A investigadora irlandesa Marie
Keenan estudou abusadores na Igreja e diz que os clérigos com maior
probabilidade de se tornarem perpetradores eram “rule keepers”, ou seja,
mais respeitadores das regras do seminário e tinham uma masculinidade
que ela chama "perfeito celibato clerical". Isso não significa, então,
que a Igreja está a potenciar estes comportamentos?
Eu diria que, na medida em que não o tomar como um problema, poderá potenciá-lo.
Essas conclusões a que refere parecem-me interessantes porque remetem
para um pressuposto, que a crítica do Papa Francisco ao clericalismo, a
meu ver, põe também em evidência: não podemos deixar de estabelecer
alguma correlação entre algumas conceções da vida do presbítero na
Igreja Católica, a sua identidade e a facilidade com que este problema
pode disseminar-se em alguns contextos.
Lá está: uma determinada conceção de presbítero, nessa condição de ser
separado, que de alguma forma tem um atributo que o torna inigualável,
conduz facilmente à ideia, do ponto de vista psíquico, de que algumas
regras sociais possam não ser aplicados à sua condição de exemplaridade.
E, portanto, acho interessante que se tenha observado que, de facto, os
abusadores não são necessariamente pessoas que antes tenham apresentado
sinais comportamentais de desvio em relação aos objetivos da formação
dos presbíteros.
Podem ser, em muitos casos, pessoas muito cumpridoras. Cumpridoras em
relação a quê? Em relação a este modelo de separação, de sacralização da
própria identidade do presbítero.
É a isto que o Papa Francisco chama de "clericalismo"? Como é que se definiria este conceito?
Eu penso que é uma noção que transcreve bastante bem a ideia de uma
"doença institucional". Ou seja, uma instituição construída a partir de
uma conceção de capital simbólico que a torna incomparável e
inigualável, se quiser perfeita.
Aliás, a ideia de Igreja como sociedade perfeita fazia parte da
auto-compreensão que a Igreja tinha no século XIX. Esta conceção conduz a
formas de incomunicação muito grandes entre as instituições eclesiais e
o meio em que se inscrevem.
Nesse sentido, quando nestes contextos surgem problemas como estes, o
clericalismo justifica a defesa da própria instituição em relação à
perturbação que a evidência destes problemas pode trazer.
É um bocadinho o fenómeno que encontramos muito disseminado em termos
políticos nas sociedades, o fenómeno do "bode expiatório". Aliás, os
próprios Evangelhos usam este modelo de interpretação para falar da
morte de Jesus. "É melhor que um só pereça do que pereça a nação
inteira".
"Quando nestes contextos surgem problemas como estes, o clericalismo justifica a defesa da própria instituição em relação à perturbação que a evidência destes problemas pode trazer."
No fundo, é esta razão institucional que está presente no clericalismo.
É preferível que a vítima sofra e seja silenciada do que prejudicar
toda a instituição. Eu diria que esse é o efeito perverso dessa doença
clerical, que é, eu diria, uma doença de identidade institucional.
De certa forma, o clericalismo vem também refazer aquilo que Jesus tentou desfazer no judaísmo, certo?
Sim, a Igreja, quando enfrenta este problema, vive-o claramente como
uma contradição evangélica, porque percebe que a credibilidade da sua
mensagem passa inequivocamente por aí. Aliás, eu penso que o escândalo
social que estes problemas trouxeram tem também a ver com isso.
Eu diria que até que mostram que, de uma forma geral, a sociedade
percebe o que é o centro da mensagem cristã, ao perceber que estes
comportamentos são absolutamente contraditórios com a memória, a
mensagem que esta instituição transporta. Eu diria que a sociedade, de
uma forma geral, percebe qual é o centro da mensagem cristã.
Nesse sentido, aquilo que me parece claro no projeto pastoral deste
pontificado, porventura em alguns momentos com algumas hesitações, mas
penso que se tornou cada vez mais claro, a ideia de que estamos, neste
domínio, num ponto de reforma.
Aquilo que o Papa Francisco procurou mostrar é que este problema não é um problema isolável, lateral.
É algo que põe em evidência problemas estruturais, que dizem respeito
ao centro da própria instituição. Por isso, este problema só se resolve
com uma perspetiva reformista. O programa de reforma do Papa Francisco,
nas suas diferentes dimensões, a meu ver, tem em consideração este
facto.
"Este problema só se resolve com uma perspetiva reformista."
Não estamos a falar de uma marginalidade na instituição. Mesmo que
estatisticamente possamos falar de poucos casos em relação àquilo que
poderiam ser as expectativas em algumas sociedades. Verdadeiramente não é
esse o problema, não é tanto quantitativo. O problema diz respeito ao
facto de pôr em evidência questões estruturais que, só de facto, com
transformações reformistas, podem ser resolvidos.
Como avalia a postura do Papa
Francisco? Considera que realmente está a introduzir uma mudança? Foi o
primeiro a agir assim ou já havia um caminho positivo a ser feito por
parte da Igreja?
Eu diria que foi o primeiro que fez disto um dos centros, um dos
fulcros do projeto do pontificado. O Papa Bento XVI tinha começado já
claramente a enfrentar este problema.
Eu diria que o Papa Bento XVI ou se quisermos, a pessoa de Joseph
Ratzinger - é preciso não esquecer que Ratzinger acompanhava este
assunto já há bastante tempo, porque no pontificado do Papa João Paulo
II foi já uma figura proeminentemente, muito próxima.
Mas a Igreja demorou a perceber como é que isto podia ser, de facto,
algo de central na experiência eclesial. Nesse sentido, é o Papa
Francisco claramente que assume isto como um desafio central na reforma
da Igreja e como uma página que não podia deixar de ser virada.