Querer trabalhar e não poder

Rosário está no "rés-do-chão" da dignidade. Mas ainda vai ficar sem subsídio

02 mai, 2016 - 08:00 • João Carlos Malta , Ricardo Vieira , Teresa Abecasis (imagem) e Rodrigo Machado (gráficos)

Rosário quer trabalhar, mas não consegue. Não há quem lhe abra as portas. Tem 56 anos e há quatro que não tem um emprego com salário. O subsídio de desemprego termina no próximo ano. O presente é duro. O futuro, neste momento, não existe. Durante esta semana, a Renascença olha para uma ferida social que a transformação económica abriu em Portugal: o desemprego estrutural.

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Rosário atingiu o “rés-do-chão” da dignidade. Mas ainda vai ficar sem subsídio
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Cada dia que passa não é só mais um para Rosário. É menos um dia até Fevereiro do próximo ano, altura em que vai deixar de receber o subsídio social de desemprego. Quatro anos depois de, aos 52 anos, ser apanhada na torrente de um despedimento colectivo da Panrico, o apoio do Estado está a terminar.

E depois? A pergunta é recebida de braços abertos, mas sem nada lá dentro. “Não sei”, lança, lacónica, a ex-operária fabril. Apenas uma certeza: “Não quero pensar nisso.”

Rosário Ferreira sente que há um muro do qual não se consegue desviar, por mais que a cabeça ande às voltas à procura de uma solução. Só tem perguntas, nenhuma resposta: “O meu desespero e a minha angústia é: O que vou fazer em Fevereiro? O que é que se vislumbra para o meu futuro e para os da minha idade que estão na minha situação?”

Tudo passa a estar em causa, até a casa. Partilha-a com a irmã, que recebe uma pensão de pouco mais de 200 euros. “O meu senhorio é muito compreensivo, vivemos lá há muitos anos, sabe que não pode aumentar muito. Mas compreendo que vai chegar uma altura em que também tem vai ter de olhar para os interesses dele.”

Despedimento “take 2”

Em 2012, era já a segunda vez que passava por um processo de despedimento naquela unidade do ramo alimentar. Cerca de 16 anos antes, venceu uma luta em tribunal por um afastamento ilegal da empresa.

Mas os 20 anos de “casa” davam-lhe agora o conforto do tempo, e, achava ela, protecção contra uma nova ofensiva. Nada disso. Uma mudança na lei do trabalho, e a recusa em aceitar uma jornada contínua sem pausa de uma hora para almoço, segundo Rosário, valeram-lhe a entrada para o grupo de 47 que foram obrigados a sair. Um despedimento colectivo justificado em tribunal com prejuízos no ano anterior.

“Fui apanhada de surpresa e fiquei desesperada. Imagina, não imagina?”, pergunta. Continua o relato numa torrente angustiada de quem revive um trauma. “Com 52 anos, já sabendo dos casos que ficam no desemprego e nunca mais conseguem arranjar trabalho, eu fiquei desesperadíssima”, repete, agora no superlativo.

Rosário é um dos quase 300 mil portugueses desempregados há mais de dois anos. Este grupo, a que as estatísticas dão o nome de “desempregado de muito longa duração”, é já quase metade do total de pessoas que não trabalham em Portugal. E este é o conjunto de trabalhadores mais susceptível de engrossar as fileiras do desemprego estrutural, que o governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, já definiu como “um dos fenómenos mais gravosos da evolução da economia portuguesa na última década”.
Desemprego Estrutural. Sabe o que é?
Desemprego Estrutural. Sabe o que é?

As estatísticas evidenciam que este fenómeno tem sido feito de contas de somar nos últimos anos. Na vida de Rosário só tem um efeito: subtrair. Tinha um rendimento líquido entre 650 e 700 euros, mediante os turnos que fazia. “Dava para viver com muita modéstia”, sentencia.

A odisseia em busca do mais barato

Não tinha carro, mas tinha uns euros guardados para o cinema e o teatro, um livro de vez em quando e o jornal ao domingo. “O dinheiro era para isso e para comer. As coisas simples da vida.”

Chega o primeiro cheque do desemprego. No fundo do papel está inscrita a quantia que irá passar a receber: 419 euros. “Quase menos 50% [do que o salário que auferia]. Imagine o que é viver com menos 300 euros e sem subsídio de natal e subsídio de férias”, quantifica. A este rasgão no rendimento mensal ainda se somaram os cortes que a troika e o Governo chefiado por Passos Coelho trouxeram. Passou a viver com 389 euros.

A realidade do dia-a-dia, coisas como o que se pode pôr em cima da mesa a cada refeição, foi-se transformando. “Temos de estar a contar os tostões e já não comemos iogurtes. Tem que se comprar marcas brancas de que até nem se gostava”, lembra.

Quando estas coisas se avolumam, “há todo um processo interior” que se começa a dar. “Uma pessoa vai-se abaixo. A idade vai pesando. O limite existencial vai-se encurtando”.

O sociólogo do ISCTE Renato Carmo, que se tem dedicado a estudar os temas do desemprego, lembra que a precariedade caracteriza-se “por haver muitas mudanças na vida” e só uma certeza: “A de que viverão na incerteza”. “É muito complicado que as pessoas tenham a estabilidade necessária para lançar projectos e pensarem a médio e longo prazo”, explica.

