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Foi uma vez o SEF
A história do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) em cinco capítulos.
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Capítulo 1: A história do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras

Foi uma vez o SEF. Capítulo 1: A história do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras

31 mar, 2023 • Celso Paiva Sol , André Peralta (sonoplastia)


A história do SEF mistura-se com os momentos mais marcantes do próprio pais. A adesão à CEE e posterior transformação em União Europeia, a presença no espaço Schengen, na Frontex e em vários outros mecanismos de proteção das fronteiras europeias, na organização dos mais revelantes eventos internacionais, e na gestão do exponencial aumento do número de estrangeiros a viver em Portugal - nesta altura já quase 10% do total de residentes. Um caminho também feito de muitas polémicas, e que acaba precisamente da sequência daquela que mais abalou o serviço.

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No Estado Novo, a entrada, permanência e saída de estrangeiros no continente e ilhas esteve sempre a cargo de polícias políticas. Entre 1933 e 1945, era uma incumbência da sessão internacional da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE).

Depois, de 1945 até 1969, a missão transitou para a Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE). E, por último, entre 1969 e 1974, essas competências foram exercidas pela Direção-Geral de Segurança (DGS).

Nomes diferentes, mas sempre a mesma missão: Verificar os postos de fronteira terrestres, marítimos e aéreos - controlo de passaportes incluído, impedir a entrada de estrangeiros indocumentados ou indesejáveis, organizar o registo geral e cadastro dos estrangeiros com residência permanente ou eventual em Portugal, aplicar sobre os estrangeiros a vigilância e as multas consideradas necessárias, combater acções de espionagem e reprimir o comunismo com origens exteriores, e colaborar com todos os organismos policiais estrangeiros.

A revolução de 25 de Abril de 1974 levou à queda da ditadura e à imediata extinção da DGS – formalizada por um decreto-lei aprovado nesse mesmo dia - e com ela a dispersão das suas funções por vários outros organismos.

No caso dos estrangeiros, o diploma assinado pelo presidente da Junta de Salvação Nacional, António de Spínola, determinou que a Polícia Judiciária ficava com a investigação criminal, que a Guarda Fiscal passava a vigiar e fiscalizar todas as fronteiras e que as Forças Armadas ficavam com a custódia de toda a documentação de arquivo relativa a cidadãos estrangeiros.

Poucos meses depois, embora já fruto do trabalho de três governos provisórios, dá-se nova mudança na gestão dos estrangeiros.

Em novembro de 1974, foi criada a Direção do Serviço de Estrangeiros – na dependência direta do então Comando Geral da PSP – e aí se voltaram a juntar documentos, fiscalização e investigação. Mas não as fronteiras, porque essas continuaram a estar a cargo da Guarda Fiscal, força que dependia do Ministério das Finanças.

O trabalho começou, no entanto, a ser tanto, que essa versão durou pouco mais de ano e meio. Em junho de 1976, passou a chamar-se apenas Serviço de Estrangeiros (SE), e autonomizou-se.

AINDA SEM O "F" DE FRONTEIRAS

Apesar de continuar a ocupar instalações da PSP, e de ser ainda dirigido por militares e composto maioritariamente por pessoal do quadro da polícia, o SE passou a depender unicamente do Ministério da Administração Interna.

Ângelo Correia, que tutelou essa pasta entre 1981 e 1983, lembra que encontrou um serviço em que “metade do efetivo eram polícias da PSP, mas também tinham homens do Exército, da Guarda Fiscal e civis que tinham sido contratados. Era uma mescla de pessoal sem uma unidade corporativa, sem uma unidade grupal”.

Um organismo que desde o início, e até 1981, foi liderado pelo coronel de infantaria do Exército Ramires Ramos - algo que a chegada do novo ministro veio alterar.

Portugal já tinha assinado o acordo de pré-adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE), e Ângelo Correia entendia que “a visão do SE estava limitada, e que devia caminhar para SEF, para uma visão mais ampla que incluísse as fronteiras. Para cobrir todo o perímetro da chamada imigração e controlo de entradas”.

Isso implicou uma substituição na liderança. “O coronel Ramires Ramos era um homem do Exército, com um sentido de organização e missão muito grande, mas eu decidi nomear o Dr. Ramiro Ladeiro Monteiro porque era um homem com uma capacidade enorme de articular duas realidades: a informação e a ação. Tinha uma experiência enorme em Angola, tinha chefiado o Serviço de Coordenação e Informação do Instituto de Assistência Social de Angola”.

