31 out, 2016 - 17:10 • Filipe d'Avillez
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Dar de comer e de beber a quem tem fome e sede, vestir os nus, acolher os peregrinos, cuidar dos doentes, visitar os presos e enterrar os mortos. São estas as sete obras corporais de misericórdia, a que correspondem outras sete espirituais, nomeadamente dar bons conselhos, ensinar os ignorantes, corrigir os que erram, consolar os tristes, perdoar as injúrias, sofrer com paciência as limitações do próximo e rezar a Deus por vivos e defuntos.
Há séculos que a Igreja sistematizou e separou as obras, para melhor as compreender, mas na sua essência elas são inseparáveis, explica o padre José Vieira, missionário comboniano: “Elas completam-se umas à outras. O centro da obra da misericórdia é o pobre, o empobrecido”.
“O pobre tem fome, tem sede, não tem que vestir, os pobres nos conflitos não têm para onde fugir, os pobres estão presos porque não têm dinheiro para pagar a advogados, os pobres não têm dinheiro para mandar os filhos para a escola, os pobres, porque vivem a vida tão preocupados com o dia-a-dia também não têm tempo para escutar, aprender ou aconselharem-se. No fundo estão todas juntas”, explica.
A opção de Comboni
As obras da misericórdia são o tema do oitavo e último guião para acompanhar o Jubileu da Misericórdia, publicado pelo Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização, e disponível em português através da Paulus. É composto por vários textos que ajuda a compreender estes ensinamentos da Igreja, mas, para o padre José, destaca-se a conclusão que “toca um assunto que é parte do credo comboniano. Esta opção preferencial pelos mais pobres e abandonados. Era opção de Comboni, ele identificou os mais pobres e abandonados do seu tempo com os africanos, e nós mantivemos esta tradição de vivermos entre os mais pobres e abandonados.”
Foi o que fez este sacerdote, que passou vários anos na Etiópia e no Sudão do Sul, que o Papa manifestou o desejo de visitar, países que conhece muito bem e dos quais fala com clara saudade. À primeira vista pode-se imaginar que o trabalho missionário tem mais a ver com as obras corporais de misericórdia e que as espirituais ficam mais bem entregues a religiosos e religiosas de vida contemplativa. Mas na prática não é assim, garante.
“O povo diz, e com razão, que não se pode pregar a estômagos vazios. Agora, não podemos reduzir a evangelização à assistência social, senão nós, missionários, transformar-nos-íamos em meros assistentes sociais. Não podemos separar o anúncio do reino de paz, da justiça e da alegria dos sinais concretos do amor. As duas coisas estão interligadas”, explica.
“Jesus diz ‘ide, ensinai e curai’. Tanto no ensinamento como na prática de Jesus as coisas vão sempre juntas, o anúncio de que o Reino de Deus chegou; o anúncio de que Deus é pai de todos; o anúncio de que o acolhimento do Reino e da paternidade de Deus se manifestam no amor e que o amor tem gestos concretos, não é um pensamento, não é um sentimento, não é uma teoria, o amor é uma 'ortopraxis', é meter as mãos na massa, é mostrar que se ama com coisas concretas.”
Misericórdia à africana
Frequentemente ouve-se a crítica de que a Igreja é demasiado eurocêntrica e pode-se supor que uma iniciativa como o Jubileu da Misericórdia corre o risco de não chegar às periferias de que o Papa Francisco tanto gosta de falar, pese embora ele tenha feito questão de inaugurar a primeira porta santa na Repúblico Centro-Africana, ainda antes do começo oficial do ano santo.
O padre José Vieira, contudo, diz que na sua experiência este tipo de acontecimento chega onde a Igreja está, mesmo nas aldeias mais remotas. “Tudo depende da Igreja local. Normalmente as igrejas locais em África são muito obedientes ao que vem do Vaticano, e tentam com gestos concretos e com atitudes concretas pôr em prática o que fazem. É interessante que isto é capilar, a Igreja não se fica só pela cidade, há comunidades onde vivem os crentes, mesmo nas aldeias perdidas no meio do nada. Através da rede de catequistas, da rede de anunciadores da palavra, os gestos e as ideias chegam à parte mais remota dessa mesma igreja”.
