22 mar, 2022 - 07:00 • João Malheiro
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O investigador do Centro de Estudos Internacionais, Riccardo Marchi, afirma que Volodymyr Zelenskiy tem responsabilidade na integração e legitimação de forças de extrema-direita, por parte do Estado ucraniano.
Em entrevista à Renascença, o especialista em direitas radicais aponta que, apesar de pouca expressão democrática, as forças de extrema-direita paramilitares têm presença nas instituições ucranianas.
Riccardo Marchi explica que quer a Rússia, quer a Ucrânia, estão a trocar acusações de nazismo como forma de "propaganda bélica" e que os média ocidentais não estão isentos de cair nesta retórica.
Relativamente ao fim das medidas de coação que obrigavam Mário Machado a apresentar-se quinzenalmente a uma esquadra, em Lisboa, e que poderá permitir ao assumido neonazi viajar para a Ucrânia, o investigador questiona se a Justiça teria tomado tido esta posição, se Mário Machado estivesse do lado russo.
O argumento usado por Vladimir Putin de "desnazificação da Ucrânia" é válido?
Podemos analisar a expressão de Putin de duas formas diferentes.
Uma é claramente propagandística. Putin utiliza o facto de haver milícias neonazis integradas dentro das forças armadas ucranianas, uma presença relevante e reconhecida internacionalmente, desde 2014, para justificar perante a opinião pública internacional a sua invasão à Ucrânia.
É uma vertente exclusivamente propagandística para tentar diminuir a gravidade da ação que está a levar a cabo.
Um segundo aspeto é o do antifascismo russo. Para os russos, ser antifascista quer dizer, em primeiro lugar, combater qualquer força antirrussa, na Europa. Não é exclusivamente para identificar um nazi. Qualquer força contra a Rússia é, à partida, uma força fascista para a terminologia russa.
A Ucrânia estava a tornar-se, com o seu Estado, o seu Governo e o seu presidente, num inimigo da Rússia, pela tentativa de integrar a UE, a NATO e tornar-se uma frente avançada da NATO em relação à Rússia. Isso faz com que a Ucrânia seja vista como um inimigo da Rússia, portanto, uma força fascista.
Portanto, qualquer força, como EUA ou NATO, se fossem diretamente opostas, seriam consideradas fascistas?
Exatamente. São consideradas, aliás. No imaginário coletivo russo existe ainda a tal "guerra patriótica" e os 20 milhões de mortos que tombaram para salvar a pátria, sobretudo. Não para salvar a democracia ou a Europa, mas para salvar a própria Rússia contra a invasão nazi.
Os nazis tornaram-se no protótipo do inimigo da Rússia, de qualquer inimigo que queira aniquilar a Rússia enquanto país e enquanto povo.
Ucrânia
Luis Tomé explica que, neste momento, há muitos ce(...)
Já falou das forças de extrema-direita da Ucrânia, que estão documentadas. Do outro lado, fala-se que não há uma expressão significativa da extrema-direita na democracia ucraniana. A verdade está no meio-termo? Qual é, na verdade, o peso da extrema-direita na Ucrânia?
A situação do nacionalismo ucraniano é muito complexa, já desde as manifestações antirrussas na Praça Maidan. As forças declaradamente neonazis ou de extrema-direita eram, apesar de tudo, forças minoritárias entre os manifestantes.
Muitas vezes confunde-se a extrema-direita com os "banderistas", ou seja, com os nacionalistas do antigo Stepan Bandera. Os próprios "banderistas" não se reconheciam nestas franjas neo-nazis. Muitas vezes, houve polémicas e confrontos entre estes dois lados.
Estas franjas marginais tornaram-se cada vez mais importantes no momento em que o próprio Estado ucraniano reconheceu legitimidade a estas forças, facilitou a organização política e paramilitar e integrou-as nas forças armadas nacionais.
Portanto, mesmo permanecendo como forças relativamente marginais - e o resultado eleitoral mostra que não têm grande expressão no eleitorado ucraniano - a legitimidade que lhe foi dada é um elemento que não se encontra em nenhum outro país europeu.
