Entrevista a Ana Paula Dourado

Propostas dos partidos para os impostos "não são sérias" e "não são fazíveis"

07 mar, 2024 - 09:00 • João Carlos Malta

O leilão de medidas fiscais dos maiores partidos, segundo a professora catedrática da Faculdade de Direito da Universaide de Lisboa, Ana Paula Dourado, é perigoso porque a margem para baixar impostos é muito curta. A especialista alerta para a impossibilidade de resolver os problemas do país a aumentar ou diminuir o IRS e o IRC.

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A especialista em direito fiscal e professora catedrática da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa Ana Paula Dourado olhou para os programas dos diversos partidos com assento parlamentar e chegou à conclusão que apenas o da Iniciativa Liberal e do Bloco de Esquerda são coerentes e consistentes. Justifica-o com o facto de serem os únicos que criam um modelo fiscal que se adequa à concepção de Estado que defendem.

A especialista alerta ainda assim que um "país não se resolve com impostos ou medidas avulsas sobre impostos".

É por isso que, sustenta, "é difícil votar, nos partidos do centro [PS e PSD], com base nas propostas fiscais, porque não são propostas quantificadas e suficientemente responsáveis".

Ana Paula Dourado, que é professora convidada na Universidade de Nova Iorque e foi representante de Portugal na UE e na OCDE além de ter sido consultora do FMI, acredita que beneficios fiscais para quem vive no interior não resolveriam os problemas da desertificação e considera o imposto sobre as heranças positivo mas "irrealizável".

Em Portugal temos a perceção de que pagamos demasiados impostos sobretudo para o Estado Social que temos. Há economistas que defende uma coisa e outros o contrário. Mas o que mostram os números? Confirmam ou desmentem?

Quando nós medimos a carga fiscal, devemos ter em conta o lado da despesa. Aquilo que designou por Estado Social que temos ou não temos. A perceção pública do pagamento de demasiados impostos, está muito relacionada com a degradação dos serviços e bens públicos e com a falta de transparência e de controlo sobre a aplicação dos nossos impostos.

Não se pode falar num sistema fiscal justo sem se ter em conta o lado da despesa e era muito importante haver uma opinião pública mais exigente, incluindo obviamente o papel dos media para essa prestação de contas.

Grande parte dos impostos foi aplicada na redução de défice e da dívida pública, que era um objetivo para o nosso país, que nos deve alegrar e descansar a todos. Mas é pouco, porque há uma perceção pública de grande desperdício face aos impostos que nós pagamos e à quantidade e à panóplia de impostos muito diversificada, muito exagerada, muito complexa que pagamos.

E, portanto, uma perceção correta?

É correta em termos de falta de responsabilização do Estado e de transparência quanto à aplicação dos mesmos.

Agora, uma resposta mais técnica, se formos medir, se formos comparar com o que se passa na OCDE e os nossos parceiros na União Europeia, o que pagamos não está acima da média. Não estamos no IRS, mas temos um IRC elevado.

Olhando para o que os partidos propõem nestas eleições no que concerne a impostos e ao sistema fiscal, qual é a apreciação que faz?

É muito fácil e também inconsequente para os políticos anunciar alterações aos impostos, mas não é inconsequente para os contribuintes, para as pessoas singulares e para as empresas.

É sabido que a maior parte das principais medidas económicas estão nas mãos da União Europeia, mas isso significa que nas últimas décadas e nos últimos anos, grande parte das campanhas eleitorais se fazem a partir das medidas fiscais.

Simplesmente, os impostos são medidas insuficientes para responder aos problemas dos países, neste caso de Portugal. Os principais problemas do país estão identificados e são muito percecionados pela população antes da queda do governo, nomeadamente na saúde, na habitação, na educação e na justiça, na emigração e no envelhecimento.

O país não se resolve com impostos ou medidas avulsas sobre impostos.

Porquê? Podia detalhar essa sua ideia de que não é com impostos que se resolvem os problemas do país....

Claro que sim. Quando nós estamos a falar de impostos, devemos falar de um sistema fiscal que, aliás, no caso português, está detalhado na nossa Constituição. Isto é, os impostos devem concretizar uma medida de justiça, de igualdade, devem ser eficientes, devem ser simples e devem ser bem administrados. E é com base neste conceito de sistema fiscal que depois cada um dos impostos deve ser desenhado e implementado.

