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Pedrógão cinco anos depois. Floresta volta a ser barril de pólvora à espera de ignição

17 jun, 2022 - 12:47 • João Carlos Malta (texto e fotos)

A repetição da tragédia é um temor comum na região dos grandes fogos de 2017. O ordenamento da floresta ficou na gaveta dos desejos. Muitos dizem que a realidade não se adaptou às leis que foram gizadas nos gabinetes de ministérios. Enquanto isso os eucaliptos e as acácias crescem, dando combustível aos piores pesadelos dos locais.

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O fogo aconteceu. Matou. Chocou. E disse-se que nunca mais podia acontecer. Aconteceu logo quatro meses depois, em outubro de 2017. Seguiram-se discursos que prometeram a revitalização do interior e a reforma da floresta. Prometeram-se milhões, mas, passados cinco anos, parece que pouco ou nada mudou e o eucalipto e as infestantes são uma ameaça real.

A ideia de que no terreno estão a crescer as condições para a repetição da tragédia adensa-se entre os locais da região do Pinhal Interior. A frustração misturada com revolta adensa-se e está presente na maioria dos discursos.

“Gostava de fazer um balanço positivo, mas infelizmente não conseguimos. Não tivemos nenhum ordenamento propriamente. O pouco que se fez, foram as associações que têm trabalhado para os proprietários que entendem por bem ordenar alguma parte da floresta. Também algumas grandes empresas, sobretudo de pasta de papel ou ligadas a ela, têm de algum modo, tentado reordenar aquilo que lhes diz mais respeito”, afirma Margarida Guedes, presidente da Apiflor, associação que junta 600 proprietários florestais locais.

Em relação à possibilidade de haver novos fogos de grande dimensão, Margarida Guedes diz que toda a manta florestal é “propícia” a que isso aconteça.

“Vai ser difícil conter. Nunca será como antes, como é óbvio, porque já não temos a mesma mancha. No fundo, as expectativas que nós tínhamos depois do incêndio 2017 foram muito goradas, e eu diria que o foram porque o Estado Central não nos chegou com projetos que fossem exequíveis. Às vezes temos decretos, leis, mas que não chegam para nada”, relata.

As promessas do passado

Ou seja, promessas como a que o primeiro-ministro, António Costa, fez há três anos em Pedrógão Grande quando se assinalavam os dois anos da tragédia parecem uma miragem.

"Gostava de fazer um balanço positivo, mas infelizmente não conseguimos. Não tivemos nenhum ordenamento propriamente", Margarida Guedes, presidente da Apiflor.

“As causas dos incêndios só serão substancialmente reduzidas quando se ‘vencer o desafio extraordinário de revitalizar estes territórios de baixa densidade’ e se ‘concluir a reforma da floresta’”, afirmou Costa na cerimónia de assinatura de protocolo para a criação do Memorial às Vítimas dos Incêndios de Pedrógão Grande, que decorreu na Câmara de Castanheira de Pera.

E, acrescentou ainda, que “ninguém nos poderá perdoar alguma vez se não fizermos tudo aquilo que está ao nosso alcance para enfrentar estes dois desafios”.

“Não são dois desafios para amanhã, mas dois desafios de médio e longo prazo que não podemos adiar mais uma vez, porque se não, mais uma vez, falharemos o compromisso que temos de ter de que isto nunca mais volte a acontecer”, concluiu à época.

Dois anos antes, Marcelo Rebelo de Sousa depois dos fogos de outubro, numa comunicação ao país feita em Oliveira do Hospital, começou por dizer que nunca esqueceria o que ali se passou. “Vou reter para sempre as imagens de Pedrógão Grande”. “Estes mortos não mais sairão da minha consciência”.

Marcelo foi perentório a dizer que esta era “a última oportunidade para levarmos a sério a floresta e para a convertermos em prioridade nacional, com meios para tanto, senão será uma frustração nacional”. “Se houver margens orçamentais que se dê prioridade à floresta e aos fogos”.

O mais alto magistrado da nação apelava ainda a um consenso político, porque “os governos passam, mas a prioridade deve manter-se”.

