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Sympathy for the devil? A misericórdia nos padres da Igreja

28 mai, 2016 - 10:50 • Filipe d'Avillez

O frei Isidro Lamelas ajuda-nos a explorar o património dos grandes vultos dos primeiros séculos da Igreja e a perceber como contribuíram para universalizar o conceito cristão de misericórdia.

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Estava muito longe de Lisboa, quanto mais de um convento franciscano, quando Isidro Lamelas começou a receber as suas primeiras lições sobre misericórdia, que considera ser a “essência do cristianismo” e que, tal como o cristianismo, se aprende.

“Vivíamos numa casa bastante grande e o rés-do-chão tinha muitos recantos. Uma parte era reservada a animais, outra era a adega e outra os palheiros, dos fenos. Muitas vezes apareciam pessoas ali, em minha casa, e eu via-as a dormir no sofá, ou no palheiro, outras vezes a beber com o meu pai na adega. Depois, comecei a perceber que eram pessoas que estavam em viagem, ou em busca de algo, ou a fugir. E o meu pai acolhia-os sempre.”

A experiência deixou marcas. “Ficou-me essa sensibilidade, como o meu pai e a minha mãe, que não tinham grandes formações, sabiam que como cristãos tinha-se de actuar assim”.

O sacerdote não consegue deixar de encontrar paralelos com a situação actual da Europa. “Lembro-me destas histórias porque nós estamos a viver esta experiência dos refugiados que vêm, que nos estão a entrar pela casa dentro. Como cristãos necessariamente precisamos desta escola, que nos ensine desde pequenos a acolher. A acolher independentemente de quem são, de onde vêm, e depois logo se vê. Claro que é um risco.”

O Papa Francisco com refugiados


A infância em Viseu já foi há décadas e o frei Isidro Lamelas é agora um dos maiores especialistas em patrologia em Portugal. A patrologia estuda os padres da Igreja, as grandes figuras dos primeiros séculos do cristianismo que contribuíram decisivamente para que a nova religião se implementasse num mundo dominado pela mentalidade romana e grega.

O próprio conceito de misericórdia de então estava longe daquele que o cristianismo veio a adoptar. “No mundo antigo este conceito era mal visto, tinha inclusivamente uma conotação negativa. A misericórdia, em Aristóteles e em Platão, é uma doença da alma, uma fraqueza. Deus não podia ser susceptível de compaixão, de misericórdia, de condescendência, precisamente porque isso era visto como uma fraqueza e Deus não pode estar sujeito a alterações emotivas e patologias da alma.”

“Por isso”, continua, “os cristãos tiveram de elaborar, precisamente com base na escritura e na revelação, uma noção de misericórdia a partir do amor. Não se trata de uma fraqueza, mas de um excesso que tem a ver com a bondade de Deus. A misericórdia é uma expressão dessa bondade, o eco dessa riqueza que é o amor. Isso é uma noção nova.”

A influência dos padres da Igreja para o conceito cristão de misericórdia e algumas das mais interessantes passagens da sua autoria sobre este tema estão incluídos no quinto guião oficial do Vaticano para acompanhar o ano jubilar.

O padre Isidro Lamelas confirma que o guião é muito útil para quem quer iniciar-se neste tema, mas lamenta algum desequilíbrio geográfico. “É muito centrado em Santo Agostinho. O cristianismo ocidental conhece muito bem Agostinho, e não há mal nenhum nisso, mas desconhece tantos outros autores, sobretudo da tradição mais greco-ortodoxa.”

Poderá parecer apenas uma preocupação ecuménica, mas não é. Se as noções de misericórdia a Oriente e a Ocidente coincidem em muitos pontos, há nuances que é importante realçar. Sobre a relação entre misericórdia e justiça, por exemplo, o frade realça que a tradição agostiniana sempre teve mais dificuldade em resolver o binómio, chegando mesmo a dificultá-lo ao manter uma visão muito normativa, inspirada no direito romano, da teologia.

“A tradição oriental nunca criou esse problema, porque não se concebe um Deus onde a justiça não consista exactamente na misericórdia. Isto é: a misericórdia é a forma de Deus ser justo ou de se exprimir justamente”, explica.

