Independentemente do contexto da comunidade religiosa, e do contexto nacional, é possível identificar isso?
É possível identificar, dentro destas igrejas e contextos, circunstâncias muito próprias que iam mantendo muitos destes comportamentos de agressão sexual. Por um lado, a prioridade sempre foi a reputação da Igreja e, com isso, todas as confissões, de alguma forma, descredibilizavam as vítimas. Havia até alguma intimidação. Quando muito, havia o afastamento de padres, ou pastores, para outras igrejas, muitas vezes até para missões fora do país - África, Ásia, América Latina.
Depois havia uma circunstância associada à própria fé das pessoas. Em todas estas confissões religiosas destaca-se muitas vezes o perdão, como pilar da fé. Tudo era resolvido com o argumento do perdão - ou que haveria algum problema em quem não perdoasse.
Eu recordo, pelo menos, uma das pessoas que cheguei a ouvir, há uns anos, que dizia que, a partir de certa altura, a mãe insistiu que tinha havido determinado problema, houve uma espécie de admissão de que o problema tinha ocorrido, mas que tinha de se ultrapassar, com os argumentos todos centralizados na questão da Igreja e da importância do perdão. Houve um momento em que ela não estava a conseguir perdoar, e sentiu uma inversão da responsabilidade.
Este trabalho que foi feito em Portugal, pela Comissão Independente, serviu também para fazer essa inversão e colocar o ónus em quem abusou, e não nas vítimas?
Eu creio que sim, ou seja, o trabalho que a Comissão faz - reconhecendo o valor profissional das pessoas que a integram -, creio que é um trabalho correto, isento e independente. E que todas sabiam que a pressão que iam ter era enorme, e que iria haver desvalorização das denúncias.
Creio que esse trabalho foi positivo e há aqui também uma estratégia, que me parece que foi interessante e propositada, quando em outubro [de 2022] foi comunicado numa conferência de imprensa que a Comissão tinha validado 400 e poucos casos. É que há um aspeto no processo de regulação do abuso sexual, em que as pessoas tipicamente sentem muita desconfiança. Vão revelar a quem? Parte muito da perceção que têm, se eventualmente vão ser protegidas, se não vão ser enxovalhadas ou intimidadas, etc.
Creio que a Comissão procurou fazer isso bem, ao deixar ficar claro que as pessoas podiam fazer essa denúncia. Depois, ao anunciarem que havia 400 e poucos casos validados, entendi isso como uma mensagem, na reta final do funcionamento da Comissão, no sentido de dizer que quem estiver com dúvidas em relação a isso, não está só. Creio que foi essa a mensagem.
Confesso que tenho alguma curiosidade em perceber o número total de casos que foram detetados, e se nestas últimas semanas e meses não houve até um aumento deste número de casos.
Não há nenhum estudo que nos diga que os abusos sexuais ocorrem devido ao celibato
Sendo que os casos validados foram os recebidos até ao final de outubro. Ou seja, a Comissão pode ter recebido outros casos posteriormente, mas os que analisaram e serão revelados agora são apenas os que foram encaminhados até essa altura. Em relação à Igreja Católica, nesta questão dos abusos, fala-se sempre no celibato, há quem insista que é uma das causas para os abusos acontecerem. É um fator relevante, tendo em conta que referiu há pouco que ocorrem noutras Igrejas onde não há a questão do celibato?
É uma boa questão. Isto acaba por ser transversal a muitas outras Igrejas. Obviamente, a discussão em torno do celibato é um assunto que diz respeito à Igreja Católica e ao seu modo de funcionar, confesso que não tenho opinião sobre isso…
O que é importante destacar é que não há nenhum estudo que nos diga que os abusos sexuais ocorrem devido ao celibato. Temos de ter a noção de que estamos a falar de pessoas. Temos casos de abuso sexual praticados por professores, médicos, as mais variadas profissões, e pais, avós, elementos da família. Não podemos atribuir ao celibato a responsabilidade por este tipo de atos. O que temos é pessoas que, em determinados momentos, têm problemas ao nível da sexualidade. E aqui vai tocar um dos pontos que, para o futuro, parece-me importante olhar: reconhecer que a sexualidade faz parte do ser humano, independentemente de ser religioso ou não, e que em determinados momentos pode haver a necessidade de intervenção.
