Igreja "deve favorecer um observatório" que permita acompanhar o problema dos abusos

Para o antropólogo Alfredo Teixeira, os abusos na Igreja são "sistémicos" e “põem em evidência problemas estruturais" da instituição. Para mitigar o problema, a Igreja precisa de uma "reforma interna", defende o investigador.

11 fev, 2023 - 14:00 • Inês Rocha



Alfredo Teixeira, antropólogo diretor do Instituto de Estudos de Religião da Universidade Católica Portuguesa Foto: Manuel Costa/Ecclesia
Alfredo Teixeira, antropólogo diretor do Instituto de Estudos de Religião da Universidade Católica Portuguesa Foto: Manuel Costa/Ecclesia

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A Igreja Católica deve favorecer a criação de um observatório organizado que permita acompanhar o problema dos abusos sexuais no seu seio. É o que defende o antropólogo Alfredo Teixeira, lembrando que "a missão da própria Igreja Católica é trazer essa urgência para a sociedade".

O investigador da Universidade Católica Portuguesa é um dos autores do livro "Uma Anatomia do Poder Eclesiástico", lançado no ano passado pela editora da Universidade Católica Portuguesa, que reúne sete estudos a propósito da questão dos abusos sexuais na Igreja Católica. Alfredo Teixeira assina um capítulo, intitulado “Instituição, abusos e vítimas: crítica da razão institucional".

Em conversa com a Renascença, o antropólogo assume que os abusos na Igreja são "sistémicos" e “põem em evidência problemas estruturais" da instituição. E sublinha que, para mitigar o problema, a Igreja precisa de uma "reforma interna", que pode passar por repensar o modelo de formação nos seminários, os contextos de socialização dos padres e o celibato.


No livro "Uma Anatomia do Poder Eclesiástico", cita uma frase do teólogo checo Tomáš Halík sobre os abusos na Igreja Católica - "não se trata de casos individuais, mas de uma doença perigosa que afeta todo o sistema". Em que medida é que os abusos sexuais de menores na Igreja são uma doença do sistema?

Eu diria que há dois sintomas que nos permitem falar dessa maneira. A extensão geográfica - é um problema que não está circunscrito a um determinado país, diocese ou organização - encontra evidências numa geografia muito, muito ampla.

"O Papa Francisco tem um nome para esta "doença do sistema", como lhe chamou Tomáš Halík, que é o termo 'Clericalismo'".

Mas também a extensão no tempo, porque em todas estas investigações percebemos que os casos recuam até um período bastante largo no tempo. O que quer dizer, obviamente, que tem que ser considerado como algo de sistémico.

Aliás, o Papa Francisco, eu diria, tem um nome para esta "doença do sistema", como lhe chamou Tomáš Halík, que é o termo "Clericalismo".

A extensão do problema nestas duas dimensões conduz a que própria Igreja tenha consciência de que necessita de uma reforma interna para poder prevenir estas situações.

Desvaloriza-se este tema, diz-se que há muitos abusos na Igreja como há noutros setores da sociedade. Para si podemos comparar este fenómeno com os abusos no desporto ou noutras áreas? Ou há um problema mais grave na Igreja?

Penso que a sociedade espera que uma instituição religiosa tenha a capacidade de prevenir e acompanhar situações destas com outros recursos.

Por outro lado, o tipo de relação que se estabelece neste contexto de vivência religiosa tem, obviamente, características diferentes de outros contextos. A invisibilidade das vítimas no contexto das instituições da Igreja Católica e o comportamento de ocultação do abuso acaba por tornar este fenómeno bastante mais grave.

No fundo, aquilo que, noutros contextos, é visto do ponto de vista do abuso de menores, no contexto das instituições da Igreja Católica, há uma dimensão de abuso espiritual, porque estas pessoas estavam, na maior parte dos casos, num contexto de autoridade e cuidado pastoral.

Portanto, eu diria que o abuso do ponto de vista social, do ponto de vista simbólico, tem claramente um impacto maior.


No seu capítulo escreve sobre a "cultura do silêncio" na Igreja como perpetuadora dos comportamentos. Mas considera que esta cultura pode também, ela própria, levar ao abuso?