A vida em democracia, a liberdade de movimentos e a contagem decrescente para a entrada no clube europeu gerava “uma necessidade de movimentação que o próprio espaço europeu permitia, consentia e incentivava”.

E isso era um grande e novo desafio para quem tinha a missão de gerir tudo o que dizia respeito a estrangeiros. Primeiro, “recebíamos muitos africanos. A certa altura passamos a receber imigrantes que vinham trabalhar para Portugal e, mais tarde, continuando um fluxo que já vinha de antes do 25 de Abril, os próprios turistas. Havia turistas que desejavam ficar a viver em Portugal, achavam bonito, compravam uma casa, queriam cá viver, ou vinham cá várias vezes. Também se foram desenvolvendo atividades comerciais, industriais e de negócio”. recorda Ângelo Correia.

Ramiro Ladeiro Monteiro iria chefiar o Serviço de Estrangeiros até 1986, o ano da plena adesão à CEE.

Foi ele, com as orientações dos primeiros-ministros Pinto Balsemão, Mário Soares e Cavaco Silva, que foi preparando o SE para “a passagem de uma visão localista nacional de controlo interno dos estrangeiros, para uma noção de osmose entre Portugal e a Europa”.

Ângelo Correia recorda que “havia necessidade de encontrar fórmulas organizativas que acompanhassem essa movimentação, para entroncar Portugal na mesma lógica dos outros países europeus que estavam mais avançados”.

Ainda se viviam os primeiros dias de Portugal na CEE, quando se dá uma inesperada mudança na liderança do Serviço.

Em fevereiro de 1986, Gaspar Castelo Branco, diretor-geral dos Serviços Prisionais, foi assassinado à porta de casa pelas FP-25, e essa foi a gota de água para que o poder político decidisse desbloquear o início de funções do SIS – o primeiro serviço de informações civil do regime democrático.

Cavaco Silva, que era primeiro-ministro há apenas quatro meses, chama o diretor do SE, Ramiro Ladeiro Monteiro, para lançar a nova secreta, de imediato, nesse mesmo mês de fevereiro.

Na chefia do Serviço de Estrangeiros ficou o coronel de infantaria Renato Botelho Miranda, e foi ele que conduziu o organismo à sua definitiva transformação em SEF. Em dezembro desse ano de 1986, num despacho assinado pelo então ministro da Administração Interna, Eurico de Melo, o SE ganhou o “F” de fronteiras.


1986: A DATA OFICIAL DE CRIAÇÃO DO SEF

O momento era de evolução, quanto mais não fosse pelas obrigações impostas pela CEE, mas na prática o SEF continuava a ser uma pequena estrutura, que quase não saía dos gabinetes.

Talvez por isso, em 1988, dá-se uma nova mudança na chefia. Daniel Sanches, procurador do Ministério Público, até aí diretor-adjunto da Polícia Judiciária, é chamado para assumir a direção do SEF.

No caderno de encargos tinha como missão prioritária “dotar o serviço de uma carreira de investigação e fiscalização, para num futuro próximo podermos substituir a Guarda Fiscal no controlo de entrada e saída de estrangeiros no território nacional”. Ao chegar ao serviço Daniel Sanches percebeu que “não havia informática no SEF. Era zero. E a partir daí começou também o processo de informatização do serviço, que seguiu a par da criação da carreira de investigação”.

De resto, o novo diretor do SEF recorda que encontrou uma estrutura composta por “uma direção central, e várias direções regionais – em Lisboa, Porto, Coimbra, Faro, Funchal e Ponta Delgada. A vertente meramente administrativa já estava feita, e foi com essa base que o serviço evoluiu”.

Apesar de tudo, já uma razoável implantação geográfica, se bem que muito dependente de outros serviços. O edifício que tinha maior visibilidade era o “da direção regional de Lisboa, que era emprestado pela PSP. Estávamos num ou dois andares do mesmo edifício onde funcionava o Corpo de Segurança Pessoal da PSP”.

Era uma situação de “favor”, diz Daniel Sanches, que se lembra do dia em que foi barrado à entrada do SEF. "Fui visitar a direção regional de Lisboa na Avenida António Augusto Aguiar, e o polícia não me deixou entrar. Disse-me que tinha ordens para identificar todas as pessoas, e que não me conhecia de lado nenhum. E por mais que o diretor regional dissesse que eu era o diretor geral, ele insistiu que ou me identificava ou não entrava”.