Nem as aldeias estão protegidas

No terreno, as palavras dos governantes têm pouca tração. “Quem passa aqui pelo território e o vê, percebe que está mais sensível e caminha para ter um risco maior do que tinha em 2017”, diz o engenheiro florestal José Dias, que atualmente gere o campismo de Pedrógão Grande.

Dias defende que nem os mínimos estão garantidos e que nem as aldeias estão defendidas nos 100 metros que a lei determina.

"Quem passa aqui pelo território e o vê, percebe que está mais sensível e caminha para ter um risco maior do que tinha em 2017", José Dias, engenheiro florestal.

“Não conseguimos? Somos todos culpados. Agora o julgamento do comandante dos Bombeiros de Pedrógão e de outras pessoas? Se fosse juiz, culpados são os governantes depois do que aconteceu [em 2017], e os técnicos”, afirma o engenheiro.

O especialista não tem dúvidas em dizer que “não se aproveitou a oportunidade”, anunciaram-se medidas “que acabam por trazer alguns milhões” e algumas “empresas grandes fazem intervenções”. Mas nada com “o caráter estratégico” de alteração da paisagem que se exigia.

A presidente da Apiflor anui que a monocultura do eucalipto é um problema, mas considera que as infestantes como as acácias são uma questão muito mais grave. “O eucalipto é mau, mas pode ser cortado, desbastado. O infestante, isso é um problema e vai ser um problema do país”, afirma.

“As acácias estão cheias de sementes, e não deixam crescer mais nada”, acrescenta.

Margarida Guedes queixa-se da falta de adequação das leis ao terreno. A floresta é naquela região uma fonte de rendimento das populações, e não se podem impor espécies sem ter em atenção o impacto económico que as mudanças criam.

Outra das questões estruturais por resolver é a dos terrenos abandonados, e das parcelas detidas por proprietários sem capacidade para tratar deles.

Soluções

A presidente da Apiflor defende a criação de uma associação, ou uma entidade reguladora, que juntasse vários terrenos (o minifúndio impera na região), que tivesse capacidade para concorrer a fundos e os alugasse aos proprietários.

Essa organização exploraria o terreno e pagaria o aluguer aos donos. “Talvez assim por um período de tempo nós pudéssemos plantar e fazer uma floresta ordenada”, considera.

“O proprietário ganhava alguma coisa porque não tinha que investir, mas tinha lá a sua propriedade. Ao final daqueles anos tinha a propriedade bem cuidada”, acrescenta.

“As acácias estão cheias de sementes, e não deixam crescer mais nada”, Margarida Guedes, presidente da Apiflor.

Já José Dias diz que “o direito de propriedade está a estrangular tudo” e os próprios governos criam leis como se “houvesse aqui latifundiários e grandes proprietários, que não existem”.

Sobre os incentivos para diversificar as espécies da floresta da zona, Margarida Guedes defende que a burocracia continua a ser um travão. Isto numa zona em que a população é envelhecida e a literacia é baixa. “O que se recebe não é suficientemente atrativo”, diz.

O Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) que agora se anuncia, explica, padece dos mesmos problemas.

Margarida queixa-se ainda da falta de ligação das universidades e dos investigadores ao terreno. Existem estudos, muita produção científica, mas esta não chega ao terreno.

Devia ser descentralizado. Devia haver uma Secretaria de Estado para estas coisas. Mas era próxima das pessoas, não era um sítio onde ninguém vai, e para lá chegar temos que pedir 50 vezes para depois não nos atenderem”, lamenta.

Quem tem o quê?

Já Dina Duarte, presidente da Associação de Vítimas dos Incêndios de Pedrogão Grande, acredita que o país inteiro pode falar da necessidade de reflorestar com espécies autóctones (como o castanheiro ou medronheiro), mas que essas ideias esbarram em primeiro lugar em saber o que cada proprietário tem e onde. O cadastro dos terrenos continua a ser um problema.

Ou seja, uma coisa é o que queremos como comunidade, diz, e outra é o que “os proprietários podem e conseguem”.

Ainda assim, deixa um aviso para o futuro: “Espero que qualquer responsável público que assuma uma presidência, uma direção de serviços, uma secretaria de Estado, um ministério que tenha a ver com a floresta perceba a dimensão do que tem em mãos. Se não for ativo podem morrer pessoas pela sua inação”.

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