As vítimas são, de uma forma geral, incómodas para as instituições, porque a vítima põe a nu a disfuncionalidade de uma instituição.

Portanto, quando observamos a história das instituições, de uma forma geral, vemos que elas tendem a tornar as vítimas invisíveis, porque de alguma forma a evidência de que há vítimas põe em causa a credibilidade da própria instituição.

"As vítimas são, de uma forma geral, incómodas para as instituições, porque a vítima põe a nu a disfuncionalidade de uma instituição."

Portanto, aquilo que se esperaria é que uma instituição como a Igreja Católica tivesse meios para superar aquilo que eu chamaria "doença das instituições", porque eu diria que até, na sua memória, a Igreja transporta no centro da sua mensagem o cuidado da vítima.

Portanto, nesse sentido, um sistema que de alguma maneira promove esta ocultação pode de alguma maneira ser um sistema facilitador do abuso. Obviamente que, na medida em que uma instituição protege o abusador, de alguma maneira, cria um terreno de facilitação do próprio abuso. Isso parece-me claro.

Qual é o papel dos seminários em tudo isto? No livro, fala de uma instituição total que pode dar pouco espaço a consciência crítica.

Sim. Esse é um problema que, de facto, eu gostaria que fosse estudado melhor. Os seminários não têm sido objeto de estudo, no ponto de vista de diferentes saberes, diferentes ciências, e eu acho que valia a pena.

É claro que nós percebemos que grande parte destes abusos que têm sido identificados correspondem, muitas vezes, a uma geração de pessoas que foi formada num outro seminário que não é este que hoje existe.

Em todo o caso, há uma estrutura formativa e educacional, que reproduz um certo modelo que, mesmo com características diferentes hoje, não deixa de ter alguma proximidade àquilo que se fez no passado.

Este modelo de um seminário que aparece como muito totalizante - um projeto de formação que parece incluir poucos intervenientes, muito centrado num modelo fechado, de separação a vários níveis, separação com a família, separação com os pares - na maior parte dos casos, com os jovens da mesma idade.

Isto não pode deixar de ser pensado como um fator importante a considerar, não no sentido em que este modelo de formação seja automaticamente produtor de abusadores - penso que isso seria completamente excessivo - mas pensar que porventura pode ser um modelo algo frágil para acompanhar jovens adultos que tenham fragilidades deste ponto de vista e que possam facilmente encontrar-se numa situação de comportamento desviante no futuro.

Eu diria que um modelo de formação que pudesse ser um pouco mais aberto, mais destotalizado, com a participação de mulheres, por exemplo, com um forte investimento na relação com os pares, com os outros jovens que têm outras experiências sociais, contribuiria para uma forte socialização e não para um programa de formação que, às vezes, parece ser essencialmente dessocializante. Um programa que visa separar as pessoas para as formar e porventura não assegura depois o acompanhamento devido na sua reinserção no mundo, neste caso, nas atividades pastorais futuras que o jovem presbítero irá exercer.

Esse é um problema que também identifica: o depois do seminário. Porque se no seminário há uma vida comunitária, muitas vezes depois os padres vão para uma paróquia e vivem sozinhos, isolados. Isso pode ser também um problema?

Sim, eu diria que aí sim, temos já alguns resultados interessantes de estudos que têm sido feitos sobre a iniciação da vida ativa dos jovens padres. Há alguns estudos que merecem credibilidade, feitos em contextos de investigação controlada e criticada.

Nesses estudos surge como evidente que há um número razoável de jovens padres que sente muitas dificuldades nessa transição. E que, em muitos casos, vivem de novo uma situação de dessocialização.

Por um lado, não encontram uma forte relação com o seu próprio bispo, que aparece como uma autoridade bastante distante, com poucos canais de comunicação.

"De facto, o abuso não deixa de ser, para além de outros fatores psíquicos, uma clara desorganização do próprio comportamento social do indivíduo."

Por outro lado, mesmo que o padre, nas suas funções pastorais, esteja num plano de múltiplas relações com outros cristãos, nem sempre estabelece um nível de confiança que permita construir uma rede de solidariedade, uma rede de cumplicidades que acompanha a vida da pessoa.

