Crianças do fogo. Como os meninos de Pedrógão vivem a tragédia cinco anos depois

Uns recusam falar, recalcaram. Outros ainda hoje não conseguem ouvir a sirene dos bombeiros sem terem necessidade de abraçar a mãe. As cicatrizes psicológicas dos mais novos da região do Pinhal Interior são (em alguns casos já) visíveis, mas a incógnita sobre os efeitos no futuro permanece. O incêndio que matou 66 pessoas e feriu mais de 250 foi há cinco anos.

17 jun, 2022 - 06:00 • João Carlos Malta (texto e fotos)



 

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Já foi há cinco anos, mas, às vezes, basta a sirene dos bombeiros tocar para a cabeça e o corpo de Tomás voltar ao grande fogo e à angústia que sentiu. Desde esse dia que a luta com as emoções tem sido uma constante. O dia 17 de junho de 2017 criou um antes e um depois, e abriu um trauma.

Os meses que se seguiram à tragédia, que vitimou 66 pessoas, feriu mais de 250 e destruiu cerca de 500 casas, foram especialmente penosos para o menino que então tinha sete anos.

“Senti muita dificuldade em dormir porque pensava que, quando ia para a cama, podia acontecer outro incêndio e podia morrer”, verbaliza o pré-adolescente agora com 12 anos.

Enquanto lá fora, via as chamas e a destruição de tudo o que o rodeava, só conseguia pensar onde estariam os seus pais e avós. Não sabia deles. O medo de perder a família adensou-se, cresceu e enraizou-se. A mãe Dora lutou durante horas e horas pela sobrevivência, na aldeia de Vila Facaia. Teve de se refugiar num galinheiro para escapar as chamas.

A separação de várias horas, que durou até ao dia seguinte, não mais saiu dos pensamentos de Tomás.


Tomás
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"Senti muita dificuldade em dormir porque pensava que, quando ia para a cama, podia acontecer outro incêndio e podia morrer"

De volta aos dias que se seguiram ao incêndio, recorda-os como intensos e dolorosos. Perdeu um primo. “Andava muito triste, não me conseguia separar da minha mãe. Tinha muito medo de me separar dela. Não se conversava de mais nada, só sobre os fogos e das pessoas que perderam filhos, as casas, tudo”.

Dora anui. A voz fica trémula sempre que volta a falar daquela altura. “Nós vivemos num apartamento e eu não podia sair de casa”, começa por contar.

Recuperar Tomás “não foi fácil”. Mas hoje em dia já lida melhor com o que aconteceu.

“Foi um dia muito triste. Foi difícil para toda a gente, com muitas perdas, mas o tempo foi passando, e conseguimos superar isso”, acredita.

Mas até chegar a este ponto, Tomás passou “por ataques de pânico” e um medo crescente de perder a mãe.

“Se a campainha tocasse às cinco, e ele saísse às cinco menos dez, pronto, era uma berraria, entrava em pânico. Na escola viam-se aflitas. Eu tinha de estar sempre ali (…) Comecei a fazer o meu dia a dia em função dele. Se ele não queria, eu não fazia”, lembra Dora.

O toque da sirene dos bombeiros continua a ser um botão direto no cérebro para o dia do grande fogo.

“A sirene toca, e eu começo a contar aqui em baixo ‘um, dois, três’. Não chego aos quatro, porque o Tomás já está aqui em baixo [ndr:a casa em que vivem tem dois andares]. Fica em pânico, inconscientemente entra em parafuso”, explica a mãe.

Lidar com as emoções

Para ultrapassar estes problemas, o menino teve apoio de dois psicólogos durante os últimos cinco anos. Para contrariar a tendência de a mente voltar ao dia 17 de junho, ensinaram-lhe a “respirar três vezes fundo e pensar em tudo o que havia de bom ao meu redor”.


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"A sirene toca, e eu começo a contar aqui em baixo ‘um, dois, três’. Não chego aos quatro, porque o Tomás já está aqui em baixo [ndr:a casa em que vivem tem dois andares]. Fica em pânico, inconscientemente entra em parafuso", Dora, mãe do Tomás.

Agora pode dizer que “já não tenho tanto medo”. Mas, passado cinco anos, “ainda penso [naquele dia], e, às vezes, tenho umas insónias. Não consigo dormir”.

A equipa da Saúde Mental Comunitária de Leiria Norte, liderada pela psiquiatra Ana Araújo, relata que este era mesmo um dos problemas mais recorrentes no pós-incêndio. “Havia muitos, muitos, muitos problemas de insónia e de ansiedade. Havia muitas reações depressivas e ansiosas”, relembra, acrescentando que a maior parte dos casos foi tratada na fase aguda e que são residuais as situações em que a mesma se tornou crónica.

