Escrevo esta crónica quando assistimos a uma explosão de eventos musicais que fazem do arquivo sonoro da “Revolução dos Cravos” o lugar privilegiado da sua memorialização.

É assinalável que o 50.º aniversário celebre a canção como casa comum da memória do 25 de Abril. Nesse sentido, “Revolução das Canções” poderia ser uma outra forma de identificar o acontecimento.

Não é invulgar que as ruturas políticas sejam acompanhadas de uma “banda sonora”. De algum modo, a dinâmica de rutura precisa de se ancorar num imaginário, numa energia utópica, que lhe garanta eficácia simbólica. Assim, em diferentes geografias da revolução política moderna, descobrimos universos sónicos próprios.

Recuemos até 1945, para nos encontrarmos com Fernando Lopes-Graça, na composição do seu primeiro caderno de Canções Heroicas, publicado em 1946. Partiu da matéria poética dos textos neorrealistas de José Gomes Ferreira, Carlos de Oliveira ou João José Cochofel, entre outros.

A circulação deste reportório foi imediatamente dificultada pela política de censura, que viu aí uma força subversiva que era necessário silenciar. Continuando o objetivo de criar um reportório para as coletividades, o compositor toma o arquivo das “canções regionais” como lugar de dissidência – relativamente às estratégias folcloristas do regime e às práticas de transcrição “burguesa” desse universo, veiculadas pelos compositores do mainstream musical.

Já na década de 1960, no contexto da crise universitária, encontramos na Universidade de Coimbra um jovem estudante, José Afonso, que grava, em 1960 a “Balada de Outono”, reconhecida como inauguradora de uma nova tendência na canção, a balada.

Esta mudança não era puramente estética, enraizava-se num posicionamento de apelo à mudança. Adriano Correia de Oliveira tomou parte neste movimento de novos trovadores, com formas musicais simples e meios de produção muito económicos, mas potenciando a força da palavra poética, como na “Trova do vento que passa” de Manuel Alegre.

Ainda na década de 1960, a perseguição política, a recusa da guerra colonial e a demanda de outras oportunidades de subsistência cruzaram-se em Paris e nos seus subúrbios. Nesse Portugal de diáspora, feito de exílios e migrações, ouvimos, na voz de Luís Cília, um poema de António Borges Coelho, escrito durante o seu encarceramento na prisão-fortaleza de Peniche: “Oh mar, venha a onda forte/ Por cima do areal/ E os barcos abandonados/ Voltarão a Portugal.” A esta diáspora exílica, juntaram-se outros protagonistas, como José Mário Branco, Sérgio Godinho e Francisco Fanhais.

Em Portugal, a década de 1970 conheceu um amplo desenvolvimento da indústria discográfica. Os dispositivos de controlo estavam cada vez mais fragilizados, face à expansão dos meios de produção cultural. Esse contexto ajuda a compreender porque é que o ano de 1971 se tornou decisivo para a canção de intervenção.

Talvez se possa dizer que 1971 é o ano da Revolução das Canções, precedendo o golpe militar. São desse ano os LP: “Os Sobreviventes”, de Sérgio Godinho; “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, de José Mário Branco; “Gente de aqui e de agora”, de Adriano Correia de Oliveira; “Cantigas do Maio”, de José Afonso; a que se pode acrescentar ainda o LP de Carlos Paredes, “Movimento Perpétuo”.

De algum modo, anunciava-se a “vigília” da revolução política, que virá a acontecer no memorável concerto de 29 de março de 1974, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa – noite que juntou, no I Encontro da Canção Portuguesa, organizado pela Casa da Imprensa, músicos como José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, José Carlos Ary dos Santos, Carlos Paredes, Fernando Tordo, José Barata Moura, José Jorge Letria, Fausto, Vitorino, entre outros.

Apesar do “exame prévio”, as canções tomaram corpo na voz do público que encheu o Coliseu, voz coletiva que já não era possível censurar. Nesse concerto, a canção que José Afonso tinha escrito para homenagear a Sociedade Fraternidade Operária Grandolense, “Grândola, vila morena”, ganhou uma renovada força – transportava as feridas e esperanças de uma narrativa coletiva.

Quando recolhemos testemunhos acerca do que se passava nas comunidades e movimentos cristãos, percebemos que algumas destas canções habitavam os seus cancioneiros. E que outras, nascidas no habitat católico, se aproximavam da mesma semântica – paz, liberdade, justiça.

A década de 1970 é fecunda no desenvolvimento de teologias que enfatizam as dinâmicas de transformação do mundo – como Marie-Dominique Chenu sublinhou, o Vaticano II foi o primeiro concílio a integrar, no seu léxico, a palavra “história”.

Recorde-se ainda que o itinerário de vernaculização da liturgia católica tinha aberto um espaço de experimentação favorável à penetração dos “sinais dos tempos”. Não espanta, pois, que nas décadas de 1970 e 1980 se possa documentar uma intensa atividade de criação de cantos para as comunidades cristãs que respiram este chão comum.

Neles, a memória cristã é mobilizada para um sentido de transformação do mundo. A energia utópica presente na canção de intervenção e a semântica bíblica da libertação encontram-se na expectativa de um mundo melhor. Não era difícil encontrar cenários cristãos em que o emblemático poema de Sophia, na música de Francisco Fanhais, dava corpo ao desejo de uma paz urgente: “Vemos, ouvimos e lemos/não podemos ignorar”.

Este impacto foi durável. Neste cântico cristão, ainda em uso nas comunidades católicas, com texto do padre Alberto Neto e música do padre José Pedro Martins, ouvimos, de algum modo, o eco do espírito das Canções Heroicas de Lopes-Graça: “Povo que vais ao encontro da terra da salvação,/ Ergue os teus olhos ao alto, ao teu Senhor, teu perdão!/ Se a noite for prolongada e o luar fugir dos Céus,/Acredita que são estrelas os sulcos dos passos teus.”


*Alfredo Teixeira, antropólogo