E nós sabemos - a psicologia social em particular tem-no demonstrado - que, quando alguém está bastante desafetado das redes que apoiam os nossos quotidianos, a sua vida pode desorganizar-se socialmente.


E, de facto, o abuso não deixa de ser, para além de outros fatores psíquicos, uma clara desorganização do próprio comportamento social do indivíduo.

Porque as redes de proximidade das pessoas têm também uma dimensão de censura, uma dimensão coerciva de vigilância sobre o comportamento das pessoas.

Na medida em que alguém que, do ponto de vista psíquico, do ponto de vista social, pode ter tendência para este comportamento desviante, na medida em que estiver menos afetado por essas redes que acompanham as nossas vidas nos nossos quotidianos, obviamente que se esse desvio se pode pronunciar muito mais.

Em relação ao celibato, sei que é um bocadinho difícil estabelecer uma causalidade entre celibato e abusos e há muitas visões díspares sobre isto. Mas o celibato obrigatório não pode levar também ao tal clero "socialmente desorganizado"? Poderia ser uma porta para resolver este problema, torná-lo não obrigatório?

Eu penso que esse é mais um dos fatores que tem que ser visto a partir de diferentes pontos de vista. O problema do celibato associado ao ministério ordenado na Igreja Católica é um problema mais amplo e que diz respeito à forma como a própria Igreja Católica quer pensar esse ministério.

Outra coisa é agora pensarmos o que é que o celibato, como experiência psíquica e social, pode conter como risco de existência, de forma específica. Porque nós vivemos num contexto social e a partir das condições em que vivemos, há problemas e riscos específicos. Quando o celibato é visto numa lógica simbólica de separação, de uma identidade que, de alguma forma, se auto-compreende como identidade separada, sacralizada no sentido estrito do termo, eu creio que, do ponto de vista psíquico e social, isso pode conduzir à tal dessocialização de que eu falava, a tal desorganização dos comportamentos sociais.

Mais uma vez, não como automatismo, mas em circunstâncias em que essas dimensões pessoais possam, de facto, encontrar-se fragilizadas por muitas outras razões.

Nesse sentido, quando se pensa o problema do celibato, ele não pode ser isolado apenas a partir de um ângulo, julgo que este ângulo também deve ser considerado.

Se a Igreja Católica persiste neste modelo de enquadramento da vida, em particular dos presbíteros, terá de acompanhar esta condição de vida compreendendo que esse modelo, ele próprio pode, em determinadas circunstâncias, ser um fator a considerar no âmbito deste problema que vivemos.



Alfredo Teixeira, antropólogo diretor do Instituto de Estudos de Religião da Universidade Católica Portuguesa Foto: Manuel Costa/Ecclesia
Alfredo Teixeira, antropólogo diretor do Instituto de Estudos de Religião da Universidade Católica Portuguesa Foto: Manuel Costa/Ecclesia

A investigadora irlandesa Marie Keenan estudou abusadores na Igreja e diz que os clérigos com maior probabilidade de se tornarem perpetradores eram “rule keepers”, ou seja, mais respeitadores das regras do seminário e tinham uma masculinidade que ela chama "perfeito celibato clerical". Isso não significa, então, que a Igreja está a potenciar estes comportamentos?

Eu diria que, na medida em que não o tomar como um problema, poderá potenciá-lo.

Essas conclusões a que refere parecem-me interessantes porque remetem para um pressuposto, que a crítica do Papa Francisco ao clericalismo, a meu ver, põe também em evidência: não podemos deixar de estabelecer alguma correlação entre algumas conceções da vida do presbítero na Igreja Católica, a sua identidade e a facilidade com que este problema pode disseminar-se em alguns contextos.

Lá está: uma determinada conceção de presbítero, nessa condição de ser separado, que de alguma forma tem um atributo que o torna inigualável, conduz facilmente à ideia, do ponto de vista psíquico, de que algumas regras sociais possam não ser aplicados à sua condição de exemplaridade.

E, portanto, acho interessante que se tenha observado que, de facto, os abusadores não são necessariamente pessoas que antes tenham apresentado sinais comportamentais de desvio em relação aos objetivos da formação dos presbíteros.

Podem ser, em muitos casos, pessoas muito cumpridoras. Cumpridoras em relação a quê? Em relação a este modelo de separação, de sacralização da própria identidade do presbítero.

