Quebrando o silêncio

Porque importa dar voz às vítimas de abusos na Igreja e ver para lá da ponta do iceberg.

12 fev, 2023 - 21:30 • Maria João Cunha



Alexandra deixou de amar. Esteve 22 anos em silêncio. Completamente só. Não quer pedidos de desculpa públicos, quer que algo seja feito em relação ao seu agressor, um padre.

Depois de décadas de sombra e encobrimento, um relatório independente começa a ajudar a revelar os contornos de um problema "sistémico" e profundo, com raízes difíceis de arrancar, e que quem lida com os abusos sexuais de menores na Igreja diz que podem estar sobretudo no clericalismo, que o Papa Francisco tem criticado, e nos códigos de silêncio instituídos (‘omertá’, código de honra da máfia napolitana, é uma expressão que se cola agora também à Igreja, como nos lembra uma das vozes que em França mais se destacou na defesa das vítimas; uma “cultura mortal de silêncio”, segundo uma figura destacada do Vaticano).

A Igreja portuguesa começou finalmente a agir, sobretudo no último ano: instituiu comissões diocesanas, às quais chegaram 26 queixas; criou e deu total liberdade de acção a uma comissão independente, que contou mais de 400 casos (na contabilidade de outubro); e os seus responsáveis têm sintonizado progressivamente o seu discurso com o do Papa Francisco, corrigindo algumas atitudes mais intempestivas com pedidos mais inequívocos de perdão.

Mas para quem ouve vítimas e analisa o problema, falta acção. Aqui, mas também noutros países – e ouvimos responsáveis pelo acompanhamento das vítimas no Reino Unido e em França criticar a forma como tão pouco ainda se fez desde que se percebeu a magnitude do problema.

Qualquer que seja a perspectiva por onde se olhe, qualquer que seja o país, estamos sempre a falar de largas centenas de vítimas; se considerarmos as extrapolações (não são números validados, têm por base estudos estatísticos), muitos milhares, dezenas de milhares, centenas de milhares. Um iceberg.

"Um bispo não pode ter a palavra final sobre o que fazer quando há alegações de abuso sexual". A afirmação é de Alexis Jay, líder do inquérito britânico aos abusos, que olhou para as várias igrejas (Anglicana, Católica e outras de menor expressão) e garante à Renascença que "este problema não é levado suficientemente a sério”.

Atente-se, senão, no "paradoxo do lugar reservado aos pecadores", que destaca a representante dos religiosos franceses. "Quando os crimes são qualificados como pecados, protegem o pecador, não a vítima".

São entrevistas que elucidam, de forma sustentada e sem complacências, e ajudam a pôr em perspectiva o problema. É global. Toca a toda a Igreja, em todas as latitudes.

Quem sofre os abusos fica em silêncio. Perpetua este incomportável e tenebroso silêncio até que, em raros casos,com alguma ajuda, consegue revelar o que aconteceu.

Em Portugal, apenas 34 casos terão chegado à Justiça antes do trabalho da comissão independente. Desses, 12 resultaram em condenações, dois (2) padres foram condenados a pena de prisão efectiva. A discussão sobre os prazos de prescrição dos crimes de abuso de menores é, por isso, incontornável.

Sobretudo agora, que se sabe que as vítimas demoram, em média, mais de 30 anos a denunciar e já depois da maioridade (na Alemanha, na Holanda, os prazos já foram dilatados nos últimos anos, no Reino Unido não prescrevem); e quando, na última contabilidade da comissão independente, se percebeu que 90% das denúncias já tinham prescrito.

Mas é só um problema de prazos, sobre os quais pode ser difícil conseguir consenso por questões garantísticas? Ou do próprio tempo da Justiça? Afinal, este problema dos abusos de menores é também um problema da Justiça.

Alexandra explica que as vítimas têm medo. A Igreja tem "muito poder", diz.

E no caso desta mulher, que foi consagrada, a relação com Deus ficou "abalada", mas não deixou de acreditar, de rezar e ir à missa. Mesmo depois de ter recebido uma reação "menos correcta" quando fez a denúncia à diocese - note-se que foi só mesmo na sequência da denúncia, para ela, que chegou a depressão (imagine-se a violência sobre a violência).

Acredita que a maioria das vítimas nunca contou a ninguém. "Pessoas que sejam casadas, os esposos não sabem, os filhos não sabem, os amigos não sabem, a família não sabe."

O fardo é inimaginável e a reparação devida por algo tão brutal e hediondo dificilmente abarca todas as dimensões da dor infligida.

Alexandra não imagina, mas a sua coragem é extraordinária e o seu testemunho de um valor incalculável. Porque permite que se dê voz à grande tragédia encoberta do nosso tempo.

Ao assentir em dar o seu testemunho pode ajudar tantos outros que sofrem no mesmo sombrio silêncio. Ajuda, não há dúvida quanto a isso, a centrar no que importa, a humanizar o debate, a torná-lo iniludível numa sociedade que não se quer alheada dos seus próprios pecados.

Vergonha, estigma, medo.

Em Portugal não há vítimas a dar a cara. Ou são muito raras. E nem quando a comunicação social se mostra disponível e interessada em investigar denúncias estas acontecem. Ao contrário de outros países, onde as vítimas decidiram ter uma voz, se organizam, têm quem os represente, advogam publicamente uma causa da mais elementar justiça.

Mas o ónus não é, nem pode ser, das vítimas. Quanto deste peso deixamos que recaia sobre elas? Que crédito lhes damos e temos dado ao longo do tempo? Que condições criamos para que possam partilhar a sua dor?


E chegados ao dia de hoje, como foi tudo isto possível? Tantos casos, tantos anos, tanto silêncio, tanta impunidade, tanto sofrimento... Ainda não sabemos responder na totalidade, mas temos pistas. E há responsáveis, é muito claro.

O que farão depois deste momento? Desta vez não é só entre eles e o Criador. É com todos nós.


* jornalista, chefe de redacção

(escreve ao abrigo do antigo Acordo Ortográfico)



Se foi vítima de abuso ou conhece quem possa ter sido, não está sozinho e há vários organismos de apoio às vítimas a que pode recorrer:

- Serviço de Escuta dos Jesuítas, um “espaço seguro destinado a acolher, escutar e apoiar pessoas que possam ter sido vítimas de abusos sexuais nas instituições da Companhia de Jesus.
Telefone: 217 543 (2ª a 6ª, das 9h30 às 18h) | E-mail: escutar@jesuitas.pt | Morada: Estrada da Torre, 26, 1750-296 Lisboa

- Rede Care, projeto da APAV, Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, que “apoia crianças e jovens vítimas de violência sexual de forma especializada, bem como as suas famílias e amigos/as”. Com presença em Lisboa, Porto, Coimbra, Braga, Setúbal, Santarém, Algarve, Alentejo, Madeira e Açores
Telefone: 22 550 29 57 | Linha gratuita de Apoio à Vítima: 116 006 | E-mail: care@apav.pt

- Comissões Diocesanas para a Protecção de Menores. São 21 e foram criadas pela Conferência Episcopal Portuguesa. São constituídas por especialistas de diversas áreas, recolhem denúncias e dão “orientações no campo da prevenção de abusos”.
Podem ser contactadas por telefone, correio ou email.

Para apoiar organizações católicas que trabalham com crianças:

- Projeto Cuidar, do CEPCEP, Centro de Estudos da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica

Se pretende partilhar o seu caso com a Renascença, pode contactar-nos de forma sigilosa, através do email:

partilha@rr.pt


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