já é quase um membro da família.

Desde que começou a Guerra que não pára de pensar no que se está a passar no país onde nasceu e a partir do dia que tomou conhecimento das dificuldades desta família está empenhado em os ajudar e a todos os refugiados que consegue.

“Não conhecia esta família. A minha mulher é que foi contactada por uns conhecidos a dizer que eles precisavam de ajuda na fronteira da Roménia. Como eles tinham animais, isso comoveu-me e tentei de imediato enviar voluntários para os ir buscar”, conta Volodymyr enquanto faz festas na Santa e Uma - as duas cadelas da família.

Começa por dizer que levou algum tempo até conseguir encontrar uma solução para esta e outra família na mesma situação. “Ficamos desesperados, só depois de algumas tentativas e de pedidos no Facebook é que duas pessoas do Porto e de Aveiro nos disseram que os iam buscar. Nem queria acreditar”, diz enquanto sorri.

No dia 9 de março já estava uma carrinha a caminho da Roménia para ir buscar esta família ucraniana, que depois de mais de quatro mil Km de estrada chega a Lisboa a 15 de março.

Mesmo já tendo cumprido parte da missão, Volodymyr passou a uma segunda fase. Enquanto as famílias não chegavam publicou no Facebook um apelo para pedir alojamento para arrendar.

Depois de mais de uma centena de patilhas a publicação chegou ao feed do Facebook de Susana Simas - a portuguesa que conseguiu uma casa para a família.

Mobilar uma casa em três dias

Não há um dia em que Susana não passe na casa que alugou a esta família ucraniana para saber se precisam de alguma coisa.

Quase sempre é recebida com um café. Desta vez não foi diferente. No sofá junto a uma mesa com várias chávenas servidas pela mãe e pela avó ucranianas, conta porque decidiu doar um espaço a uma família que não fazia ideia de quem pudessem ser.

“No passado sábado, dia 12 de Março, fui ao Facebook por causa do aniversário de uma amiga e vi um post que falava da situação desta família, que por ter dois cães via as coisas a complicarem-se. Como tenho e adoro cães revi-me nesta situação. Tinha um apartamento que tinha acabado de arranjar, é claro que o dinheiro faz diferença, mas neste momento era mais importante dar-lhes casa que ter o apartamento vago.”

Susana Simas respondeu à publicação e entrou em contacto com Volodymyr. Os dois, sentados lado a lado no sofá cinzento da sala, onde está agora instalada a família ucraniana, sorriem ao lembrar todo o trabalho que tiveram para conseguir ter uma casa pronta num curto espaço de tempo.

“Mandei mensagem ao Volodymyr sem o conhecer de lado nenhum, mas não importa” conta Susana. “A partir daí percebi que conseguia arranjar alguns móveis, eletrodomésticos, mas não tudo. Uma casa é muito mais que isso. Então mandei umas oito mensagens”, recorda. Foi este o botão que deu início a uma onda de solidariedade. Em três dias com a ajuda do marido, de amigos e de Volodymyr, conseguiu equipar a casa com quase 75% das coisas que eram necessárias.

A casa de Susana para onde foi viver a família ucraniana tem dois quartos, uma sala, uma cozinha e casa de banho. O quarto das crianças está mobilado com um beliche, e uma cama de solteiro. Há ainda um armário e uma secretária com um computador, há também brinquedos espalhados pelo chão, marcadores e livros para pintar. Ao lado fica o quarto da mãe e da avó e a casa de banho. Ao fundo do corredor está a cozinha, toda equipada e na sala que dá acesso à porta de entrada há uma televisão, um sofá, uma mesa e muitos sacos com bens e roupa que Susana tem conseguido trazer para a família.

“No meu carro já só há o lugar do condutor” conta Susana, “tenho ido à Misericórdia da Ericeira ao pé de casa buscar brinquedos e bens que eles precisam. Penso que é essencial que as crianças continuem a brincar”, acrescenta enquanto é abordada por uma das cadelas.

A senhoria da casa confessa chegar ao final do dia com algum cansaço acumulado. “Não páro. Também trabalho, tenho uma mãe doente e ainda consigo me dedicar a eles. Quando se quer consegue-se", realça. Susana Simas não vê televisão há uma semana, confessa que não consegue descrever a alegria que sente por ajudar: “Se visse a alegria das crianças a receber os brinquedos.”

