Foi uma vez o SEF. Capítulo 2: Investigação e Fiscalização

É aquela que, nos últimos anos, se vulgarizou chamar a missão policial do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF): a prevenção e investigação de crimes cometidos por estrangeiros e a fiscalização das suas atividades enquanto estão em território nacional.

31 mar, 2023 - 06:30 • Celso Paiva Sol , André Peralta (sonoplastia)



SEF - CAPITULO 2
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Foi uma vez o SEF. Capitulo 2: Investigação e Fiscalização

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Dentro do país, ou em colaboração com serviços estrangeiros, a missão criminal do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) passa, sobretudo, pelo combate ao tráfico de seres humanos, o auxílio à imigração ilegal, os casamentos de conveniência e toda a outra criminalidade – dita itinerante -, que em permanente rotatividade vai cruzando as inexistentes fronteiras internas dos 27 Estados-membros da União Europeia (UE).

Já a fiscalização passa pelo controlo da documentação que qualquer estrangeiro deve ter atualizada, e pela monitorização das atividades económicas que, por norma, mais recorrem a mão de obra estrangeira: Obras públicas, agricultura, turismo e até o desporto.

A carreira de investigação e fiscalização do SEF só foi criada em 1990, já o Serviço tinha quatro anos, ou 14 se contarmos desde que começou a funcionar ainda apenas como Serviço de Estrangeiros.

E era fundamental que isso acontecesse. Nessa altura as fronteiras continuavam a cargo da Guarda Fiscal, tutelada pelo Ministério das Finanças, e a investigação de crimes cometidos por estrangeiros calhava à polícia que tivesse a área de jurisdição.

A fiscalização “era mínima”, recorda Daniel Sanches, o diretor-geral do SEF que criou a nova carreira. “Era feita por alguns elementos da PSP que tinham sido destacados para o serviço, e que já vinham de trás. Mas era um número muito curto, para conseguirem fazer fiscalização no interior do território nacional”. Os serviços do SE “estavam estruturados ao nível da parte administrativa. Essencialmente a parte documental”, recorda.

Dotar o SEF de inspetores que pudessem centralizar e executar todas as missões relacionadas com os estrangeiros, cumprindo aliás os modelos comunitários a que o país já estava obrigado, foi a grande tarefa de Daniel Sanches. Era preciso criar uma carreira que não existia.

“Antes de se iniciar o curso, eu fui conhecer serviços de fronteiras que têm uma atividade bem distinta de uma polícia de investigação criminal. Visitei os serviços ingleses, os serviços espanhóis e os norte-americanos. E foi numa síntese das várias coisas que vi, que nasce o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras”, explica Daniel Sanches, à Renascença.


Foto: SEF
Foto: SEF

UMA CARREIRA CRIADA DO ZERO

O SEF arranca com uma carreira criada do zero, inspirada por vários modelos de organização, incluindo o da Polícia Judiciária, onde Daniel Sanches tinha sido quatro anos diretor-adjunto. “A conceção do curso foi toda feita internamente, também com base nalguma experiência que eu já tinha da Judiciária. Mas com muitas diferenças nas disciplinas a ministrar. Na investigação criminal seriam muito equivalentes, mas outras eram totalmente distintas, e isso fui buscar aqui e acolá”, sublinha.

Parte da formação foi, aliás, realizada no Instituto da Polícia Judiciária, em Loures, bem como na INDEP – as indústrias nacionais de defesa, também em Loures.

No primeiro curso - como para sempre ficou conhecido internamente - havia 200 vagas, mas que só pouco mais de 100 candidatos conseguiram acabar.

O diretor de então reconhece a exigência que foi posta nessa admissão pioneira. “Toda a formação incidiu sobre dois parâmetros: duas vertentes que mais nenhuma força ou serviço de segurança tinha na altura. Eles tinham que ser simultaneamente rececionistas de qualidade, como se estivessem num hotel de 6 ou 7 estrelas, porque eram a primeira imagem do país para o estrangeiro que chega, e ao mesmo tempo não podiam esquecer que trabalhavam num serviço de segurança. Eles também tinham que defender a segurança interna. Tinham que ter a delicadeza, e o rigor do controlo”.

Daniel Sanches recorda ainda algumas das primeiras apostas, como o domínio das línguas – nessa altura ainda apenas o inglês e o francês –, mas também “insistimos muito numa coisa que vimos nos Estados Unidos, que era a psicologia do comportamento. É muito importante numa abordagem rápida, como é aquela nas cabinas do aeroporto, que o oficial de imigração saiba com quem está a lidar, e se alguém lhe está a mentir ou não. Tem que decidir num primeiro momento se a pessoa é selecionada para ser entrevistada com mais profundidade, ou se lhe é logo franqueada a entrada”.