O que é que isso significa?

Significa que os impostos são feitos para prosseguir outras políticas. Podem ser acessórios, mas nunca são a medida principal.
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"As únicas propostas que eu considero sistemáticas, consistentes, coerentes, são as da Iniciativa Liberal e do Bloco de Esquerda, em que nós percebemos um conceito de país, percebemos um conceito de Estado − menos Estado, mais Estado − e são propostas coerentes com os seus programas políticos."

Por isso, é que eu estava a dizer que é muito fácil aos partidos políticos apresentarem esta panóplia de medidas avulsas que não têm nenhuma coerência, digamos assim, em termos de sistema e sem apresentar medidas de fundo para resolver os problemas estruturais e que, no fundo, revelem qual é o conceito que têm para o país.

As únicas propostas que eu considero sistemáticas, consistentes são as da Iniciativa Liberal e do Bloco de Esquerda, em que nós percebemos um conceito de país, percebemos um conceito de Estado − menos Estado, mais Estado − e são propostas coerentes com os seus programas políticos.

Os outros partidos têm propostas ad hoc que não funcionam, não resolvem os problemas de fundo e que são muito fáceis de anunciar: descer, subir, descer, subir.

As medidas fiscais têm de ser sempre quantificadas antes de ser anunciadas e, no nosso caso, só a Aliança Democrática o terá feito. Tudo o resto são brincadeiras com o dinheiro dos contribuintes, em que nós não sabemos onde é que vai ser aplicado e como é que isto é possível de aplicar.

Por outro lado, como já estávamos a comentar, a justiça fiscal só pode ser medida através do lado da despesa, do controlo e do juízo crítico sobre onde é que vão ser aplicados nos nossos impostos.

A análise que faz dos programas é de alguma dissociação, digamos assim, entre a realidade e as medidas que são propostas pelos partidos?

Sim, sim, exatamente. Quando eu digo que as propostas não são para levar a sério, isto tem a ver com o facto de devermos ter presente que temos compromissos de défice baixo e de limites à dívida pública na União Europeia e, portanto, a margem para os governos descerem os impostos é uma margem mínima. A margem portuguesa é uma margem mínima.

Por isso, é que essas medidas dos partidos, que nós costumávamos dizer do arco da governação, são medidas que não são para levar a sério, porque uma vez estando a governar, podem adotar algumas medidas de cosmética, uma descida aqui ou uma subida ali. Mas não são verdadeiros conceitos de sistema fiscal. Por isso é que eu dizia que, se olharmos, vemos que a Iniciativa Liberal tem um conceito de sistema fiscal e o Bloco de Esquerda também tem.

Não é sério referir que se vai baixar drasticamente. Tudo isto deveria ser pensado e não só nos programas individuais dos partidos. Para se fazer uma reforma do sistema fiscal deveria haver um compromisso dos vários partidos, porque se queremos ser competitivos, uma das medidas principais é a de ter impostos estáveis e ter regimes fiscais estáveis.

Entrando agora nas medidas propostas pelos diversos partidos para as eleições de 10 de março, o PS propõe reduzir as taxas do imposto da classe média e atualizar os limites dos escalões de acordo com a taxa de inflação. Alarga também o IRS Jovem. São medidas com impacto real e que podem trazer alguma transformação?

São medidas de cosmética, podem ajudar conjunturalmente, mas não vão resolver os problemas. Em relação à classe média, o que nós verificámos foi que, na última década, Portugal e a Grécia foram os Estados que agravaram a progressividade no IRS e, portanto, há alguma racionalidade em agora desagravar essa progressividade. Digo isto, sempre com aquele comentário de que tudo isto tem de ser medido primeiro, quantificado, e tem de se ver o lado da despesa.

Mas comparando só o lado da receita e os IRS, andámos em contracorrente e, portanto, agora poder-se-ia justificar [o desagravamento]. O que uma visão mais de esquerda ou de centro-esquerda na Europa propõem, para compensar esta redução da progressividade, é a introdução de um imposto sobre as grandes fortunas que é proposto, por exemplo, pelo Bloco de Esquerda aqui.

Só que esses impostos só funcionam se forem coordenados a nível internacional, porque senão provocam fuga de pessoas e de capitais. Quanto ao IRS Jovem não resolve absolutamente nada, ou é uma medida muito auxiliar, porque o problema está nos preços da habitação e nos salários.