Neste primeiro mês, a família ucraniana vai ficar na casa alugada sem qualquer tipo de custos. Susana ofereceu-lhes um mês de estadia, com as contas de luz, água e gás pagas. A família quis assinar um contrato de um ano na casa. Daqui a um mês vão avaliar a situação e se a mãe ucraniana, já tiver um emprego está combinado que a família comece a pagar uma renda, ainda assim, mais baixa que os preços habituais em Lisboa.

Enquanto bebe o café, Susana diz a Natalia que já está a tratar de tudo para ver se lhe consegue um emprego. “Tenho familiares com empresas que a podem ajudar”, diz.

Enquanto ajuda esta família, Susana não pensa nos familiares que tem na Ucrânia. “Tenho um sobrinho a combater” diz preocupada. Um dos irmãos de Susana é casado com uma mulher de origem ucraniana que tem um dos filhos na guerra. “Estou a assistir de perto à aflição de uma mãe por uma coisa que é uma estupidez”, afirma sem se querer pronunciar muito sobre a guerra na Ucrânia.

Depois de beber o café, Susana despediu-se da família ucraniana e pediu a Natália que fosse com ela ao carro buscar mais bens. Pegaram nos casacos, desceram as escadas e foram ao carro que estava carregado de caixas. De lá, Natália levou para a família mais cobertores para a cama e copos de vidro para a cozinha. No regresso a casa, enquanto subia as escadas, Natália confessou “os portugueses têm sido incríveis”.

Voltar ao zero

Tatyana, a filha Natália e os netos Mytro, Olesya e Diana tinham uma vivenda com jardim em Odessa. Uma cidade junto ao Mar Negro.

Tatyana com 56 anos era agente imobiliária e Natália de 32 trabalhava na Marinha. Todos os dias desenhava as rotas para os navios que fossem entregar mercadorias.

Hoje estão em Lisboa, depois de viajarem mais de cinco mil quilómetros para uma habitção com 60 metros quadrados. Sem emprego, sem casa, sem carro, mas felizes por terem conseguido salvar as crianças. Os olhos azuis não escondem o alívio por saberem que agora estão em segurança. Apesar de serem refugiados e de terem de recomeçar uma nova vida, não querem ser olhados com pena.

“Aqui a casa é mais pequena, mas fomos muito bem recebidos. Não nos queixamos do que temos e vamos conseguir estabilizar a vida”, diz Natalya.

A mãe das três crianças já está à procura de trabalho. A avó, Tatyana vai ficar em casa, para já, a olhar pelos netos nos tempos livres de escola, mas Natalya diz que está preparada “para trabalhar em qualquer sítio, quer ganhar dinheiro para sustentar a família”.

As crianças com 13, 11 e 8 anos já se foram matricular numa escola em Lisboa, ao pé da casa onde vive a família, aguardam agora pela aprovação. Enquanto isso, têm frequentado ao sábado uma escola que dá aulas em ucraniano.

Diana, a mais nova, é a mais envergonhada. Tem passado os últimos dias a brincar e no computador à espera que a Internet apareça. Já Mytro passa os dias a brincar com os brinquedos que lhe têm dado, o preferido é a Game Boy. E Olesya de 13 anos confessa ter saudades dos amigos que deixou na Ucrânia.

“Alguns ficaram em Odessa e durante os bombardeamentos escondem-se na casa de banho”, conta enquanto se senta na cama de pernas cruzadas. Olesya, à semelhança de outros adolescentes é fã da rede social do TikTok, enquanto a família procura fazer um contrato de internet, Olesya tem ensaiado várias coreografias para depois publicar. Os últimos dias têm sido divididos entre novas coreografias e a rever vídeos que tem guardados no telemóvel.

Enquanto as crianças brincam no quarto, a avó Tatyana foi passear os cães à rua, já a mãe ficou a adiantar o jantar.

Esta família ucraniana não ter perspetivas de voltar à Ucrânia em breve. O maior objetivo neste momento é tirar o avô da guerra e esperar que o pai termine a viagem de trabalho.

A avó não se lembra de ver uma guerra assim.

“A Crimeia foi um negócio, mas agora é diferente. Sem a ajuda da Europa, a Ucrânia não sobrevive”, diz.

Um dos próximos passos da família é conseguir toda a documentação. Querem estar legais. Até agora nunca conseguiram preencher os inquéritos do SEF - Serviço de Estrangeiros e Fronteiras - aguardam que a associação que dá apoio a Ucranianos os ajude a tratar dos documentos.

Quanto à palavra Vladimir Putin, essa nunca foi dita dentro desta casa.

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