Há cinco anos que o grupo de cinco profissionais de saúde trata das populações atingidas pelo fogo.

Quando se lhe pede que trace um quadro psicológico das populações afetadas pelo fogo, a psiquiatra não hesita em dizer que “são uma comunidade que ainda está em sofrimento por tudo o que se passou nestes cinco anos, e não só”.


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"São uma comunidade que ainda está em sofrimento por tudo o que se passou nestes cinco anos (...) A pandemia veio prejudicar a capacidade para dar a volta às situações e, portanto, as pessoas que ficaram mais isoladas"

“Em consequência dos incêndios e de tudo o que sofreram, das perdas humanas, dos muitos lutos e das perdas também económicas e financeiras, mas também de tudo o que se seguiu. A pandemia veio prejudicar a capacidade para dar a volta às situações e, portanto, as pessoas que ficaram mais isoladas, mais pensativas, e viraram-se mais para dentro, outra vez”, retrata.

A mesma clínica reconhece que encontraram no terreno crianças ansiosas, outras angustiadas, mas que “com o trabalho que foi desenvolvido essa realidade esbateu-se muito”.

José Manuel Machadeiro, um dos enfermeiros que compõe esta equipa de saúde mental, afirma que foi nas escolas em que houve alunos a morrerem, que os mais novos mais se ressentiram. E reconhece que, durante muito tempo, relatos como o de Tomás, sobre o susto que sente sempre que a sirene dos bombeiros toca, se repetia nas conversas de muitas crianças. Aliás, a mesma reação era relatada por muitos adultos.

O pai no limbo, os filhos em suspense

Rui Rosinha, de 44 anos, era na altura dos incêndios de Pedrogão Grande, bombeiro em Castanheira de Pera. Um acidente na fatídica EN 236-1, quando ia combater o fogo, deixou-o a ele e aos colegas de equipa entre a vida e a morte. Um deles, Gonçalo da Conceição, acabou mesmo por não sobreviver.


A possibilidade de perder o pai marcou profundamente os filhos do ex-bombeiro de Castanheira de Pera, Rui Rosinha, que durante três meses lutou pela vida no hospital.
A possibilidade de perder o pai marcou profundamente os filhos do ex-bombeiro de Castanheira de Pera, Rui Rosinha, que durante três meses lutou pela vida no hospital.

A "estrada da morte", o trecho da a EN 236-1 em que morreram 47 pessoas nos incêndios de Pedrógão Grande.
A "estrada da morte", o trecho da a EN 236-1 em que morreram 47 pessoas nos incêndios de Pedrógão Grande.
Será neste local o memorial às 66 vítimas dos incêndios de Pedrógão Grande da autoria de Souto Moura. Está orçado em 1,8 milhões de euros.
Será neste local o memorial às 66 vítimas dos incêndios de Pedrógão Grande da autoria de Souto Moura. Está orçado em 1,8 milhões de euros.


Rui esteve três meses em coma, e conta já com mais de uma dezena de operações para reconstruir as partes do corpo que as chamas lhe levaram.

Mas o tempo que esteve hospitalizado sem se saber se resistiria aos tratamentos, deixou também sequelas nos filhos que nove e 13 anos. “Tiveram a vida praticamente em suspenso por tudo o que se passou por causa da minha situação. A qualquer momento poderia não aguentar. Foram informados várias vezes de que isso poderia acontecer comigo”, lamenta.

“É complicado gerir toda a envolvente. Diariamente saiam à rua e tudo lembrava o que aconteceu”, revive. E, isso conclui: “mudou as rotinas, mudou a maneira como eles encaravam a vida”.

A ideia de poder perder o pai foi tão real, que ainda hoje é um tema que volta e meia regressa às conversas. “Ainda é uma coisa que, às vezes, falamos. Tentamos de alguma forma exorcizar, mas ainda é difícil. O incêndio ainda é um tabu. Estão muito feridos psicologicamente”, remata.

Bloquear as emoções, criar barreiras mentais

A dificuldade em falar com os mais pequenos sobre o que se passou é um traço que se multiplica na região. É o caso de Ana Bernardes, profissional de saúde que, há cinco anos, perdeu o pai e a mãe quando tentaram fugir às chamas que invadiam a aldeia e acabaram por morrer dentro de um carro às portas do cemitério de Sarzedas de São Pedro, em Castanheira de Pera.


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"Não entendes que eu me estou a esquecer deles, e eu não me quero esquecer".

