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“Vivia com a minha companheira, mas, depois de ficar desempregado, eu já não servia. Em muitos casais é assim, quando alguém fica desempregado tem de ir um para cada lado. Que amor é este?”

Cada vez que fala da ex-mulher, o diafragma sobe-lhe muito. Quando faz o caminho descendente, traz acoplado um suspiro sonoro. As frases saem com pausas e um olhar no vazio. António Gomes, de 58 anos, de Vila Nova de Gaia, construiu toda a sua vida a assentar tijolo sobre tijolo. Até que, há quatro anos, deixou de ter trabalho na construção civil. Como se isso não bastasse, há um ano que não tem qualquer tipo de rendimento.

As mulheres, segundo ele, foram uma perdição, mas também a salvação. Assume que deve tudo à actual companheira. Ela é a bóia que evita o naufrágio. Tem-no mantido à tona.

“Se não tivesse agora na minha companhia alguém que está a trabalhar, não sei como seria. Essa pessoa trabalha diariamente até à noite para podermos sobreviver. Temos a renda desta casa e eu ainda tenho o empréstimo de outra casa que tenho no Porto [comprada com a ex-companheira]”, relata.

Em 2013, depois de dois anos a levantar um novo edifício para a Universidade do Porto (a nova Faculdade de Farmácia e as recentes instalações do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar), António ficou sem emprego. Tinha 54 anos, pensou que era mais um período pequeno sem trabalho. Não foi.

Começou a sentir o peso da idade. “Tive alguns períodos com falta de trabalho, mas nunca mais de meio ano. Desenrasquei-me sempre a andar por fora. Agora, quando vou às empresas, põe-me sempre o problema da idade. Têm pessoas mais jovens e não há possibilidade para mim."

A força ou o saber, o que vale mais? E é só isso?

António pode e quer trabalhar. “Estou em condições, tenho saúde, graças a Deus. Não tenho qualquer problema. Não quero pedir a reforma antecipada e ganhar menos de 300 euros”, frisa. Reconhece que os mais jovens até “podem ter mais força” e que nas obras isso é importante. Mas ele tem o saber que só a experiência dá: “Já sei como as coisas são feitas. Para as empresas apenas conta a idade e não a experiência que uma pessoa tem.”

O presidente da Confederação Empresarial de Portugal, António Saraiva, ajuda a fazer o “zoom out”. Explica o contexto. A narrativa começa no “boom” da construção que durou muitos anos, a que se somou um modelo de desenvolvimento que assentou “em salários baixos, em pouca inovação e muito em betão”.

Quando a economia arrefeceu, a construção estagnou e a consequência foi o “desemprego de uma camada enorme de pessoas”.

Renato Carmo, sociólogo do ISCTE, especialista em questões do trabalho, acrescenta variáveis: a evolução da globalização, a entrada da China para a Organização Mundial do Comércio, a perda de competitividade de alguns sectores e, por fim, o choque da “crise económico-financeira”. No fim desta matriosca, aparece a austeridade.

“Em Portugal, um sector que produziu muito desemprego foi a construção civil. E desemprego masculino”, lembra.

Uma mudança na estrutura deste fenómeno. “Tradicionalmente, o desemprego era maior nas mulheres do que nos homens e essa diferença foi-se atenuando pelos piores motivos. Se bem que aumentou para os dois”, refere.

António é um número numa estatística. Como Lídia, Justiniano e Rosário, pertence ao grupo dos quase 300 mil portugueses que estão desempregados há mais de dois anos. Este grupo a que as estatísticas dão o nome de “desempregado de muito longa duração” é já quase metade do total de pessoas que não trabalham em Portugal. E este é o conjunto de trabalhadores mais susceptível de engrossar as fileiras do desemprego estrutural, que o governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, já definiu como “um dos fenómenos mais gravosos da evolução da economia portuguesa na última década”.

Esta realidade tem crescido de forma exponencial desde 1998, ano em que são conhecidos os primeiros dados do INE. Em menos de 20 anos, o número absoluto de portugueses que perdeu o trabalho há mais de 24 meses aumentou cinco vezes e a representatividade no total de desempregados duplicou.