Esta primeira fornada de inspetores foi toda colocada no Aeroporto de Lisboa. No dia 1 de agosto de 1991 saiu a Guarda Fiscal, entrou o SEF.

Fernando Silva fazia parte desse grupo, que “recebeu as fardas às 17h00 da véspera, e que ainda foi trabalhar com as calças com bainhas feitas com agrafos e fita cola”.

José Van Der Kellen, outro dos elementos desse primeiro grupo, considera que o aeroporto da capital “foi uma escola que serviu de lançamento para essa primeira geração” que ao longo das três décadas seguintes viria a ocupar os mais variados cargos dentro do Serviço, e “o início de diversas especializações, como as questões documentais.

Era no Aeroporto de Lisboa que estavam os problemas, porque as questões de imigração na altura estavam relacionadas essencialmente com África, e com os passageiros indocumentados”.

Mas esse início “foi muito conturbado”, acrescenta Paulo Torres, que frequentou o segundo curso, realizado nove meses depois.

“A passagem entre quem estava nas fronteiras e o SEF não foi de todo pacifica. A Guarda Fiscal estava num processo de extinção, e nesse corre-corre de extinção tinha de passar o testemunho ao novo serviço que estava a aparecer.”

Paulo Torres lembra uma “passagem muito rápida” que colocou largas dezenas de pessoas “a controlar as fronteiras sem saberem bem o que iam encontrar”.

Uma transição que foi ao mesmo tempo um processo de formação em tempo real. “Os dois primeiros cursos foram separados por apenas nove meses, foram quase irmãos, e foram preencher na totalidade o aeroporto de Lisboa”. E isso fez com que “o pouco know how que os do primeiro curso tinham, tenha sido transmitido on job aos do segundo curso: ‘senta-te aqui ao meu lado que vais aprender como é que se faz controlo de imigração’. Foi assim que aprendemos”, conclui Paulo Torres.


Foto: Lusa
Foto: Lusa

DO AEROPORTO DE LISBOA PARA O MUNDO

O Aeroporto de Lisboa foi o primeiro, e quase único palco, dos primeiros tempos da carreira de investigação e fiscalização, mas o trabalho que ali começava foi abrindo novas frentes, e cada vez mais noutras zonas do país.

José Van Der Kellen descreve a década de 90 como de aprendizagem e desenvolvimento, porque “logo no primeiro curso, passados alguns meses, começamos a ver que as questões já não se centravam apenas no Aeroporto de Lisboa, e que tinham continuidade para o interior do território”.

O SEF começou a sentir necessidade de ter outro tipo de cobertura legal, e isso levou “a que a própria lei de estrangeiros tivesse que ser revista, e que começasse a ser equacionado o auxílio à imigração ilegal.

José Van Der Kellen explica que “a criminalidade conexa à imigração ilegal obrigou o SEF a progredir. Começamos com a falsificação de documentos, mas cedo verificamos que a criminalidade evoluía para vertentes mais graves, como as extorsões. Para além disso, surgiam em Portugal “outras nacionalidades, muito diferentes das que estávamos habituados a ver no aeroporto”.

Foi a necessidade de perceber e completar a tarefa de controlo documental nas entradas, que conduziu ao desenvolvimento das vertentes de investigação e fiscalização durante a permanência dos estrangeiros em Portugal. A começar pela fiscalização. Paulo Torres lembra que “em 1995, quando tomamos definitivamente conta de todas as fronteiras, o diretor de então, o dr. Lencastre Bernardo, decidiu assumir funções que ainda estavam na PSP”.

Foi o impulso que faltava para descentralizar o Serviço, e foi feito sobretudo “com elementos do terceiro curso, que tinham vindo da extinta Guarda Fiscal. Quando houve um número suficiente de pessoas para ocupar as delegações regionais, começou a fiscalização”.

Na altura, um trabalho ainda bastante limitado que se “baseava no controlo dos boletins de alojamento, ir aos hotéis ver se os turistas tinham os vistos em dia, uma coisa muito restrita e só nas grandes zonas urbanas do litoral. No interior, por exemplo, “não havia fiscalização, não eram áreas de atuação do SEF”, explica Paulo Torres.