"Não havia informática no SEF. Era zero. E a partir daí começou também o processo de informatização do serviço, que seguiu a par da criação da carreira de investigação"

“Negociações difíceis” para adesão ao espaço Schengen

Na mudança de década, os desafios sucediam-se. Depois de criada a carreira de investigação e fiscalização, ainda os primeiros inspetores assumiam funções no Aeroporto de Lisboa, já a direção do SEF tratava de um outro grande objetivo: Preparar Portugal para a adesão ao Acordo de Schengen – o tratado que garantia a livre circulação de pessoas sem a necessidade de apresentação de passaporte.

A União Europeia ainda se chamava CEE, tinha nessa altura apenas 12 estados-membros, e Schengen era um grupo ainda mais pequeno, composto por apenas seis países.

Portugal e Espanha tinham assinado o tratado de adesão em junho de 1991, e a entrada formal agendada para março de 1995. Mas antes era preciso acertar os termos.

Daniel Sanches recorda “negociações difíceis antes de nos aceitarem”, sobretudo no que dizia respeito a problemas constitucionais, como por exemplo “as extradições relacionadas com a prisão perpétua”. Daniel Sanches diz que se “conseguiu incluir uns anexos no acordo em que os países que tinham prisão perpétua tiveram que declarar que nunca a aplicariam, que na prática nunca excederia 25 anos, ou 20 anos, cada um disse o seu número”.

Os limites constitucionais eram o principal tema de debate com os países que já faziam parte de Schengen - a Alemanha, França, Bélgica, Holanda, Luxemburgo e Itália - mas não eram os únicos.

Para esses países, Portugal tinha na altura “um outro problema, que era o Brasil. Havia uma forte imigração brasileira para a Europa, e Portugal era a principal plataforma de entrada. Para os outros países era “um problema tremendo” que os brasileiros tivessem vistos de turismo tão alargados.

Também neste caso, diz Daniel Sanches, tudo se resolveu através das negociações prévias, durante as quais “Portugal teve que assumir que receberia os brasileiros que esgotassem os vistos noutros países. Ficámos com essa obrigação”.

Com negociações mais ou menos difíceis, a data cumpriu-se e com ela as novas regras para quem viajava de países Schengen. Uma das consequências foi a abolição de fronteiras terrestres, o que Daniel Sanches descreve usando a expressão: “primeiro estranhou-se, depois entranhou-se”.

"SEF chegou a ter carrinhas com altifalantes em vários bairros de Lisboa, e não só, a convidar os imigrantes a dirigirem-se ao SEF para fazerem o pedido de regularização”

Na mesa de trabalho do então diretor-geral do SEF, avolumava-se, entretanto, uma outra questão que era urgente resolver: a imigração ilegal.

No início da década de 90, não havia estaleiro de obra, exploração agrícola ou espaço de diversão noturna onde as ações do SEF não encontrassem um elevado número de estrangeiros em situação irregular. Através dessa experiência no terreno “chegamos à conclusão de que o número de ilegais era extraordinariamente alto, muitas vezes seduzidos pelo próprio patrão que só lhes daria emprego se não se regularizassem”.

Daniel Sanches preparou e lançou, em 1992, o primeiro processo extraordinário de legalização de imigrantes, que reconhece “não ter sido fácil”.

O serviço chegou a ter “carrinhas com altifalantes em vários bairros da zona de Lisboa, e não só, a convidar os imigrantes a dirigirem-se ao SEF, ou aos serviços que se montaram nas juntas de freguesia, para que as pessoas pudessem fazer o pedido de regularização”.

Apesar das garantias do Estado, “as pessoas tinham medo, porque lhes metiam na cabeça que o objetivo era expulsá-los de território nacional. Por outro lado, muitos deles chegaram a dizer-nos que não se queriam legalizar porque iam ganhar menos. As entidades patronais diziam-lhes que se estivessem regularizados tinham que fazer descontos, e que isso lhes daria um ordenado menor”.

Feitas as contas, nesse ano de 1992 candidataram-se à regularização 47.166 pessoas, e foram aprovados mais de 39 mil desses pedidos.