Do subsídio à Escócia, da Escócia a nada

Num ambiente político e social em que a ideia forte era o “não há alternativa”, António não teve mesmo outra hipótese que não recorrer ao subsídio de desemprego. E assim esteve ano e meio, até que em meados de 2014, através de um amigo, lhe aparece a oportunidade de ir para a Escócia. O destino era trabalhar o campo. Foi sem pestanejar. Pediu a suspensão do apoio do Estado e partiu. Mal sabia que era o início de um grande problema.

O chamariz era bom, 1.500 euros por mês não eram de deitar fora. Mas o trabalho era sazonal. Acabou e António voltou. Quando regressou a Portugal, quis recuperar o subsídio. Era um direito. Mas deu para o torto.

No meio da burocracia e dos papéis que vão e vêm do Reino Unido, o resultado é que nunca recuperou o subsídio de desemprego. António descreve o processo. Tem muitas siglas e números.

“No fim de Dezembro [de 2014], regressei para voltar para o desemprego. Pediram-me a papelada, mas o único documento que precisavam era o U1. Foi pedido e eu fui entregá-lo à Segurança Social. Passados 15 dias, disseram-me que o documento que veio da Escócia não vinha correcto porque o modelo 7 não vinha a dizer o motivo pelo qual fiquei sem trabalho”, relembra.

De lá para cá, António tem feito desta questão uma luta quase diária. Mas cada carta enviada e telefonema feito esbarra numa resposta. “Mandam-me aguardar."

A Renascença questionou a Segurança Social, que descreveu a história tal como António a contou e que diz que aguarda uma resposta da congénere escocesa para proferir uma decisão final sobre o caso.

O amor também salva

De tanto esperar, ele está a desesperar. “Não tenho outras ajudas, nem rendimentos. O que poupei na Escócia ainda deu para algum tempo mas não é eterno”, enfatiza. Sente que foi penalizado por algo que tem direito e dever, tentar ganhar a vida. E dinheiro. Ainda que de forma temporária.

“Não me arrependo. Não fiz coisas que não devia fazer. Fui ganhar mais dinheiro do que ganhava cá. Nunca me passou pela cabeça que não recebesse aquilo a que tinha direito”, acrescenta.

A situação podia ser pior, garante o homem de 58 anos, se não tivesse conhecido a pessoa com quem está agora. “Uma pessoa está nervosa, quer arranjar trabalho, quer ganhar dinheiro e não consegue. E é bom ter alguém na nossa companhia que nos possa ajudar”, reforça.

António Saraiva anuncia que vivemos a quarta revolução, a era digital, em que os bytes comandam o mundo. Ainda assim, crê que os que ficaram sem emprego na construção civil têm uma saída, a da qualificação.

“Dentro da construção civil, há artes que têm muita procura, porque se pensarmos em electricistas, em canalizadores, hoje, com algum crescimento da reabilitação urbana, há profissionais que têm muita procura nesta reabilitação que as cidades vão promovendo”, enumera.

No entanto, não será uma receita para todos. “Já outros têm menos procura, mas para esses temos de encontrar módulos de formação profissional que lhes elevem as qualificações, porque numa economia digital, como aquela para a qual caminhamos, quem não tiver o mínimo de conhecimentos informáticos dificilmente vai arranjar trabalho”, acredita.

“Exagerando, nós qualquer dia se não soubermos mexer num computador, não comemos”, sublinha.

António tem a quarta classe. Sempre assentou tijolo, fez areados, pintura e, no fim da obra, os acabamentos.

É um homem simples e para o futuro tem também desejos simples, que nesta altura ganham interiormente a dimensão de sonho. “Os meus planos são o de ter um ordenado para ter a minha vida orientada e o sofrimento não ser tão grande como está a ser.”

Quer fechar um capítulo para abrir outro. Mas sabe que a história podia ter sido outra se não tivesse entrado em cena uma nova personagem que se tornou principal. “De certeza absoluta que se não fosse esta mulher, estava na prisão.”

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