A filha, à época com dez anos, ainda hoje tem dificuldades em verbalizar o que se passou. “Ela recusa falar sobre o incêndio. No primeiro ano, ainda cá veio, daí para a frente não veio mais. Tem pedido para não vir”, descreve.

Apesar de o tema ser difícil de abordar, porque raramente surge uma oportunidade para falar, há pouco tempo, a agora adolescente confidenciou que houve algo que aconteceu na altura e permanece como uma ferida aberta.

Ana achou que o melhor era protegê-la da tragédia, e não a levou ao funeral dos avós. Mais tarde, a menor soube que os primos, sensivelmente da mesma idade, tinham ido.

Foi em lágrimas que a menina falou do episódio, e é a soluçar que Ana o recorda. “Quando falámos sobre os funerais, ela disse-me: ‘Não entendes que eu me estou a esquecer deles, e eu não me quero esquecer”.

Ana Bernardes pensa que se há muita coisa que a jovem de facto “já esqueceu”, e há outras que pensa que “ela faz por não se lembrar para não sofrer”.


O cemitério de Sarzedas de São Pedro, em Castanheira de Pera, local em que os pais de Ana Bernardes perderam a vida.
O cemitério de Sarzedas de São Pedro, em Castanheira de Pera, local em que os pais de Ana Bernardes perderam a vida.
O abandono marca a aldeia de Sarzedas de São Pedro, em Castanheira de Pera, onde em 2017 seis pessoas perderam a vida.
O abandono marca a aldeia de Sarzedas de São Pedro, em Castanheira de Pera, onde em 2017 seis pessoas perderam a vida.


José Manuel Machadeiro, da equipa da Saúde Mental Comunitária de Leiria Norte, garante, no entanto, que as memórias “ainda estão bastante presentes, nomeadamente daquelas pessoas que perderam os familiares”. E arrisca a dizer que “isso nunca mais vai passar”.

“Há pessoas que perderam os filhos, há pessoas que perderam tudo aquilo que significava para eles a vida, e a vida para elas acabou por não fazer muito sentido. Ainda assim tiveram que continuar”, sublinha.

O facto de estarmos perante um meio populacional pequeno − em que direta ou indiretamente por via familiar ou das relações sociais todos acabaram por ser tocados pela tragédia − faz com que a dificuldade de ultrapassar o trauma coletivo seja maior.

Todos os meses de junho, a partir de 2017, são um espoletador para reviver a dor. Há mesmo um efeito iô-iô de recuperação e recaída nos estados depressivos e ansiosos.

“Houve situações que se manifestaram mais tardiamente, e outras que tiveram manifestações na altura e que agora voltaram”, frisa Machadeiro.

“A saúde mental é pior, porque escondemos sempre”

Regressar ao dia 17 de junho é ainda um processo doloroso para a maioria. Sentada junto ao tanque na aldeia do Nodeirinho, no local em que mais de dez pessoas encontraram abrigo para escapar às chamas, Dina Duarte não esquece a dor ainda escondida das crianças.


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"As crianças põem um sorriso, o olhar traquina e conseguem dar a ideia de que está tudo bem, mas há meninos com traumas muito profundos"

“Falar do incêndio não é fácil, revisitar aquele dia nunca é fácil”, começa por dizer a presidente da Associação de Vítimas dos Incêndios de Pedrogão Grande (AVIPG).

E se em alguns dos 250 feridos do incêndio, as marcas ainda são visíveis no corpo, as sequelas psicológicas são, por vezes, mais difíceis de perceber.

“A saúde mental é pior, porque escondemos sempre. Pomos sempre um sorriso. E não dá para chegar lá. Há coisas que só agora estão a chegar a superfície, quanto maior for o desgosto que cada um passou, mais difícil é”, observa.

E em relação aos mais novos, Dina diz que “põem um sorriso, o olhar traquina e conseguem dar a ideia de que está tudo bem”. “Mas há crianças com traumas muito profundos e que durante muito tempo não conseguiam dormir”, alerta.

Dina diz ainda que têm sido várias as tentativas de estudo de universidades, e que a AVIPG tem ajudado na ponte com as escolas, mas não há muitos resultados.

“Era importante que se fizessem estudos para podermos atuar. As crianças têm os seus mecanismos de defesa e, como nós adultos, bloquearam emoções”, reflecte.


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"Cada vez que vejo aquela imagem [carros carbonizados na EN236-1] não deixo de ficar emocionada, porque é uma imagem muito forte. É a imagem de que no meu país aconteceu uma coisa inimaginável", Dina Duarte.

O brutal impacto em todas as dimensões da vida faz com que, tal como acontece com Dina, muitos dos que ali vivem marquem os acontecimentos pessoais antes e depois do 17 de junho.