A década de 90 foi decisiva na construção legislativa e orgânica do SEF, não só do ponto de vista interno; com a criação da carreira de investigação e fiscalização, e a atualização da lei orgânica do serviço, mas também no âmbito da sua atividade, neste caso com os primeiros regimes legais para o controlo de entradas, a que se vulgarizou chamar lei dos estrangeiros, as diretivas europeias a que Portugal começava a estar obrigado ou as regularizações extraordinárias de ilegais. Houve mais três: em 1996, 2000 e agora em 2023, na contagem decrescente para o fim do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.

Uma década de intensa atividade, muitas vezes polémica, gerida politicamente por seis ministros da Administração Interna – três do PSD e três do PS - e por dois diretores do SEF.

Para além de Daniel Sanches, que saiu em 1994 para ser diretor do SIS, na liderança do SEF seguiu-se António Lencastre Bernardo, um tenente-coronel na reserva, que já tinha sido diretor adjunto da Judiciária e chefe da casa militar do Presidente da República, Ramalho Eanes.

Esteve sete anos à frente do SEF, durante os quais se destacam a construção e aprovação de uma nova Lei Orgânica, a preparação e execução do segundo processo extraordinário de legalização de imigrantes e a preparação e acompanhamento da Expo 98 – até aí o maior evento internacional jamais realizado em Portugal.

Foi nessa primeira década do século XXI, e muito por força da Lei Orgânica de 2000, que os inspetores formados nos dois primeiros cursos se começaram a aproximar da direção do Serviço, mas, até que um deles chegasse mesmo a “número 1”, o SEF ainda foi dirigido por dois magistrados.

Primeiro, Júlio Pereira, um procurador-geral adjunto que vinha de três anos como diretor adjunto do SIS e que, entre 2001 e 2003, deixou marca, sobretudo, na atualização da legislação relativa aos títulos de residência e na preparação de mais um curso de admissão de inspetores, a pensar no Euro 2004 que Portugal estava a organizar.

Depois, Gabriel Catarino, um juiz desembargador que vinha de pouco mais de um ano como diretor adjunto da PSP na área dos recursos humanos, e que, entre 2003 e 2005, para além da participação ativa na segurança do Europeu de Futebol, também é recordado pelo impulso que deu à investigação criminal, nomeadamente no investimento e protagonismo que dedicou à Direção Central de Investigação, Pesquisa e Análise da Informação (DCIPAI).

O PRIMEIRO DIRETOR DA CASA

A mudança de paradigma, no que à liderança do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras diz respeito, aconteceu em 2005.

António Costa, então ministro da Administração Interna do primeiro Governo de José Sócrates, escolhe para diretor, pela primeira vez na história do SEF, um inspetor de carreira.

Manuel Jarmela Palos, com apenas 40 anos, no SEF desde o primeiro curso da carreira de investigação em 1990, foi promovido a “número 1” numa altura em que já levava quatro anos como diretor adjunto.

Fernando Silva, penúltimo diretor do SEF, entre abril de 2022 e agosto de 2023, e companheiro de Manuel Palos no primeiro curso em 1990, sublinha a “normalidade” com que a nomeação foi recebida.

“Enquanto adjunto, Manuel Jarmela Palos já tinha áreas fundamentais como as fronteiras, a dimensão internacional e a documentação dos estrangeiros”, e, para além disso, “era consensual, chegava a todas as carreiras”.

A esta distância, Fernando Silva conclui que Manuel Palos chegou à liderança com a visão internacional de Lencastre Bernardo, o cuidado jurídico de Júlio Pereira, e a operacionalidade de Gabriel Catarino.

Conhecia a casa, e a sua entrada “muda muita coisa”, recorda Fernando Silva. “Identifica algumas dificuldades, como por exemplo a informática. Esse é o grande salto do SEF, que chegou a estar à frente de todas as forças e serviços de segurança deste país, em termos de inovação e de capacidade informática”.

O sétimo diretor do SEF esteve nove anos no cargo. Um período repleto de desafios, durante o qual o SEF estabilizou, por um lado, o seu modelo interno de organização e, por outro, passou a estar definitivamente integrado no sistema global deste universo em que se move. O diretor do SEF chegou, inclusive, a ser vice-presidente da Frontex.

