Dulce Rocha: "Prescrição de crimes de abuso sexual devia ser de 30 anos”

Presidente do Instituto de Apoio à Criança defende a criação de uma comissão de revisão dos crimes sexuais no Código Penal.

09 fev, 2023 - 07:18 • Liliana Monteiro



Foto: Ali Haider/EPA
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A presidente do Instituto de Apoio à Criança (IAC), Dulce Rocha, defende que a prescrição de crimes de abuso sexual devia ser de 30 anos.

Em entrevista à Renascença, Dulce Rocha defende, igualmente, a criação de uma comissão de revisão dos crimes sexuais no Código Penal e diz detetar agressores impunes e poucas condenações.

A presidente do IAC considera que está na hora de “haver um clamor” para que Parlamento e Governo promovam uma alteração às punições dos crimes sexuais contra menores e adolescentes porque “temos a sensação que muitos dos agressores se sentem impunes e empoderados com penas leves ou suspensas”.

A quatro dias de ser revelado o relatório da Comissão Independente para o Estudo de Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa, Dulce Rocha, magistrada há muito dedicada à causa de e leiolhar também para as vítimas, considera que está na hora de melhorar os códigos à luz de vários factos hoje conhecidos e comprovados por estudos científicos.

"A realidade tem demonstrado que as vítimas demoram dezenas de anos a conseguir falar e não faz sentido alhearmo-nos desse problema", lembra

“Sabemos que a média [para denúncia de abusos sexuais] é, pelo menos, de 30 anos após a maioridade. Se há pessoas que demoram tanto tempo, essas pessoas não podem ficar indefesas e frustradas sem ver o agressor punido”, defende.

"Se a pessoa fica com trauma e sofrimento e só consegue revelar o que aconteceu passado muito tempo, isso tem de ser tido em consideração. Os 10-15 anos de prescrição previstos não são suficientes”, sentencia.


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Dulce Rocha defende que a prescrição tem de ser revista e que tem de haver revisão das punições

Mexer na prescrição destes crimes é, por isso, importante para Dulce Rocha, que sublinha ser necessário “um olhar diferente do ponto de vista da vítima”.

Nestas declarações à Renascença, a magistrada admite que, legalmente, Portugal registou uma grande evolução em relação aos crimes sexuais, impulsionada também pelo processo da Casa Pia de Lisboa, mas defende uma comissão de revisão da lei.

“Precisamos de ouvir as pessoas da prática, de não termos nas comissões de revisão apenas pessoas que vêem as coisas em abstrato, sem nunca terem ouvido uma vítima, sem terem visto uma lágrimas a correr pela cara e soluços que não acabam. Estamos muito fechados na academia e Assembleia e é importante ouvir a sociedade civil e organizações não governamentais pela proximidade que tem com as populações e com este problema”, reitera.

O caminho passaria também pelo agravamento das penas pelo menos nos limites máximos porque, diz, “são pequenas e pode constantemente suspender-se penas”.

A presidente do IAC lamenta que exista um Código Penal mais preocupado com os crimes contra o património do que contra as pessoas.


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“Sabemos que a média [para denúncia de abusos sexuais] é, pelo menos, de 30 anos após a maioridade."

“Sempre foram desvalorizados os crimes sexuais porque se cria a ideia que as vitimas têm muita vergonha e não se querem queixar. Um inquérito extenso a vítimas sexuais mostrou já que elas não se queixavam porque não confiavam no sistema de justiça e tinham medo do agressor”, sustenta.

A ausência de transparência em relação a esta realidade criminal é um factor que preocupa a presidente do IAC. “Não se divulgam estatisticamente os números de queixas e os processos. Sou defensora de que a informação e a verdade libertam. Se continuarmos a ocultar o fenómeno ele continua a desenvolver-se e ninguém o critica”, lamenta.

Dulce Rocha considera que as condenações são poucas porque a prova não é valorizada e descredibiliza as queixas das vítimas. “É um círculo vicioso. Não saímos daqui e é preciso valorizar estas pessoas abusadas e os depoimentos”, acrescentando que “a mentalidade de exigir da criança um comportamento adulto e desresponsabilizar o adulto tem de acabar”.


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“Sempre foram desvalorizados os crimes sexuais porque se cria a ideia que as vitimas têm muita vergonha e não se querem queixar. Um inquérito extenso a vítimas sexuais mostrou já que elas não se queixavam porque não confiavam no sistema de justiça e tinham medo do agressor”

Questionada sobre que impacto teve a Comissão Independente para o estudo de abusos sexuais de crianças na igreja, Dulce Rocha não hesita: “Comissões como esta trazem conhecimento."

"Vamos saber mais sobre o que aconteceu na sociedade e as vítimas vão sentir-se retratadas nessas queixas. Foi uma decisão correta e justa”, refere, ressalvando, contudo, que “a comissão tem muito poucos poderes", porque "comunica ao Ministério Público e a maior parte dos casos estão prescritos e o processo é arquivado, ou até nem se constitui processo”.

Defensora de maior reconhecimento das vítimas na lei portuguesa, Dulce Rocha diz também que é preciso olhar para o abusador que se quer ressocializado, como oportunidade para ter apoio terapêutico e tratamento daquilo que, muitas vezes, é uma compulsão que origina desejos de maltratar crianças.

A presidente do IAC conclui que há países que já evoluíram muito em matéria de lei de abusos sexuais de menores e não só: são os casos do Canadá e do Reino Unido, onde os crimes não prescrevem. Dulce Rocha sabe que Portugal não entrará, muito provavelmente, nessa lista, mas não pode fazer parte do conjunto de países que desvaloriza as vítimas e o seu sofrimento.


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