Contudo, outro erro é supor que todos os cristãos, em todo o mundo, entendem a misericórdia – e, por conseguinte, o objectivo e a intenção por detrás do Jubileu – da mesma forma. No Sudão do Sul, por exemplo, não é assim. “Uma das coisas que me chocou muito em Juba foi a pena de morte. Fizemos uma campanha para tentar pelo menos fazer com que o Presidente fizesse uma moratória nas execuções. Mas o Presidente disse que sem a autorização da família ele não podia comutar qualquer pena de morte em pena de prisão ou conceder um perdão presidencial. Constitucionalmente podia fazê-lo, mas não se sentia autorizado, moralmente, a comutar uma pena. Isto permite-nos ver um bocadinho a dimensão da tradição da vingança.”
“Na compreensão da sociedade, a maior parte das tribos entende que a família da vítima de homicídio tem direito a uma recompensa, que pode ser a vida de quem matou, pode ser um pagamento de sangue, uma compensação em dinheiro ou em vacas, ou então magnanimamente perdoar e deixar ir em paz. O que eu notei é que o chamamento do sangue é muito forte. Muitas vezes pensava nisso mesmo, que o cristianismo vai ter de ajudar estas pessoas a descobrir o sentido do perdão, porque a vingança não leva a lado nenhum”, recorda.
Actualmente, José Vieira está a viver em Portugal, mas durante os seus muitos anos de missionário admite que acabava por se dedicar mais às obras espirituais de misericórdia do que às corporais. Dedicou-se ao ensino, por exemplo, na Etiópia, e no Sudão do Sul procurava cristianizar o país através das ondas da rádio, “através de uma reflexão diária sobre a palavra de Deus. O objectivo era ensinar outras maneiras de ser gente em África, maneiras em que as mulheres eram respeitadas, a vingança não era exercida, a propriedade era respeitada. Uma das coisas que me preocupava era contar sempre uma história que tivesse um fundo social para as pessoas darem-se conta de que há maneiras diferentes de se ser africano e que melhores do que aquelas que lá tinham”, explica.
Sepultar os mortos
Num país mergulhado em violência quase constante há várias décadas, foram muitos os actos de misericórdia que tocaram o sacerdote, mas a história que opta por partilhar à Renascença é bastante diferente.
Centra-se num irmão comboniano, já idoso, que vivia na missão no Sudão do Sul e que por ser reformado dedicava-se quase exclusivamente à sua grande paixão, a agricultura, fazendo trabalho apostólico sobretudo ao fim-de-semana.
Um dia chegou à missão e anunciou que tinha acabado de fazer um enterro católico para um homem que não era católico. Perante a surpresa de quem o ouvia, respondeu que ose tratava de um homem que foi executado depois de anos no corredor da morte. “Ele apanhou a mulher com um militar na cama, e matou os dois. Claro que foi para o corredor da morte e ao fim de dez anos resolveram matá-lo. Quando lhe perguntaram qual era o seu último desejo disse que queria um funeral católico”.
“O meu colega disse-me: ‘Porque é que estamos cá? É também para isto. Ele queria uma celebração católica e eu dei-lhe uma celebração católica, porque era a sua última vontade.’ Isto tem a ver com sepultar os mortos, que é uma obra da misericórdia a que não damos muita atenção, mas neste caso isso mexeu tanto comigo que foi daí que tive a ideia de fazer uma campanha contra a pena de morte no Sudão do Sul”.
A experiência no Sudão do Sul deixou uma marca indelével no padre José Vieira. Por isso, escolhe como referência cultural que remete para a misericórdia uma representação do Bom Samaritano em que este é o seu colega comboniano espanhol José Parladé.
No Sudão do Sul há mais de 45 anos, Parladé tem-se dedicado por inteiro este povo. Recentemente, disse a um site da ordem missionária que faz o que pode para tentar sarar as feridas de um povo martirizado com “pequenos actos de misericórdia”. E deu um exemplo concreto de surpresa no meio da tragédia, que mostra que todo o trabalho de homens como ele e o padre José Vieira não é em vão.
“Recentemente um grupo de soldados atravessou o Nilo e roubou o gado de uma aldeia, matando oito guardas. Alguns dias mais tarde dezenas de exilados da mesma tribo que os soldados chegaram à mesma aldeia. Mal soube, fui a correr para a aldeia para lhes dar guarida, antes que o povo os atacasse por causa daquilo que os soldados tinham feito. Para minha grande surpresa, quando cheguei vi que os exilados tinham sido bem recebidos, não obstante o que se tinha passado dias antes.”
O Jubileu da Misericórdia teve início em Dezembro de 2015 e termina no dia 20 de Novembro próximo.