As forças de extrema-direita e neonazi costumam ser combatidas pelas forças institucionais e, certamente, não são legitimadas. O caso ucraniano é específico por isso. Temos um Estado que tem institucionalizado essas forças nazis de extrema-direita.
Não estamos a falar do que é a direita radical clássica e os partidos populistas. Estamos a falar de forças paramilitares que tinham forças de combate contra os separatistas, no Donbass, desde 2014, até hoje. Atuavam quer do ponto de vista militar, quer do ponto de vista político.
Não representa a maioria do eleitorado, nem de longe, mas foi-lhes dada uma importância difícil de encontrar noutros países europeus.
Zelenskiy tem alguma responsabilidade, em particular, neste processo?
Zelenskiy, como chefe do Governo, tem, claramente, responsabilidade neste processo. Mas o Ocidente também não está imune destas responsabilidades, porque está a jogar com fogo.
Até à invasão russa, os media e os políticos Ocidentais, diariamente, demonizavam o Batalhão Azov e os partidos políticos ligados a este nacionalismo ucraniano. De repente, com a invasão russa, estes guerrilheiros e paramilitares tornaram-se resistentes contra a invasão putinista.
É muito comum ver estas franjas de extrema-direita serem instrumentalizadas dependendo dos fins que o poder quer alcançar.
Do lado da Rússia, um dos pontos fundamentais de um discurso de Putin, antes da invasão, foi o de que os antigos territórios da União Soviética pertenciam à História da Rússia. Esta visão pode ser comparada ao chavão de "sangue e solo" muito usado pelo regime nazi?
Não me sinto muito à vontade para fazer estas comparações entre a Rússia de Putin e o nacional-socialismo. Esta comparação entrou muito de moda, agora, dentro da propaganda de guerra, tanto de um lado como do outro. Tanto Putin trata ucranianos como nazis, tanto o Ocidente trata Putin como uma reincarnação de Adolf Hitler.
Encontramos neste momento a situação paradoxal do Hitler que combate contra os nazis. Deixaria de lado estas comparações francamente propagandísticas.
Agora, é evidente que, desde o século XIX, o nacionalismo da Europa de Leste e da Rússia foi sempre muito mais de "sangue e solo" do que o nacionalismo cívico, de matriz francesa, por exemplo, da Europa ocidental.
No Leste, a questão étnica, a questão do sangue, sempre foi muito mais forte e, pela diversidade étnica que há na Europa de Leste, o nacionalismo foi muito mais violento e sangrento.
A visão que Putin apresenta é imperial. Do grande império russo que ultrapassa até a História russa. Faz parte da tradição daquela área, daquela região. Não é preciso comparar com a História da Alemanha nacional-socialista para encontrarmos as razões desta mentalidade imperial russa.
Tocou no ponto dos chavões que têm sido usados de um lado ao outro, como forma de propaganda. Zelenskiy, há uns dias, falou de impedir um "Solução Final", numa alusão ao Holocausto. Sente que estas utilizações destes termos acabam por ser perigosas para o futuro?
No caso da comparação entre a invasão da Ucrânia e a "Solução Final" creio que seja um erro propagandístico por parte de Zelenskiy. Se queria aproximar-se do Estado de Israel, o maior erro que se pode fazer é comparar qualquer evento histórico com o Holocausto.
Israel sempre fez tudo para assegurar a unicidade do Holocausto. Não está disponível para comparar o Holocausto com qualquer outro genocídio ou rebaixá-lo a uma invasão bélica. Foi um erro estratégico de Zelenskiy.
Em tempo de guerra, a propaganda utiliza todos os instrumentos que tem à sua disposição. Cabe aos comentadores, aos jornalistas e aos ouvintes decidir se querem alinhar com as gramáticas propagandísticas ou, por outro lado, evitá-las de qualquer lado e tentar analisar de uma forma, quanto possível, mais fria.