Mas fiscalizar fluxos migratórios, atividades económicas fortemente ligadas, ou até mesmo dependentes de estrangeiros, fez com que fosse também preciso investigar um número cada vez maior de irregularidades, e isso levou “à criação de uma Direção Central de Investigação Criminal”.

Paulo Torres recorda que, até aí, “os crimes eram todos da competência reservada da Judiciária, e só investigávamos os que detetávamos se Ministério Público assim o entendesse”.


A INVESTIGAÇÃO CRIMINAL

A esta distância, José Van Der Kellen não tem dúvidas de que foi o trabalho e capacidade dos primeiros inspetores do SEF que convenceu as autoridades políticas e judiciais de que o serviço tinha o seu lugar no sistema de segurança interna.

“O trabalho que desenvolvíamos foi-se revelando uma mais-valia muito importante, que levou muitas outras entidades, nacionais e estrangeiras, a querer trabalhar connosco”. Isso foi sendo conseguido através da “penetração no universo das comunidades estrangeiras, e nas novidades criminosas que traziam para Portugal”.

Aos poucos o SEF transformou-se num órgão de polícia criminal perfeitamente integrado e respeitado, porque “criávamos informação que nos permitia trabalhar no terreno, e projetar esse trabalho em termos processuais para os tribunais”.

Primeiro a entrada na Comunidade Económica Europeia (CEE), depois, em 1991, a adesão ao Acordo de Schengen, e mais tarde em 1993, a transformação de todo este espaço em União Europeia. Foi um novo contexto de livre circulação de pessoas, serviços, bens e capitais, que trouxe consigo desafios bastante mais complexos.

José Van Der Kellen identifica “um momento-chave, que tem a ver com o aparecimento de uma espécie de conexão moldava”.

Com Schengen, recorda este inspetor coordenador superior, “começaram a aparecer pessoas diferentes em estaleiros da construção civil, e começamos a perceber que não se fazia apenas o transporte dos imigrantes, mas que havia outra criminalidade associada a essas pessoas. Extorsão, agressões físicas, alguns homicídios”.

Essa novidade “obrigou-nos a adaptar toda a nossa metodologia na recolha de informação e no posicionamento no terreno, porque estas coisas já estavam a acontecer dentro do nosso país”.

Instalou-se a designação crime transnacional, e com ele uma multiplicidade de novas atividades ilícitas em cada um dos Estados-membros.


Foto: SEF
Foto: SEF

O tráfico de seres humanos, por exemplo, “evoluiu na sequência da forma como os grupos organizados de Leste passaram a explorar as suas próprias comunidades. Para além da exploração do trabalho, passou a haver também a exploração das mulheres para a prostituição”.

Nesses anos foram identificados esquemas em que “indivíduos presos nos países de origem, que eram líderes das organizações, controlavam os grupos que atuavam em Portugal, e a forma como geriam os fluxos de dinheiro - a maior parte dele oriundo dos dízimos, da extorsão”.

Paulo Torres lembra-se bem do tipo de crime que Portugal começou a enfrentar em meados da década de 90, até porque esteve envolvido na investigação de alguns desses grupos.

“As máfias de Leste eram muito bem organizadas, replicavam os sistemas militares de Leste, padronizadas como se fossem uma estrutura militar, às vezes assustadoramente bem equipadas em termos de armamento.”

O SEF foi obrigado a adaptar os seus métodos, mas também “a ir buscar informação a países como a Alemanha, a França e a Holanda, que já combatiam estas redes organizadas há mais tempo”.

A importância da partilha de informações, referida por Paulo Torres, é igualmente sublinhada por José Van Der Kellen.

Não só na informação que recebíamos, como naquela que dávamos, como aconteceu com a ajuda que o SEF deu ao desmantelamento de uma rede nigeriana em Espanha que “manipulava as pessoas, jogando com a feitiçaria. Dominavam completamente as pessoas, nomeadamente na área da prostituição. E o dinheiro que aquilo gerava. Gerava e gera”.

Um primeiro terço de vida de uma nova carreira que José Van Der Kellen considera ter sido fundamental para afirmar e consolidar a capacidade e importância do SEF.

Este histórico do Serviço, que ao longo de mais de 30 anos trabalhou em informações, pesquisa, análise, investigação criminal, fiscalização, mas também junto da Europol e da Interpol, na chefia de direções regionais - como a do Algarve e a de Lisboa – que chegou a ser diretor nacional adjunto do serviço, e ainda oficial de ligação em Angola, diz que o SEF “soube sempre reagir muito bem, e que apresentou sempre resultados no desmantelamento dessas organizações que pululavam por Portugal continental.