É a isto que o Papa Francisco chama de "clericalismo"? Como é que se definiria este conceito?

Eu penso que é uma noção que transcreve bastante bem a ideia de uma "doença institucional". Ou seja, uma instituição construída a partir de uma conceção de capital simbólico que a torna incomparável e inigualável, se quiser perfeita.

Aliás, a ideia de Igreja como sociedade perfeita fazia parte da auto-compreensão que a Igreja tinha no século XIX. Esta conceção conduz a formas de incomunicação muito grandes entre as instituições eclesiais e o meio em que se inscrevem.

Nesse sentido, quando nestes contextos surgem problemas como estes, o clericalismo justifica a defesa da própria instituição em relação à perturbação que a evidência destes problemas pode trazer.

É um bocadinho o fenómeno que encontramos muito disseminado em termos políticos nas sociedades, o fenómeno do "bode expiatório". Aliás, os próprios Evangelhos usam este modelo de interpretação para falar da morte de Jesus. "É melhor que um só pereça do que pereça a nação inteira".

"Quando nestes contextos surgem problemas como estes, o clericalismo justifica a defesa da própria instituição em relação à perturbação que a evidência destes problemas pode trazer."

No fundo, é esta razão institucional que está presente no clericalismo. É preferível que a vítima sofra e seja silenciada do que prejudicar toda a instituição. Eu diria que esse é o efeito perverso dessa doença clerical, que é, eu diria, uma doença de identidade institucional.

De certa forma, o clericalismo vem também refazer aquilo que Jesus tentou desfazer no judaísmo, certo?

Sim, a Igreja, quando enfrenta este problema, vive-o claramente como uma contradição evangélica, porque percebe que a credibilidade da sua mensagem passa inequivocamente por aí. Aliás, eu penso que o escândalo social que estes problemas trouxeram tem também a ver com isso.

Eu diria que até que mostram que, de uma forma geral, a sociedade percebe o que é o centro da mensagem cristã, ao perceber que estes comportamentos são absolutamente contraditórios com a memória, a mensagem que esta instituição transporta. Eu diria que a sociedade, de uma forma geral, percebe qual é o centro da mensagem cristã.

Nesse sentido, aquilo que me parece claro no projeto pastoral deste pontificado, porventura em alguns momentos com algumas hesitações, mas penso que se tornou cada vez mais claro, a ideia de que estamos, neste domínio, num ponto de reforma.

Aquilo que o Papa Francisco procurou mostrar é que este problema não é um problema isolável, lateral.

É algo que põe em evidência problemas estruturais, que dizem respeito ao centro da própria instituição. Por isso, este problema só se resolve com uma perspetiva reformista. O programa de reforma do Papa Francisco, nas suas diferentes dimensões, a meu ver, tem em consideração este facto.

"Este problema só se resolve com uma perspetiva reformista."

Não estamos a falar de uma marginalidade na instituição. Mesmo que estatisticamente possamos falar de poucos casos em relação àquilo que poderiam ser as expectativas em algumas sociedades. Verdadeiramente não é esse o problema, não é tanto quantitativo. O problema diz respeito ao facto de pôr em evidência questões estruturais que, só de facto, com transformações reformistas, podem ser resolvidos.

Como avalia a postura do Papa Francisco? Considera que realmente está a introduzir uma mudança? Foi o primeiro a agir assim ou já havia um caminho positivo a ser feito por parte da Igreja?

Eu diria que foi o primeiro que fez disto um dos centros, um dos fulcros do projeto do pontificado. O Papa Bento XVI tinha começado já claramente a enfrentar este problema.

Eu diria que o Papa Bento XVI ou se quisermos, a pessoa de Joseph Ratzinger - é preciso não esquecer que Ratzinger acompanhava este assunto já há bastante tempo, porque no pontificado do Papa João Paulo II foi já uma figura proeminentemente, muito próxima.

Mas a Igreja demorou a perceber como é que isto podia ser, de facto, algo de central na experiência eclesial. Nesse sentido, é o Papa Francisco claramente que assume isto como um desafio central na reforma da Igreja e como uma página que não podia deixar de ser virada.