Por isso, para quem se interessar em aprofundar este tema, Isidro Lamelas sugere uma obra sua que acaba de ser publicada e que reúne várias das mais importantes passagens dos padres da Igreja sobre o assunto, chamado “A Via da Misericórdia na Sabedoria dos Padres do Deserto”.

Santo Agostinho


Misericórdia até pelo diabo?

Ao longo deste jubileu o Papa tem convidado os fiéis a serem mais misericordiosos. Mas para com quem? As obras da misericórdia, corporais e espirituais, apenas dizem respeito a outras pessoas, mas em vários dos padres da Igreja encontram-se referências à misericórdia para com a natureza, os animais e até o diabo, numa atitude que mais tarde viríamos a identificar como franciscana.

“Assim como Deus, que não é da minha natureza, se preocupa e ocupa da humanidade, assim também eu, humano, me devo compadecer não só dos meus congéneres, humanos, mas de todas as criaturas. Começa aqui, sobretudo entre os padres do deserto, uma sensibilidade que hoje diríamos ecológica, mas que é muito mais que isso, a ideia de uma confraternização de todos os seres a partir de uma espécie de universalização da misericórdia”, explica o padre.

É assim que vemos figuras como Santo Isaac de Nínive, do Século VII, a descrever um coração misericordioso como estando incendiado de amor “por toda a criação: pelos homens, pelas aves do céu, pelos animais da terra, pelo demónio, por toda a criatura”.

O frade franciscano explica que estas palavras devem ser entendidas “a partir de uma teologia mais abrangente que diz que o diabo é uma criatura e não deixa de, talvez – temos de admitir pelo menos essa hipótese – vir a ser ele também objecto de misericórdia.”

Santo Isaac de Nínive


Dylan e uma igreja cheia de refugiados

O frei Isidro tem dificuldade em optar apenas por uma sugestão cultural que lhe faça pensar em misericórdia. De imediato evoca Dylan, um dos seus cantores preferidos, e mais especificamente uma música chamada “Ring Them Bells”, do álbum “Oh Mercy”, em que canta “Uma exortação se ergue como uma canção, a pedir, a invocar a misericórdia. Para todos esta mensagem, a mensagem é a mesma. Fazei soar os sinos da misericórdia”.

Mas há também um filme que o marcou de forma importante. “Il Villagio di Cartonne”, do realizador italiano Ermanno Olmi, sobre um padre idoso que vê a sua igreja paroquial esvaziada de todos os artefactos sagrados e, de seguida, invadida por refugiados. Depois de uma crise de fé inicial, a nova situação permite-lhe encontrar uma nova vida naquele espaço e redescobrir-lhe o sentido.

O filme tem vários anos, mas não podia ser mais actual, diz. “Isto é uma metáfora não só do que é e pode ser a Igreja, mas também a Europa, que precisamente se sente esvaziada dos seus valores. Num momento em que tudo isso é posto em causa podemos descobrir que afinal a nossa vocação, a nossa missão e a nossa razão de ser pode-se redescobrir se acolhermos, se abrirmos as portas, em vez de ficarmos aqui com medo, com receio, e até transformando as vítimas em culpados”.

Imagem do filme "Il Villagio di Cartonne"


Comentários
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  • António Costa
    28 mai, 2016 Cacém 12:23
    E porque é que se recebermos uma pessoa com "gripe", não a podemos tratar? Temos que a misturar com os outros, porquê? Deus não nos ensinou a tratar do Outro? Se deixarmos as pessoas doentes sem tratamento, a doença vai espalhar-se e matar toda a gente! A crise da Europa não é de refugiados, a Europa sempre recebeu refugiados! É de Ignorância e de Falta de Coragem em dizer que ESTES refugiados estão muito doentes! Que a "doença" que devasta os seus países de origem se está agora a começar a espalhar pela Europa! Uma Europa que tem VERGONHA de chamar as "doenças" pelo Nome Certo!
  • Jorge
    28 mai, 2016 Lisboa 12:01
    There´s no such thing especialmente o espanto daquele que até lhe faz doer o coração.

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