“Para mim há um alívio quando passa o 17 e chega o 18, depois no 19 volta tudo, porque é quando morreu o Gonçalo, voltamos a revivê-lo, e a 20 voltamos a descomprimir”, explica.

Tudo o que viu na EN 236-1, afirma Dina, jamais lhe sairá a memória. Os carros carbonizados, os corpos no interior.

“Cada vez que vejo aquela imagem não deixo de ficar emocionada, porque é uma imagem muito forte. É a imagem de que no meu país aconteceu uma coisa inimaginável. É percebermos que tudo pode falhar e percebermos que tudo nos falhou”, sintetiza.

As emoções sobrepõem-se umas às outras. Passados cinco anos, ainda sente revolta, uma tristeza profunda, e a “angústia não só pelos que sobreviveram, mas, acima de tudo, por imaginar aqueles que perderam a vida como perderam”.

Desde aí, Dina luta para que as promessas que foram feitas após a tragédia sejam cumpridas, e que seja mais seguro viver no Interior do que era há cinco anos. Mas esse trabalho está longe de estar completo.

Tanto por fazer

Basta andar pelas estradas interiores da região e é recorrente ver eucaliptos a crescerem à beira da estrada, prometendo em pouco tempo criar corredores de arvoredo altamente inflamável. Os 10 metros de limpeza que a lei impõe são em muitos destes locais pouco mais do que uma miragem.


Ao entrar nas estradas interiores da região vemos muitas vezes eucaliptos a nascerem e crescerem à beira das vias.
Ao entrar nas estradas interiores da região vemos muitas vezes eucaliptos a nascerem e crescerem à beira das vias.
O material combustível está muitas vezes espalhado perto das estradas.
O material combustível está muitas vezes espalhado perto das estradas.


Dina sente que há que continuar a falar do 17 de junho enquanto “não for cumprido o que tem de ser cumprido”.

E o sentimento generalizado na população é de frustração e de falhanço. As conversas que se têm ou se ouvem acabam sempre com a lamentação de que, se os fenómenos naturais que ocorreram há cinco ano se repetirem, o Pinhal Interior pode voltar a chorar mortes.

Ainda assim, Ana Bernardes, que perdeu os pais no incêndio, recorda uma conversa recente com a filha, agora com quase 15 anos, para projetar alguma esperança.

O tema era a escolha da área de estudos para o 10º ano, e a menina puxou o tema das “florestas e das fiscalizações, até a propósito das limpezas”, e referiu que um dia “era algo que ela gostava de estudar”.

“Achei curioso porque foi a conversa mais próxima do tema que nós tivemos de há um ano para cá”, confidencia Ana, que acrescenta que a filha não é caso único.

“Tenho conversado sobre os miúdos, principalmente os que vivem no território, e muitos em termos futuros e profissionais pensam seguir algo que os ligue ao episódio, à floresta”.

“Marcadas para sempre”

O impacto do que aconteceu para os mais novos, segundo o ex-bombeiro Rui Rosinha, foi “muito profundo”.


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"[Perder o pai] ainda é uma coisa que, às vezes, falamos. Tentamos de alguma forma exorcizar, mas ainda é difícil. O incêndio ainda é um tabu. Estão muito feridos psicologicamente", Rui Rosinha.

“Tenho para mim que as crianças desta zona estão marcadas e se calhar até ainda de uma forma um pouco escamoteada, porque ainda estamos por perceber qual é o impacto que isto vai ter na vida delas”, sublinha.

Ainda assim num exercício de futurologia arrisca: “Vão ficar marcadas para sempre”.

Dora luta para que o pequeno Tomás não fique com essas cicatrizes interiores. Mas não está muito optimista.

Esta jovem mãe, que trabalha no Centro de Saúde de Pedrógão Grande, acha que por “muita terapia” que Tomás faça, muitos “exercícios de respiração”, “nunca vai esquecer”.

Também costumo dizer ao meu filho: “Olha como a tua trisavó se lembrava do Titanic, tu vais-te lembrar e vais contar aos teus netos e bisnetos a desgraça que isto foi”.

Dora diz que o importante é aprender “a lidar, a gerir”.


Mas a ameaça da repetição da tragédia está muito presente. “Quando voltar a acontecer no futuro, isto vai ser pior e acredito que haverá mais mortes”.

Projetando novo cenário diabólico, Dora diz que não irá tentar fugir outra vez, nem entregará os filhos. “Vou deixar-me estar em casa quietinha”, antevê.

Em seguida, Dora respira, vira-se para o filho e solta: “É um dia de cada vez Tomás, um dia de cada vez.”


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