"[...] a margem para os governos descerem os impostos é uma margem mínima. A margem portuguesa é uma margem mínima."

Nós estamos num espaço aberto de mobilidade e de liberdades fundamentais, portanto, de circulação, e isso significa que é natural que os jovens portugueses saiam à procura de um maior rendimento líquido.

A AD quer tornar o IRS Jovem estrutural e transversal. Segundo o que diz, não é isso que vai garantir que os jovens não saem do país?

De todo, de todo. Como eu estava a dizer, a questão deve sempre ser pensada de forma global, ou seja, a acessibilidade, a habitação perto do emprego, boas condições de emprego, salários e aí os impostos também são ponderados.

O que é interessante é que nós aqui também estamos em contracorrente. Os números recentes apresentados pela Comissão Europeia e pelo Parlamento Europeu, no final do ano passado, mostram que a mobilidade e a emigração dentro da Europa têm sido cada vez mais temporárias. Portanto, tem-se verificado um regresso a casa, inclusivamente no caso dos países do Leste.

Em Portugal, este é um movimento relativamente recente. Não conseguimos ainda avaliar se se trata de uma saída temporária dos jovens. A verdade é que para regressarem terão de ter condições que compensem essa saída.

Há alguma possibilidade de ter taxa de IRS de 15%, como a IL propõe de forma transversal e o Chega para salários até aos 30 mil euros, e manter o mesmo estado social?

Não, de todo. Mas conceito de Estado da Iniciativa Liberal é muito claro. Esta proposta, da Iniciativa Liberal é muito radical, porque terá sido inspirada no modelo irlandês. Nas últimas eleições não era tão radical. Do que me recordo, havia duas taxas. Ora bem, é claro que isto seria uma alteração completa do Estado português e do papel do Estado.

Portanto, implicaria uma redução drástica das despesas. E não me parece sinceramente viável, porque o único aspeto que teria algum interesse de discutir, neste caso, era a simplificação do sistema fiscal português, também do IRS.

Faz sentido não ter um sistema fiscal progressivo?

A minha opinião é que devemos ter um sistema progressivo. Há vantagens num sistema mais simplificado se for estável, e isso implicaria uma previsibilidade por parte das pessoas. Isto é, se nós tivéssemos três, quatro taxas, reduzimos muito a redistribuição, portanto, seria muito menos progressivo. Mas a compensação seria a de se tornar muito mais atraente e mais simples.

Em teoria, [a progressividade] poderia ser substituída por um imposto sobre as grandes fortunas, que é o que está a pensar, neste momento, a nível da OCDE. Independentemente de programas eleitorais de esquerda ou de direita, começa a haver um grande consenso que deve existir um imposto sobre as grandes fortunas. Se existir um imposto sobre as fortunas é possível aliviar a classe média e é possível reduzir a progressividade.

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"No último governo PSD e CDS, no quadro da troika, foi anunciado um choque fiscal com redução de taxas e que isso atrairia muito investimento. Estas medidas de redução de taxas não têm trazido efeitos a Portugal em termos de investimentos".

Agora, voltando à proposta da Iniciativa Liberal, não parece realista para Portugal, para o conceito que temos e para a situação portuguesa.

Faz sentido baixar o IRC das empresas de 21% para 15% como propõe a AD. É isso que vai atrair mais investimento estrangeiro? Não há o risco de ser só um desconto fiscal para as empresas?

No último governo PSD e CDS, no quadro da troika, foi anunciado um choque fiscal com redução de taxas e que isso atrairia muito investimento. Estas medidas de redução de taxas não têm trazido efeitos a Portugal, na verdade, em termos de investimentos. No fundo, é voltar àquilo que eu dizia no início que os impostos por si não resolvem os problemas do país, nem em termos de atração de investimento.

"[a progressividade] poderia ser substituída por um imposto sobre as grandes fortunas, que é o que está a pensar, neste momento, a nível da OCDE. Independentemente de programas eleitorais de esquerda ou de direita, começa a haver um grande consenso que deve existir um imposto sobre as grandes fortunas".

Dito isto, o que é mais importante é manter uma estabilidade na taxa do imposto, é isso que é mais importante. Podemos discutir se o IRC neste momento, não é muito elevado. É interessante ver como a nível internacional, desde há duas décadas, as taxas dos impostos sobre as sociedades desceram dos 35% até este nível muito baixos que temos todos atualmente, os 21%.