Nos dias que estamos a viver é difícil manter um distanciamento racional.
Pelo que tem visto, sente que a comunicação social portuguesa tem caído em alguma tentação de propaganda ocidental ou tem-se mantido isenta?
Posso falar dos media portugueses e dos media italianos. Vejo propaganda ocidental nos dois lados. Basta ver como são tratadas as poucas vozes desalinhadas. São tratadas como agentes secretos de Putin.
É evidente que os media ocidentais, em geral, entraram dentro da máquina bélica, como é costume. Creio que, neste caso da Ucrânia, é a primeira vez que vemos uma propaganda tão martelada e tão inequívoca.
Em outros eventos bélicos, como 11 de setembro, a guerra do Iraque e do Afeganistão, a guerra da Jugoslávia e para não ir ao Vietname nos anos 70, havia uma divisão muito maior dentro da comunicação social.
Neste caso, da guerra entre Rússia e Ucrânia, esta divisão vê-se cada vez menos. Vê-se uma homogeneização dos meios de comunicação.
Não é só um problema português. Os países do Ocidente alinham bastante no esforço de guerra.
O militante neonazi estava obrigado a apresentar-s(...)
Tendo em conta todo este contexto sensível, é compreensível que a Justiça portuguesa permita a um confessado neonazi ir para este conflito?
Eu creio que a coisa mais interessante deste levantamento das medidas de coação ao Mário Machado é perguntar o que teria acontecido se ele tivesse declarado que queria ir combater no Donbass, ao lado dos russos e dos separatistas?
Posso avançar a hipótese de que teria sido preso, com a justificação de evitar a saída do país para ir combater com nacionalistas russos e que podia apresentar um perigo no regresso à pátria.
Combatendo do lado certo, segundo a propaganda ocidental, foi-lhe permitido estar em liberdade para se poder mover a nível internacional.
Se tivesse a combater do outro lado, qual seria a resposta da Justiça portuguesa? Este ponto de interrogação é o mais interessante de analisar.
Acaba por questionar se a Justiça portuguesa não é sensível a esta propaganda.
Este levantamento não é nada de excecional. São trâmites que acontecem diariamente na Justiça.
Agora, neste caso específico, vivendo nós nesta situação de guerra, levanta, claramente, muitas questões muito interessantes, para ver como as instituições, sejam elas mediáticas, políticas ou jurídicas, se posicionaram nesta polarização bélica do conflito.
Teme que este conflito possa ser uma oportunidade para as forças de extrema-direita diretamente envolvidas se afirmarem e se tornarem ainda mais legitimadas naqueles territórios de Leste?
Numa situação pós-bélica, de caos, de reconstrução da Ucrânia, de certeza que as forças mais radicais e nacionalistas irão ganhar maior legitimidade e mais poder.
Agora, dependendo da capacidade de resposta do sistema político nacional, não sabemos se a nova Ucrânia conseguirá estancar estas forças de extrema-direita ou não.
Também podemos ver isto de um ponto de vista histórico. Eu já vi muitos comentários sobre o perigo da escalada da extrema-direita internacional, graças ao conflito. Mas, do ponto de vista histórico, tivemos sempre a mesma preocupação, em todos os conflitos das últimas décadas.
Já na altura da guerra da Jugoslávia, muitos extremistas de direita que foram combater para a zona, quer na Croácia, quer na Sérvia - em que havia forças paramilitares de extrema-direita - já na altura se dizia que seria o trampolim para redes internacionais de extrema-direita. E não aconteceu nada disso.
Na revolta de Maidan foi o mesmo discurso. Todos os comentadores a dizer que, a seguir a Maidan, estas forças iam organizar-se e atuar fora do território ucraniano. Passados quase 10 anos, nada fizeram com a gravidade que se antecipava.
Do ponto de vista histórico, estes fenómenos não se demonstram tão letais como se pensa quando está a decorrer o acontecimento. Manteria ainda um sangue frio e evitava gritar sobre o regresso do Terceiro Reich na Europa.