Estes anos foram também de profunda transformação tecnológica. Apareceu o RAPID – sistema de reconhecimento automático de passageiros, o passaporte eletrónico, corredores específicos para o espaço Schengen e os países CPLP, uma outra forma de fabricar documentos de identificação e de viagem, e com o SIS-one4ALL criado por uma empresa nacional, Portugal até ajudou vários estados-membros a usufruírem das vantagens do espaço Schengen.

DIRETOR DETIDO NO CASO VISTOS GOLD

Se Manuel Jarmela Palos já ficava na história do Serviço como o primeiro diretor oriundo da carreira de investigação, em 2014 passou a ser também o primeiro responsável máximo de uma força ou serviço de segurança português a ser detido.

Em novembro desse ano viu-se envolvido num alegado esquema de favorecimentos no processo de atribuição de Vistos Gold, do qual viria a ser absolvido no julgamento que só terminou quatro anos depois.

Um caso que Fernando Silva reconhece que “abalou o serviço” e o tornou “quase toxico”. O 14.º e penúltimo diretor do SEF lembra que isso aconteceu durante um Governo social-democrata de Pedro Passos Coelho, onde “chegou a estar em cima da mesa a continuidade do SEF”, para dar lugar a uma Polícia Nacional, e que o caso dos Vistos Gold só veio tornar as coisas ainda mais “complicadas”.

Pelo menos na liderança do Serviço, nada voltou a ser como antes. Nos cinco anos que se seguiram à detenção de Manuel Palos, o SEF teve quatro diretores. A permanência no cargo tornou-se mais precária, menos carismática, mais condicionada pelos ciclos políticos.

Primeiro, o juiz desembargador António Beça Leite e, depois, três inspetores coordenadores superiores: Maria Maia Gonçalves, Carlos Moreira e Cristina Gatões, todos no SEF desde o primeiro curso da carreira de investigação.

Fernando Silva reconhece que foram anos diferentes, “um período em que o SEF parece ter sido colocado de lado, durante o qual não houve investimento e em que ninguém queria mexer ali”, mas, apesar disso, não encontra uma causa-efeito entre a instabilidade diretiva que se viveu e a detenção de Manuel Palos.

O PRINCÍPIO DO FIM DA HISTÓRIA

A entrada na terceira década do século XXI trouxe acontecimentos decisivos para o resto da história.

Dia 12 de março de 2020, Ihor Homeniuk, um cidadão ucraniano de 40 anos, morreu numa sala do Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária do Aeroporto de Lisboa.

Foi vítima, dizem os três tribunais que já apreciaram o caso, do tratamento que ali sofreu por parte dos inspetores do SEF, e não só.

Uma negligência inconsciente, que, mesmo sem intenção de matar, acabaria por ser fatal.

O centro de instalação onde tudo se passou foi encerrado, os responsáveis do SEF pelo aeroporto foram demitidos. No final de setembro desse ano de 2020, o Ministério Público acusou três inspetores do SEF de homicídio qualificado, e uma semana depois a Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) acrescentou que havia outros nove inspetores alvo de processos disciplinares, por ação ou omissão.

É o momento em que o caso ganha novos contornos, onde a gravidade dos factos deixa de ser pronunciada no condicional. Se dúvidas houvesse, a então diretora nacional do SEF acabou com elas numa entrevista que em novembro concedeu à RTP. Cristina Gatões classificou o caso como “a pior situação que o SEF alguma vez viveu”, acrescentando não ter grandes dúvidas de que se tratou de “uma situação de tortura evidente”.

A pressão política já não era apenas sobre o ministro da Administração Interna da altura, Eduardo Cabrita, já se fazia sobre o próprio primeiro-ministro, António Costa.

Por essa altura, nove meses depois da morte de Ihor Homeniuk, no dia 9 de dezembro de 2020, um comunicado do gabinete do ministro Eduardo Cabrita anuncia duas coisas: a saída de Cristina Gatões da liderança do SEF e o início de uma reforma que previa o fim do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.

No dia seguinte, Eduardo Cabrita aprovou em Conselho de Ministros o pagamento de uma indemnização à família da vítima, e sobre a reestruturação que acabara de lançar garante que “estava definida no programa do Governo há mais de um ano”. Reforça esse argumento dizendo que “era impossível ter começado a ser discutida a semana passada”.

Judicialmente, a morte de Ihor Homeniuk chegou a tribunal em fevereiro de 2021 e sobre esse caso encontra mais pormenores e opiniões no capítulo cinco deste trabalho – que é dedicado precisamente aos casos mais polémicos da história do SEF. Aqui, seguimos outras consequências.

