21 out, 2024 - 19:19 • Fábio Monteiro
A disciplina de Cidadania e Desenvolvimento – que o primeiro-ministro Luís Montenegro prometeu “libertar” de “amarras ideológicas”, no domingo, graças a uma revisão curricular – não tem manual escolar. E também não tem um programa propriamente rígido. Possui “linhas orientadoras”, temas que os docentes podem abordar conforme julguem necessário.
A experiência de turma para turma, de aluno para aluno, numa mesma escola, pode ser, portanto, profundamente diferente, e ainda mais de cidade para cidade, nota Manuel Pereira, presidente da Associação Nacional de Dirigentes Escolares (ANDE), em declarações à Renascença.
“Há orientações curriculares para a disciplina, em relação a temas, mas depois cada professor orienta os temas e as orientações curriculares, de acordo com a realidade específica. Em Lisboa pode ser de uma forma, em Cinfães de outra. Sempre houve muita autonomia e liberdade por parte dos professores de Cidadania para orientarem”, diz.
O presidente da ANDE afirma, por isso mesmo, que não faz “ideia” ao que se referia Luís Montenegro, quando falou na disciplina “ser muito orientada politicamente”. E também não consegue perceber qual o intuito da revisão curricular, salvo num cenário.
“A não ser que queiram dar orientações rígidas do que se deve ou não falar, o que do meu ponto de vista não faria muito sentido. Mas enfim. Estamos à espera de indicações”, diz.
Manuel Pereira lembra que os professores defendem “há muito” uma revisão curricular de “praticamente todas” as disciplinas, pois os alunos “têm uma sobrecarga curricular incrível”.
“É preciso tornar a carga curricular mais leve, é preciso libertar os alunos para terem algum tempo livre, que não têm. É uma sobrecarga brutal, nomeadamente no 3.º ciclo, se for isso, tudo bem. Agora, não temos ideia nenhuma do que o Governo quer”, nota.
Filinto Lima, líder da outra associação que representa diretores escolares, tem posição idêntica. “A disciplina de Cidadania e Desenvolvimento não é um problema das escolas, é um problema dos políticos”, afirma o presidente da Associação de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP) à Renascença. Por isso, insiste numa ideia que defende há anos: um “pacto na Educação” para evitar mudanças sempre que muda a cor política do Governo, o que provoca “confusão” na escola.
Fernando Alexandre foi esta segunda-feira questionado sobre a revisão do currículo da disciplina da Cidadania. E a primeira coisa que fez foi relembrar que a revisão curricular em curso – feita por uma equipa de peritos externa — é para todas as disciplinas do ensino básico e secundário, algo que o ministro já tinha anunciado sem, na altura, ter dado ênfase a nenhuma disciplina em particular.
O ministro da Educação, ainda assim, assumiu que a disciplina de Cidadania “tem gerado algum ruído” e “mal-estar nas famílias”, especificando que alguns dos temas em torno da Educação Sexual “não são consensuais”, em particular “nos primeiros anos de escolaridade”.
(Recorde-se: há quatro anos, uma família de Famalicão proibiu os filhos de frequentar a disciplina, por entenderem que a Educação Sexual e de Género “têm cariz moral e não compete à escola”, o que deu origem a um processo do Ministério Público.)
Também esta segunda-feira, a Confederação Nacional das Associações de Pais (Confap) reconheceu a necessidade de rever o currículo da disciplina. No entanto, deixou um alerta: questões como igualdade de género nada tem a ver com questões ideológicas. Por sua vez, o ex-ministro da Educação João Costa acusou o primeiro-ministro de querer "retroceder civilizacionalmente".
À Renascença, Sara Rocha, diretora executiva da Associação de Planeamento Familiar (APF), defende que “expor as crianças a temas de sexualidade desde muito cedo é muito importante, desde que, naturalmente, a linguagem e o tipo de conceitos sejam adequados à idade das crianças”.
“É importante que essa educação não seja deixada nem aos amigos nem à pornografia. Essa educação tem de ser feita por pessoas que estudaram os programas e compreendem o que as crianças conseguem processar”, diz.
A Educação Sexual deve começar cedo, explica, “para que seja progressiva, para que se vão construindo conceitos uns em cima dos outros, para não começarmos a ir ter com crianças de 14 anos ensinar-lhes o básico, porque isso elas já sabem". Quando isso acontece, "mina o resto do conhecimento e mina a eficácia da Educação Sexual”.
A APF dá formação a professores no campo da Educação Sexual e desenvolve ações de sensibilização junto de crianças, adolescentes e jovens adultos. Sem surpresa, a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento é encarada de forma positiva. Todavia, nota Sara Rocha, está longe de ser perfeita ou suficiente.
“Tipicamente o número de horas em cada ciclo e em cada ano dedicados à Educação Sexual é muitíssimo reduzido. É importante que não se resuma a uma limitação de riscos e a meia dúzia de indicações muito rápidas sobre procedimentos de segurança”, afirma Sara Rocha.
A diretora da APF defende que é importante que a disciplina tenha mais estrutura, que todos os temas sejam abordados por igual. Ou seja, que todos os alunos tenham acesso a Educação Sexual, não apenas alguns.
“Há muito trabalho para fazer, há muitas mudanças para fazer, essas mudanças devem ser no sentido de aumentar a dignidade das crianças e das pessoas jovens e isso faz-se com conhecimento e respeito pelas suas decisões. Não se faz tapando o sol com a peneira e fingindo que elas não vão passar por uma evolução da sua sexualidade, porque vão. Portanto, o Estado deve garantir que todas as crianças em todas as zonas do país estão preparadas para que essa evolução seja positiva na sua vida e não um problema”, diz.
A disciplina de Cidadania e Desenvolvimento foi criada em 2017, na altura ainda em fase-piloto e alargada depois a todas as escolas no ano letivo 2018/2019, pelo Governo de António Costa. Na época, Tiago Brandão Rodrigues era o responsável pela tutela.
Entre os conteúdos obrigatórios, o programa prevê os direitos humanos, igualdade de género, interculturalidade, desenvolvimento sustentável, educação ambiental e saúde, devendo ainda ser abordados temas como a sexualidade, media, instituições e participação democrática e literacia financeira em, pelo menos, dois ciclos do ensino básico.