Nós que éramos mais maçaricos na atividade, aprendemos e crescemos enquanto polícia”.


As missões de fiscalização e investigação estabilizaram na primeira década do século XXI, acompanhando a própria orgânica e implantação do SEF no continente e ilhas. Seis direções regionais, 24 delegações regionais, oito aeroportos, 21 terminais marítimos, e cinco centros de cooperação policial e aduaneira – estes últimos em parceria com Espanha.

A isso juntava-se uma crescente presença em organizações e missões internacionais, o que fez entrar a carreira de investigação e fiscalização numa constante prova de esforço.

Fernando Silva, o penúltimo diretor do SEF, entre abril de 2022 e agosto de 2023, considera que o número de inspetores nunca foi verdadeiramente suficiente para acompanhar as necessidades.

O número, e frequência, dos cursos de admissão “foram muito irregulares, e todos os que entravam já não eram suficientes para colmatar os que, entretanto, vão saindo”.

Foi também o tempo em que se tentou combater estigmas antigos, porque “era muito comum haver gente que ameaçava os estrangeiros: ‘se tu não fizeres o que eu quero, chamo o SEF e eles expulsam-te'. E as pessoas viviam neste terror. Para combater esse ambiente “coercivo”, o SEF “adotou uma estratégia de comunicação em que existia a favor da imigração, e não contra a imigração”.

Paulo Torres recorda que, “por volta de 2007, 2008, 2009”, foi adotada uma “política de maior visibilidade, de proximidade, não tanto para procurar o imigrante ilegal para o expulsar, mas para o integrar e lhe dar opções legais de saída ou integração”.

A FISCALIZAÇÃO

O inspetor coordenador Paulo Torres, que entre muitas outras funções já chefiou as delegações de Setúbal, Madeira, Algarve e Lisboa, explica que “a fiscalização tem por base a recolha de informação, e que nesse sentido foi criada uma unidade de tratamento de informação em cada delegação regional”.


 

Essas unidades “recolhem toda a informação das equipas móveis que andam no terreno, e que verificam onde é que há um maior número de estrangeiros, onde é que há algum alarmismo social porque as populações reagem a um grande número de estrangeiros, sítios onde as comunidades estrangeiras estejam a aumentar de forma desmesurada”.

Depois, com base nessa informação “são definidos planos de ação,

direcionados, por exemplo, para empreendimentos da construção civil, para produções agrícolas onde há notícia de cidadãos estrangeiros descontentes por estarem a ser tratados de forma desumana. Vamos para o terreno, não a bater de porta em porta, mas com objetivos definidos”, explica Paulo Torres.

De há muitos anos a esta parte, o principal foco está na proteção dos imigrantes e da sua existência legal entre nós, garante Acácio Pereira, há quase oito anos responsável pela delegação regional da Guarda.

Essas são orientações genéricas para toda a União Europeia, e é assim que o SEF trabalha. “para prevenir que o imigrante seja ludibriado, não para perseguir o imigrante. O foco está no potencial criminoso que se aproveita do imigrante. Fazemos esse acompanhamento, tratamos dos agrupamentos familiares aferindo se existem condições, e emitimos os pareceres para os diversos vistos”.

Acácio Pereira sublinha a importância “desta capilaridade do Serviço” para que se possa manter uma “informação permanente dos fluxos e atividades dos estrangeiros”, e dá o exemplo do interior alentejano. O distrito de Beja “é um dos que tem maior população estrangeira residente, e onde o índice de criminalidade ligado à imigração é maior”.

De resto, Acácio Pereira chama a atenção para “a mudança de paradigma” verificado nos últimos anos, porque atualmente “há imigrantes em todos os setores. Nos hospitais como médicos e enfermeiros, temos engenheiros, temos muitos imigrantes no setor social onde há muita falta de mão de obra, e muitos no setor agrícola, nomeadamente nas culturas sazonais onde há uma grande dificuldade em arranjar mão de obra”.


Foto: SEF
Foto: SEF

O SEF chega ao fim com 1.057 elementos da carreira de investigação e fiscalização, sendo que 231 estão a exercer funções fora do serviço.

Os que ficam até ao fechar de portas serão integrados em bloco nos quadros da Polícia Judiciária, mas nem todos irão ali trabalhar.

Essa será a base para todos os efeitos laborais, mas cerca de 250 irão na verdade trabalhar com a PSP e a GNR nas fronteiras que passam a estar à responsabilidade destas duas forças de segurança.


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