As próprias religiões, confissões religiosas, têm de ter esta noção de que há pessoas que se envolvem (nas religiões) porque isso lhes permite um maior contacto com pessoas ou famílias mais frágeis, e pode haver esse aproveitamento das situações. O que quero dizer é que há aqui um padrão de funcionamento dos agressores sexuais que tende a ser semelhante, no contexto religioso ou não.
Portanto, seja num contexto educativo ou do desporto, o padrão pode ser identificado como sendo o mesmo?
É muito semelhante. Aquela ideia que muitas vezes se tem, de que o agressor sexual é um predador que está ali atrás da esquina, à espera de atacar a vítima. Evidentemente que isso acontece - e acontece nalguns casos – , mas não corresponde à maioria dos casos e, em especial, quando estamos a falar de abuso de crianças e adolescentes.
O que acontece é que há um padrão e uma dinâmica de funcionamento: uma aproximação sucessiva, para ganhar a confiança da criança ou do adolescente, o que for mais frágil do ponto de vista emocional, ou tenha menos ligações ao contexto da família, perceber se podem ter uma ascendência sobre a criança.
O processo de abuso, muitas vezes, até é continuado e tem características muito próprias, em termos do funcionamento. A partir de certa altura tende a começar a complicar-se, a haver maior culpabilização da vítima, responsabilizando-a ao mesmo tempo por aquilo que fez. O padrão de funcionamento tende a ser muito semelhante, seja fora da Igreja ou dentro da Igreja.
As circunstâncias em que as Igrejas em si funcionam, de alguma forma, podem proporcionar esse contacto com mais vítimas. Aquelas circunstâncias de que falámos há pouco, da proteção, da própria reputação, do não levantar muitas ondas, ter uma estratégia de descredibilizar as vítimas, essa postura protege o agressor. E muitos deles estavam em contextos onde se sentiam protegidos, porque sabiam que, quando muito, no limite dos limites, podiam apenas ser afastados de onde estavam.
A única diferença que eu consideraria - de ser fora da Igreja, ou dentro, vamos dividir assim - era, de facto, as circunstâncias da própria Igreja, que protegiam os agressores.
A Igreja Católica em Portugal está num momento crucial para marcar a diferença
Na segunda-feira teremos uma melhor noção da dimensão dos abusos, e é preciso olhar para o que se segue. O que é que os resultados podem fazer mudar, em primeiro lugar na Igreja, mas também na forma como se olha este fenómeno?
A Igreja Católica em Portugal, na minha opinião, está num momento crucial para marcar a diferença, não só em termos nacionais, que evidentemente é o que importa. Mas creio, sinceramente, que pode marcar a diferença com o que aconteceu em muitos países. Por um lado, é reconhecer que isto aconteceu e, mais importante, reconhecer que isto pode vir a acontecer no futuro. E seguramente vai acontecer no futuro.
Eu costumo dizer que as entidades são como as pessoas: devem reconhecer o erro, procurar que não se repita, e pedir desculpa quando necessário. E este é um aspeto importante. E mais do isso, haver esta preparação para o futuro, com formação interna sobre o que é que é o abuso sexual, os elementos da Igreja Católica perceberem como é que funcionam tipicamente os agressores, que cuidados é que devem ser tomados, e que há pessoas que se envolvem nas igrejas precisamente com este tipo de intenções.
O cuidado ao nível da prevenção tem de se uma prioridade?
Não só, mas também. Infelizmente não podemos afirmar, seja em que contexto for, que se reconhece o problema e não vai voltar a acontecer. Não acredito. Tem de haver este trabalho de prevenção, assumir que a sexualidade é um tema que tem de ser abordado como qualquer outro, e que as igrejas, pelas suas características, muitas vezes podem levar a que algumas pessoas se envolvam no seu funcionamento, com outro tipo de intenções.
Há um pensamento que muitas vezes surge em muitas igrejas - seguramente já ouviram - que é: 'aqui não há disso'. Seja na igreja da aldeia x, da vila y ou da cidade z, muitas vezes é isto: 'isso não há cá'. Não, não! Pode eventualmente um dia vir a acontecer! E tem de haver esta formação interna, dos próprios membros da Igreja Católica, sobre o abuso sexual, como é que funcionam os agressores, desenvolver planos de segurança, e quando houver queixas, qual é o fluxo e o seguimento que têm de ter. Tudo isto é importante.