Há dez anos, há 15 anos, há 20 anos seria uma taxa muitíssimo baixa, simplesmente como estamos numa economia aberta é verdade que esta competição fiscal tem sido utilizada por todos, não só por nós, para atrair o investimento. Mas, como disse no início, em Portugal não parece estar a produzir resultados.

Estes 15% do programa da AD, provavelmente estão inspirados numa medida que foi adotada, e que nós temos numa diretiva europeia, de uma tributação mínima efetiva, uma taxa efetiva mínima de 15% para os grandes grupos multinacionais.

E, portanto, nesse sentido, nós teríamos para os grandes grupos multinacionais uma margem para descer a nossa taxa efetiva para estes 15% e isso poderia tornar atraente o investimento ou tornar-nos mais competitivos. Simplesmente não chega alterar a taxa. Toda a gente sabia que a taxa do IRC na Irlanda era de 12,5%, e isto foi acordado entre os vários partidos, independentemente da ideologia.

Mas na Irlanda, os impostos eram um pormenor, se calhar um pormenor importante. Mas era um dos elementos de todo o dinamismo da economia irlandesa e, portanto, não é descendo a taxa que vamos tornar o país mais competitivo.

O PCP propõe-se ainda a acabar com vários benefícios e isenções fiscais, majorações, isenções e outros mecanismos que, diz, permitem aos grupos económicos reduzir artificialmente a sua base tributária. Isto é verdade? Há um grande número de empresas a usar artifícios legais para não pagar impostos?

Sim, claro. Há um número grande de empresas a fazê-lo e não é necessariamente através dos benefícios fiscais ou majorações. É através do que nós designamos por planeamento fiscal ou planeamento fiscal agressivo.

O problema dos benefícios fiscais é um problema transversal também em todos os países e em que há um défice de controlo quanto aos efeitos dos benefícios fiscais. São exceções ao princípio da igualdade, à capacidade contributiva e os impostos devem reger-se pelo princípio da igualdade.

Devia haver um controlo periódico e curto sobre os efeitos dos benefícios fiscais, porque as exceções só devem ser dadas se houver uma contrapartida por parte destes contribuintes.

Ou seja, os benefícios fiscais não são privilégios fiscais, esses estão proibidos. Eles podem ser dados como exceção se, por exemplo, houver um compromisso de criação de emprego, numa certa região mais desfavorecida, e investimento por um período mínimo de cinco anos.

Mas esse controlo, ou seja, perceber se realmente os efeitos positivos para o país compensam o benefício fiscal foi atingido, não é feito. E este não é só um problema português. Essa reavaliação periódica deve ser feita, deve ser quantificada e a despesa fiscal, portanto, a perda de receita deve ser reavaliada e se o benefício fiscal ainda faz sentido.

Falou da questão do planeamento fiscal agressivo que é feita pela maior parte das empresas multinacionais. Faz sentido, tendo hoje as empresas todas essas ferramentas que lhes permitem, de facto, estabelecer estratégias para pagar menos impostos, o Estado, em cima disso, ainda reduzir taxas?

Depende muito do controlo que o Estado faz do planeamento fiscal agressivo. O que nós assistimos nos últimos dez anos a nível da União Europeia e não só, mas falando dos nossos vizinhos, foi a administrações fiscais extremamente agressivas também.

Isto é uma reação das administrações fiscais em controlar o planeamento fiscal agressivo. O caso mais mediático, que não é necessariamente de uma empresa, é o do Cristiano Ronaldo e de como é que o trataram em Espanha.

Nós também temos um caso em Portugal, o de Fernando Santos, em que se discutia se os seus comportamentos são de planeamento admissível ou se já é um planeamento ilícito. E, portanto, tudo isto depende de como as autoridades tributárias estão a agir e que retaguarda é que têm por parte dos governos em adotar esse comportamento de controlo. E se esse controlo, no mundo atual, aberto, não é incompatível com as descidas das taxas de imposto.

Uma pergunta diferente é onde é que nos leva esta descida das taxas de imposto? Porque isso é uma questão clássica, porque a concorrência entre os Estados às tantas leva aquilo a que se designa um jogo de soma zero.