Se os trágicos acontecimentos no Aeroporto de Lisboa já ficariam para sempre cravados na história do SEF, foi, no entanto, aquele comunicado de 9 de dezembro de 2020 que mostrou as consequências que podiam ter. No dia em que o gabinete de Eduardo Cabrita anunciou a reestruturação do Serviço, até aí nunca sugerida dessa forma, começaram dois anos repletos de avanços e recuos.

A CRONOLOGIA DE UMA EXTINÇÃO

Reafirmando que Cristina Gatões não era a pessoa certa para a reestruturação anunciada, o ministro da Administração Interna anunciou, dias depois, que a tarefa ficaria a cargo do tenente-general Luís Francisco Botelho Miguel.

O militar, na situação de reserva há apenas cinco meses depois de deixar de ser comandante-geral da GNR, foi chamado para “ficar em exclusivo com a tarefa de tratar do processo de reestruturação", explica Fernando Silva que, entretanto, foi nomeado diretor adjunto. “É ele que trata de todo o processo em articulação direta com o gabinete do ministro”.

Quatro meses depois, aquela que na verdade ainda era apenas uma intenção, materializou-se com o início do processo legislativo. Dia 14 de abril de 2021, o Conselho de Ministros aprovou uma resolução que previa a redefinição das atribuições do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, explicando que em causa estava a clara separação orgânica entre as funções policiais e administrativas do SEF.

No Parlamento, o PS aceitou as sugestões do Bloco de Esquerda, e juntos - também com o voto da deputada Joacine Katar Moreira - aprovaram a 22 de outubro a lei que previa a extinção do SEF.

A novidade estava apenas no nome que era dado ao organismo que iria herdar a vertente administrativa. O Governo tinha-lhe chamado inicialmente Serviço de Estrangeiros e Asilo (SEA), mas do Parlamento saiu com o nome de Agência Portuguesa para as Migrações e Asilo (APMA). Finalmente, em abril de 2023, em conselho de ministros, o nome definitivo ficou AIMA - Agência para a Integração, Migrações e Asilo.

Apesar de manifestar dúvidas sobre a personalidade jurídica da futura Agência, o Presidente da República promulgou a lei dia 7 de novembro. O diploma foi publicado em Diário da República uma semana depois, dia 12, prevendo a sua entrada em vigor 180 dias depois, ou seja, a 11 de janeiro de 2022.

Mas, ainda nesse mês de novembro de 2021, no dia 26, por proposta do Partido Socialista, a lei foi congelada por um período de seis meses.

Embora nessa altura já estivessem convocadas eleições legislativas antecipadas, e já se soubesse que a decisão de avançar ou não com a reforma seria sempre do Governo que se seguisse, a bancada do PS justificou o adiamento com a pandemia que continuava a exigir bastante do SEF.

A decisão foi publicada a 16 de dezembro, definindo o dia 13 de maio de 2022 como a nova data para o fim do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.

Ainda antes do final do ano, a 3 de dezembro, o ministro Eduardo Cabrita pede a demissão na sequência da acusação do Ministério Público ao motorista que o conduzia no dia em que foi mortalmente atropelado um trabalhador na A6.

Até à formação de um novo Governo, o dossier da reestruturação do SEF esteve nas mãos de Francisca Van Dunen, que passou a acumular Justiça e Administração Interna.

Das eleições de 30 de janeiro de 2022 saiu uma maioria absoluta do PS, e com ela a reafirmação de todos os planos anteriores. A reestruturação do SEF era para manter, dizia o programa eleitoral, disse depois o programa do Governo e confirmou-o, finalmente, o novo ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro.

Mas antes, ainda uma surpresa. No final de março de 2022, na véspera da tomada de posse do novo executivo, o homem que tinha sido escolhido para concluir a reforma apresentou a demissão. O tenente-general Botelho Miguel alegou motivos de saúde, e deu por terminada a sua comissão de serviço a um mês e meio da extinção do SEF.

Para o que faltava fazer na reestruturação do SEF, foi escolhido Fernando Pinheiro da Silva, um inspetor coordenador superior, oriundo do primeiro curso de 1990, que há três anos vinha resolvendo problemas aos sucessivos ministros.