Foto: EPA
Foto: EPA

Acha que está tudo feito? Ou seja, as mudanças que o Papa Francisco está a introduzir são suficientes ou a Igreja devia ir mais longe?

Tenho dificuldade em ter uma posição muito detalhada sobre isso, porque, embora conheça aquilo que tem sido anunciado, não tenho informação suficiente sobre a forma como, em alguns casos, está a ser implementado.

Diria que o facto de estarem a ser exigidos às instituições protocolos específicos de atuação, o facto de instituições como, por exemplo, a Universidade Católica, desenvolverem um projeto nesta área, mostra que, de facto, alguma coisa de muito amplo está a ser feito.

Mas há uma dimensão de base, que é o funcionamento da diocese, da congregação religiosa, da instituição religiosa, que é decisiva. E aí eu não tenho ainda a capacidade de perceber até que ponto as medidas que estão a ser tomadas são suficientes.

Eu diria que a única forma de conseguirmos ter um retrato claro disso é mantermos uma espécie de observatório organizado dessa realidade no contexto das instituições da Igreja Católica.

Isso sim, a Igreja Católica deveria deveria favorecer. Aliás, como todas as instituições que têm por objeto o cuidado, quer o cuidado de menores, quer cuidado de outras pessoas que podem ser vítimas de outro tipo de abusos.

"Eu diria que a única forma de conseguirmos ter um retrato claro disso [abusos] é mantermos uma espécie de observatório organizado dessa realidade no contexto das instituições da Igreja Católica."

A missão da própria Igreja Católica é trazer essa urgência para a sociedade, ou seja, que todas as instituições ponham nesta perspetiva do cuidado da potencial vítima um centro fundamental da sua organização. Por isso, é necessário criar mecanismos. É preciso ferramentas organizacionais que permitam claramente acompanhar este problema.

Não deveríamos ir num sentido ainda mais radical, de repensar realmente a estrutura da Igreja, por exemplo com um novo Concílio?

Eu diria que o Papa Francisco terá feito essa pergunta a si próprio. Qual é o instrumento mais adequado para mobilizar esta transformação da Igreja Católica? Acho que o Papa terá percebido que fazer hoje um concílio impõe dificuldades que não são fáceis de ultrapassar.

Só a reunião de todos os bispos importa uma escala incomparável com aquilo que foi o Concílio Vaticano II. Seria necessário criar uma outra metodologia para a construção do próprio Concílio.

Por outro lado, tendo presente que tivemos um pontificado muito longo, de João Paulo II, que estruturou bastante as igrejas locais a partir de um projeto com o qual o Papa Francisco não rompe totalmente, mas eu diria que assume claras diferenças, a reunião de um Concílio podia não reunir sensibilidades suficientes para conduzir a Igreja nesse projeto de reforma que o Papa Francisco pretende.

Por isso, escolheu uma outra via que é este processo sinodal alargado. Julgo que, na ótica do programa reformista do Papa Francisco, este projeto sinodal visaria atingir o mesmo objetivo que eventualmente João XXIII obteve com a convocação do Concílio Vaticano II. E nesse sentido, estamos num trânsito que é difícil de avaliar.

Este sínodo enfrenta uma dificuldade - por um lado é extremamente inovador, por outro lado não tem uma gramática totalmente construída. Para mim, é claro que o Papa Francisco escolhe este modelo como modelo reformista, esperando que esta pressão da experiência cristã das bases, das comunidades reflua sobre a própria instituição e a possa transformar.

Não deixa de ser curioso que, por exemplo, a síntese nacional, no caso português, tenha escolhido claramente não esconder o mal-estar que muitos católicos sentem em relação a muitos problemas da Igreja Católica. É uma síntese que assume claramente a dimensão de crise, ou seja, de ver o presente da Igreja Católica como um presente de crise. E, portanto, eu diria que há sinais de que este processo possa refluir de facto sobre a instituição.

Embora eu, que trabalho mais na área da antropologia das instituições, como estamos perante um processo que não tem uma gramática ainda suficientemente estruturada, é difícil ainda perceber como é que, de facto, todo este movimento de base pode transformar uma estrutura que, como sabemos, é uma estrutura fortemente hierárquica.


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