Ou seja, em última análise, chegamos a uma situação em que não pagam. Ultimamente fala-se de um imposto negativo, os Estados para atrair investimento pagam às empresas que potencialmente são interessantes para o país.

Isto é um problema grave. É um problema de competição fiscal mundial e os 15% de taxa efetiva que falamos há pouco, é uma forma de tentar obviar a esta corrida.

"Chegamos a uma situação em que [as empresas] não pagam. Ultimamente fala-se de um imposto negativo, os Estados para atrair investimento pagam às empresas que potencialmente são interessantes para o país".

Isto levanta muitas questões: se é efetivo, ou não, se há formas de contornar este imposto mínimo, mas é um esforço interessante de coordenação a nível internacional.

O PS tem criticado fortemente as propostas da AD na área da fiscalidade, afirmando que criariam um rombo nas contas públicas de 23,5 mil milhões em quatro anos. Como é que analisa estas acusações?

Não fiz as contas, de qualquer forma é um pouco o que tinha dito no início e acho que as propostas dos partidos em geral não são sérias, porque estão a querer anunciar a resolução dos problemas através de medidas fiscais, sem sabermos o que é que isso implica em termos de despesas, sem perceber qual é a conceção do papel do Estado que têm, sem ser claro, porque nós, quando, quando votamos para o Parlamento, para os nossos deputados, votamos em relação às nossas preferências.

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"As medidas fiscais têm de ser sempre quantificadas antes de ser anunciadas e, no nosso caso, só a Aliança Democrática o terá feito. Tudo o resto são brincadeiras com o dinheiro dos contribuintes, em que nós não sabemos onde é que vai ser aplicado e como é que isto é possível de aplicar."

A minha perceção é a de que os partidos, e não é só a AD, não estão a apresentar propostas sérias em matéria tributária.

A IL propõe a criação de zonas económicas especiais de baixa fiscalidade para empresas especializadas em função do setor e localizadas no interior do país. Para o contribuinte singular, faz sentido que quem vive no interior pague um IRS igual ao dos que trabalham zonas litorais, quando o acesso que têm ao Estado Social é mais precário?

Deixe-me responder em duas frentes. Primeiro, em relação à medida proposta em si, porque acho que esse é um exemplo de inconsistência nas propostas da Iniciativa Liberal. Eu já tinha dito no início que a IL tinha uma proposta de sistema fiscal e parece-me que é clara. Mas depois, quando entra nestas exceções, começam os problemas.

Nada disto já tem a ver, por exemplo, como o sistema irlandês. Já tem muito mais a ver com a cultura portuguesa da exceção. O que é extremamente prejudicial. Qual é o problema em termos de criação destas zonas para efeitos de IRC? Provoca abusos fiscais, provoca evasões fiscais. Teria de haver um grande controlo, uma máquina da Autoridade Tributária muito virada para esse controlo e mesmo assim esse controlo provavelmente não existiria.

Nós não temos controlo dos residentes não habituais se eles realmente estão a residir em território português ou não e, portanto, é uma medida que eu considero de concorrência desleal.

E quanto às pessoas singulares, uma redução de impostos no interior do país também não tem produzido efeitos. Já foram feitas várias tentativas, vários governos tentaram fazer essa distinção. Nós temos essa distinção também ao nível do IMI. A possibilidade de introduzir essas distinções, só por aí não consegue fixar as pessoas e cria problemas do lado do controlo, isto é, há possibilidade de a pessoa declarar que vive no interior do país e, na verdade, não residir no interior do país.

Nós já temos essas distinções para as regiões autónomas dos Açores e da Madeira, por causa da insularidade, em que é admissível ter impostos mais baixos. Não funciona e tem de haver o tal controlo. Portanto, eu não sou favorável a essas medidas porque acho-as também perigosas, inócuas.

Faz sentido criar um imposto sobre lucros excessivos para setores que mais beneficiaram com inflação e subida de juros nesta época de crise?

É uma opção política. A Comissão Europeia deu margem, deu luz verde aos estados-membros, no ano passado, para criarem impostos. À partida são vistos como impostos transitórios para fazerem face à conjuntura pela qual estamos a passar de guerra na Europa, de inflação, com os superlucros.

