27 out, 2021 - 21:15 • Fábio Monteiro
Marcelo é Presidente da República à moda de Marcelo: é árbitro, mas, ao mesmo tempo, também é jogador. E disso são prova diferentes notícias dos últimos dias: num plano, fez “diligências” para tentar aprovar o Orçamento do Estado para 2022; noutro, ameaçou o Governo que ia dissolver a Assembleia da República e convocar eleições, caso a proposta não fosse aprovada; e num terceiro conversou com Paulo Rangel (a pedido do próprio) sobre a data das legislativas, tendo em vista que as eleições diretas do PSD agendadas para 4 de dezembro.
Para Marina Costa Lobo, as várias movimentações do Presidente pecam por ser “tardias”, mas também “extravasam competências”. “O Presidente deve ser um moderador e um árbitro, não deve ser um jogador. Nestes últimos dias, claramente Marcelo emerge como um jogador. E um jogador em que não se entende exatamente com que consequências para o sistema político. Era importante que voltasse a ter maior distanciamento”, diz a cientista política e professora no Instituto de Ciências Sociais (ICS) de Lisboa, em declarações à Renascença.
António Costa Pinto tem um entendimento diferente. Primeiro, “ninguém poderá acusar o Presidente de destabilizar tendo em vista que temos um Governo que se prepara para cair.” Segundo, jogador ou árbitro, Marcelo certamente não é um “espetador”, frisa o politólogo.
Como o semipresidencialismo em Portugal é "um regime fluído", o Presidente da República tem larga margem na sua capacidade “intervenção informal”. “Num sistema semipresidencial em que um Governo é minoritário, o Presidente da República vê os seus poderes aumentados. A qualquer altura pode dissolver a Assembleia da República”, sublinha.
Apesar de “criticáveis politicamente”, não há nenhuma incompatibilidade nas movimentações de Marcelo. De acordo com o politólogo, a estranheza advém somente de comparações com os antecessores. “Muitas vezes, a análise do papel do Presidente na vida política sofre justamente da natureza tradicional como tem sido utilizado os poderes presidenciais no passado”, diz.
Marcelo Rebelo de Sousa “introduziu um novo estilo político, sem dúvida nenhuma, por fazer um comentário político às ações governamentais”. Mas isso “nunca feriu os seus poderes”. Foi apenas Marcelo a ser Marcelo ou, conforme disse o próprio esta quarta-feira, em declarações aos jornalistas: “O Presidente da República é como é. Eu sou como sou e falo com toda a gente.”
Durante o último mês, Marcelo prometeu muitas vezes e, quase de certeza, irá cumprir: devido ao chumbo do Orçamento de Estado para 2022, a Assembleia da República será dissolvida. Para tal acontecer, neste momento, só faltam cumprir formalidades: ouvir os partidos políticos e o Conselho de Estado – que já tem reunião marcada para dia 3 de novembro, a próxima quarta-feira. (As eleições devem ocorrer em janeiro.)
O Presidente da República, em todo o caso, não está de nenhuma forma obrigado a tomar este rumo. Legalmente, poderia dar ao Governo de António Costa mais 60 dias para que este preparasse uma nova proposta de OE. “Do ponto de vista político, julgo que o Presidente da República foi precipitado”, diz o constitucionalista Miguel Prata Roque, em declarações à Renascença.
Segundo o especialista, a forma como Marcelo comunicou com os partidos e com os atores políticos, durante as últimas semanas, “foi baseada mais na lógica de ameaça e de chantagem do que propriamente de promoção de consenso, porque, de acordo com a Constituição e com a prática constitucional, não há qualquer ligação automática entre a não aprovação de um Orçamento do Estado e a dissolução da Assembleia da República.”
Dissolvendo a Assembleia da República, o Presidente da República “está a criar mais instabilidade do que a devolver serenidade ao sistema”, opina Miguel Prata Roque,
Por sua vez, Paulo Otero, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, compreende a opção de Marcelo, mas lembra que poderia ter optado por uma solução diferente – sem ida obrigatória a eleições.
“O Presidente da República poderia ter optado por, no fundo, dizer que se o Orçamento for rejeitado haverá uma nova tentativa de solução governativa dentro do atual quadro parlamentar. Isto é, podia desencadear a ideia de um novo Governo dentro da atual composição do Parlamento”, afirma.
Na terça-feira à tarde, enquanto na Assembleia da República ainda discutia o OE para 2022, Marcelo Rebelo de Sousa reuniu-se com Paulo Rangel. A notícia do encontro foi recebida com pasmo por Rui Rio, quando confrontado pelos jornalistas; a expressão de sentimento traição foi evidente.
“Acho muito estranho que o Presidente da República receba um putativo candidato à liderança de um partido. Se for verdade o que vem nos jornais, que ainda por cima o que lá foram tratar foi a data das legislativas e tendo em vista a data das diretas do PSD, significa que vamos condicionar o país às diretas do PSD”, afirmou Rio, já na quarta-feira.
Marina Costa Lobo vê na reunião de Marcelo “uma intrusão desnecessária na vida do principal partido da oposição”. Todavia, mais uma vez, nada impede Marcelo de assumir um papel na luta interna do PSD.
“Até agora nunca aconteceu um Presidente da República ser também presidente de um partido. Mas há alguma coisa na Constituição que o interdite? Nenhuma”, lembra António Costa Pinto.
Dentro do âmbito da “intervenção informal”, “se o Presidente da República decide telefonar a um dos candidatos do PSD ou telefonar a Jerónimo de Sousa para uma reunião em Belém, salvo melhor opinião isso faz parte da vida política. Se decide fazer intervenções informais no seu antigo partido, também faz parte”.
Para o constitucionalista Miguel Prata Roque, Marcelo foi, acima de tudo, “imprudente” em encontrar-se com Rangel. “Como há divergência entre o líder do PSD, Rui Rio, e o candidato a líder, Paulo Rangel, é estranho que o Presidente da República tenha reunido, enquanto decorria um debate na Assembleia da Republica, sobre os timings da marcação de uma eleição legislativa”, diz.
Alegadamente, Marcelo Rebelo de Sousa conversou com deputados do PSD Madeira esta semana, numa tentativa de tentar fazer aprovar o OE.
Perante essa possibilidade, o constitucionalista Miguel Prata Roque mostra-se incrédulo. “Se isso acontecesse, seria uma grave interferência do titular de um cargo que é um cargo de moderador, no exercício da função legislativa orçamental, que é a função mais nobre do Parlamento”, comenta.
O constitucionalista afirma ainda que não “é crível que um Presidente da República, qualquer que ele seja, contacte um presidente de um Governo regional para influenciar deputados que foram eleitos por determinado círculo”.
Em 2019, Marcelo Rebelo de Sousa teve nas mãos o mesmo poder que Cavaco Silva teve quatro anos antes: exigir um acordo por escrito aos partidos da esquerda. Mas não o fez.
Marina Costa Lobo diz que esta decisão foi um erro: o Presidente devia ter exigido “ao PS, que que não tinha maioria absoluta que assinasse um acordo de incidência parlamentar, tal como fez o seu antecessor Cavaco Silva. E que foi fundamental para assegurar a estabilidade governativa”, defende.
António Costa Pinto discorda. “Tendo em vista que um dos partidos não ia aceitar esse acordo, podia ser um fator de instabilidade” à partida, explica.