Assumiu a direção de fronteiras de Lisboa logo após a morte do cidadão ucraniano no Aeroporto, foi adjunto na direção de Botelho Miguel e, finalmente, chamado para gerir o inesperado vazio de liderança.

Fernando Silva garante que embora tivesse sido adjunto de Botelho Miguel, não conhecia os contornos da reforma. Não sabia, por exemplo, que estava tão atrasada. “Quando chego a diretor tínhamos um problema: ainda não tínhamos sequer começado com a formação da PSP e da GNR para a substituição do SEF nos postos de fronteiras, que deveria acontecer dali a um mês”.

José Luís Carneiro deu prioridade ao dossier. Ainda começou por dizer que a data de 13 de maio de 2022 era para cumprir, mas rapidamente percebeu que não havia condições para o fazer.

No dia 22 de abril desse ano, o ministro anunciou o segundo adiamento da reestruturação, desta vez “por tempo indeterminado”. José Luís Carneiro reconheceu nesse dia que “a formação da primeira e segunda linha do controlo aeroportuário não tinha ainda o amadurecimento necessário”, garantindo que “mais importante que o calendário é garantir uma transição segura, serena e que suscite confiança”.

Um discurso muito diferente do que vinha sendo politicamente usado até aí, mas sem mudanças “programáticas”. José Luís Carneiro garantiu que não se tratava de “um objetivo do ministro A, B ou C, faz parte de um compromisso político assumido nas urnas e no Parlamento”.

O fim do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras não tem uma explicação; tem várias. A oficial, é que desde 2019 a ideia faz parte dos planos dos Governos de António Costa, e que a separação das funções policiais e não policiais não é mais do que colocar Portugal no caminho sugerido pelo Pacto Global para as Migrações das Nações Unidas, também em sintonia com a estratégia que a União Europeia defende.

E mesmo que na esfera do Governo se desvalorize o peso que teve a morte de Ihor Homeniuk, a verdade é que esse facto nunca deixará de ser apontado como o ponto de ignição.

Acácio Pereira, há 12 anos presidente do mais antigo sindicato da carreira de investigação, é taxativo. Diz que o anúncio feito em dezembro de 2020 foi “um aproveitamento político para salvar a inépcia e a incapacidade de Eduardo Cabrita, porque ele foi tudo menos ministro”.

O sindicalista considera que “os portugueses não compreendem porque é que o ministro e a diretora do SEF não assumiram as suas responsabilidades”, e vai mais longe afirmando que “o SEF foi a moeda de troca de um acordo de bastidores entre o Governo e o Bloco de Esquerda para viabilizar o Orçamento”.

Entre várias outras opiniões, também há quem pense que mesmo que “a decisão já estivesse prevista no programa do 22.º Governo constitucional, terá havido um ponto em que se pensou que era demasiado. Que já bastava”.

Jose Gaspar Schwalbach, o advogado da família de Ihor Homeniuk, diz que ficou claro que estamos “perante uma instituição útil, importante, e com funcionários que dão tudo pelo emblema que traziam ao peito, mas que também existiam funcionários que puseram em causa uma polícia nacional”.

“Quando chegamos, para nós entrarmos também outros fecharam a porta”

Trinta e sete anos depois de criado, o SEF vai desaparecer. Os cerca de 1.600 funcionários, bem como as competências, as missões e o património vão ser distribuídos por cinco entidades, tuteladas por três ministérios: Assuntos Parlamentares, Administração Interna e Justiça.

As três polícias que vão receber os inspetores da carreira de investigação e fiscalização – Judiciária, PSP e GNR, e os dois organismos que vão integrar os trabalhadores com funções não policiais – a AIMA, a nova Agência para a Integração, Migrações e Asilo, e o IRN – o Instituto dos Registos e Notariado.

Fernando Silva diz que nunca funcionou por estados de alma e que, desta vez, por maioria de razão, essa é a melhor forma de encarar o momento. Fernando Silva remete para outro dia a sua opinião pessoal sobre o fim do Serviço. Por agora, lembra apenas que, “quando chegamos, houve outros que fecharam a porta para nós entrarmos”, e que nessa altura estas funções “já tinham sido desempenhadas pela Judiciária e pela PSP”.

O penúltimo diretor do SEF diz que importante foi garantir os direitos dos funcionários, porque de resto “a decisão está tomada”, é preciso cumprir a lei e “mudar o chip”.

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