Nesse ponto não parece ser controverso. Ou seja, faz sentido. Depois, como é que ele é criado, durante quanto tempo é que implementado, estes pormenores teriam de ser vistos. Mas esses impostos fazem sentido, desde que não provoquem a saída das empresas. E tratando-se de empresas que não têm essa mobilidade, não há o risco de saírem do país. Também não há o risco de ser uma medida que não produz efeitos.

Na sua ótica, é importante taxar as heranças e doações como o Bloco de Esquerda propõe. E porquê?

Nenhum partido terá coragem ou nenhum governo terá coragem de reintroduzir um imposto sobre as heranças em Portugal. Já foi abandonado e o que nós sabemos é que quando os impostos são eliminados, não há base, não há apoio, não há sustentação popular para a sua reintrodução.

Portanto, é um anúncio que pode ser feito, neste momento, mas que eu diria que não terá concretização, a não ser que a situação mudasse muito em Portugal.

Agora, se ele é justificado ou não, ele é justificado. Porquê? Porque um sistema fiscal justo não deve discriminar positivamente certo tipo de rendimento ou de património.

Numa perspetiva muito de esquerda, nós temos o exemplo do famoso Piketty, no seu livro “O Capital”, que assenta numa distinção de um professor aqui da Universidade de Nova Iorque, já falecido, Ronald Dworkin.

Este professor fez uma distinção entre sorte bruta e sorte por mérito. A ideia de Dworkin era uma ideia capitalista, não era uma ideia socialista, mas foi aproveitada para prosseguir fins socialistas ou marxistas.

Como assim?

A ideia é a seguinte, se alguém não fez nada para auferir um certo rendimento ou o património, isto é a sorte bruta, então em termos de impostos deve ser tributado porque não há mérito, não há esforço do trabalho. Simplesmente esta medida, como foi depois proposta por Piketty leva a uma tributação progressiva que pode ser praticamente, e em última análise, confiscatória.

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"[..] A tendência que assistimos, nesta campanha eleitoral, foi a de que todos vão reduzir os impostos.Isto não é sério, não é fazível. Não é justo, não é eficiente, não traz absolutamente nada de bom ao país".

Há aqui um juízo muito negativo sobre a pessoa que teve a sorte de herdar.

Para terminar duas questões. Depois de ler as medidas dos partidos para esta área, encontrou medidas irrealizáveis e absurdas. Queria destacar alguma?

As descidas dos impostos que os partidos propõem, que uma grande parte dos partidos propõe, sem a quantificação de como vai cortar do lado das despesas. Eu acho que é generalizado, portanto não é uma ou duas, assim específicas, que são chocantes. É a tendência que nós assistimos, nesta campanha eleitoral, de que todos vão reduzir os impostos. Portanto, isto não é sério, não é fazível. Não é justo, não é eficiente, não traz absolutamente nada de bom ao país.

É por isso que é difícil votar, nos partidos do centro, é muito difícil votar com base nas propostas fiscais, porque não são propostas quantificadas e suficientemente responsáveis. Depois podemos graduar, há uns mais responsáveis do que outros.

Mas em geral, pareceu-me algo muito pouco ponderado, pouco estudado e muito perigoso em termos de desconstrução dos impostos que temos e que já não estão perfeitos de todo.

Não haverá uma bala de prata, uma medida que por si só mudasse toda a arquitetura da fiscalidade em Portugal. Mas se tivesse uma ou duas áreas em que pudesse investir para melhorar o sistema, quais é que seriam em concreto?

A simplificação, a estabilidade e o investimento nos tribunais, na Justiça, que é um dos maiores problemas em matéria tributária.

"Nenhum partido terá coragem ou nenhum governo terá coragem de reintroduzir um imposto sobre as heranças em Portugal. Já foi abandonado e o que nós sabemos é que quando os impostos são eliminados, não há base, não há apoio, não há sustentação popular para a sua reintrodução".

Os processos que se arrastam durante décadas nos tribunais fiscais e administrativos em Portugal afastam um investimento também estrangeiro.

É difícil também atrair especialistas para condições de trabalho, como as que existem atualmente. Há medidas avulsas que têm sido tomadas e que não são também pensadas sistematicamente.

Há falta de empenho em pensar-se de uma forma coerente o funcionamento da Justiça e que me parece um desinvestimento voluntário por parte dos governos.

Penso que nesta altura não podemos dizer que há menos competência, que há distração. Parece um desinvestimento voluntário. É muito grave e não é assumido como tal.

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