A corrida sem fim e um emprego em forma “sub”

Os meses continuavam a ter os mesmos dias, as mesmas necessidades, mas o dinheiro era cada vez menos. Numa primeira fase, depois de sair das linhas de produção da Panrico, Rosário calcorreou tudo o que era comércio, farmácias, cafés. “Corri tudo, tudo, tudo”.

Resultado final: nada. Nem uma entrevista. “Há um grande desprezo por quem procura emprego”, argumenta. Apesar de já ter lutado contra outras situações de desemprego, desta vez a batalha era diferente. Vivia-se o pico do choque económico que a troika exportou para Portugal.

“Sentia que não havia mesmo possibilidades de emprego. Aqui na zona são pequenas empresas. Entre 2012 e 2013 senti que não havia mesmo condições de dar emprego a ninguém. A economia não estava a funcionar”, diz.

Não houve um emprego, mas houve outra coisa. A Rosário abriram-se-lhe as portas de um POC (Programas Ocupacionais), hoje chamados de CEI (Contratos Emprego Inserção). São programas em que os desempregados beneficiários de subsídio de desemprego ou subsídio social de desemprego e de rendimento social de inserção desenvolvem trabalho socialmente necessário.

Então com 52 anos, Rosário ficou como auxiliar numa escola. Um horário de seis a sete horas – ou seja, quase completo – a troco de pouco mais de 80 euros, a que se adiciona o subsídio de refeição. Contas feitas, qualquer coisa como 150 euros, a que se somavam os 400 do subsídio.

“Tenho um contrato. É um posto de trabalho efectivo. Eles sabem disso. Estou a desempenhar a função da substituição de um posto de trabalho efectivo. São necessidades que as escolas têm e que não abrem sem que haja pessoas a preencher esses lugares”, defende.

Saber que está a ocupar um lugar que outro teria de desempenhar com acesso a um salário justo deixa-a triste. Mas aí a sobrevivência falou mais alto. “Eu sei disso, mas com 389 euros morro. Às vezes penso, estou a fazer este sacrifício todo para ter mais cento e tal euros? Mas fazem-me muita falta”, lamenta.

Não acredita que esta experiência nas escolas lhe venha a dar um emprego no futuro. “Era bom, era”. Mas a experiência diz-lhe que o sistema se auto-alimenta de pessoas que, recebendo auxílio do Estado, estão disponíveis para estas substituições.

A teoria do desemprego estrutural fala-nos, grosso modo, de um desajuste entre aquilo que são as necessidades da economia e aquilo que o saber dos trabalhadores oferece num determinado momento.

José Varejão, presidente da Faculdade de Economia da Universidade do Porto, refere que noutros tempos tendíamos a pensar em determinados perfis. A experiência, no entanto, mostra que há momentos em que as alterações no tecido económico “levam ao desaparecimento de determinadas actividades económicas ou a contracção de outras”.

Empreender, sim, mas em quê?

“Num certo sentido ninguém está a salvo. Há 15 ou 20 anos se disséssemos que o sector financeiro ia provocar desempregados da forma como aconteceu, pensávamos que não podia ser”, afirma o economista, especialista em desemprego.

Será então a requalificação profissional nas áreas de que a economia está necessitada a solução para a dessincronização entre mercado e trabalhadores? “Não sei se chega, mas ajuda", diz José Varejão. "Há várias formas de formação, como a formação em contexto de trabalho, e a criação do próprio emprego quando isso é adequado."

Rosário retira o optimismo da resposta de Varejão do seu caso. “Diziam-me: vai pelo empreendedorismo e tal. Mas a fazer o quê? Digam-me. Pergunto a muita gente, mas não sabem porque as áreas de comércio e indústria estão tomadas por grandes empresas. Não há espaço”, remata.

E prossegue. “Eu não sei costurar, nem fazer calçado, e ninguém me faz formação aos 56 anos para ir fazer calçado que ainda é uma indústria que por aqui emprega”.

O patrão dos patrões portugueses António Saraiva, que lidera a CIP – Confederação Empresarial de Portugal, olha para estes casos locais com um uma perspectiva global. Falta de um conjunto de factores, que todos juntos criaram as condições para que agora o desemprego estrutural seja uma ferida aberta nas sociedades ocidentais. A globalização assim ordenou.

"A crise que as economias europeias atravessaram e as alterações dos modelos de desenvolvimento levaram a que as empresas tenham perdido nalguns casos mercados, noutros competitividade, porque viram-se confrontadas com uma realidade concorrencial diferente daquela que viam com a entrada da China na Organização Mundial do Comércio, com novos 'players' a entrarem no mercado com regras diferentes”, lembra. “Numa economia global com regras regionais há aqui efeitos perversos, desde logo, no emprego.”

Sem mágoa, mas no rés-do-chão de si própria

Rosário não sente culpa pela situação em que se encontra. Sabe que ela afecta outros que perderam o emprego, mas jamais se viu como responsável pela situação em que está. Não carrega essa cruz interior.

Basta olhar à volta, garante: “Há aí moços novos de 35 anos que estão no subsídio, na biscatada”. “Não há emprego, ninguém quer criar emprego e os patrões não estão a criar emprego. Eles não querem criar emprego, preferem criar bancos de horas”, reforça.

“A única mágoa que tenho é a de não poder ter contestado em tribunal o meu despedimento colectivo. Queria ter tido disponibilidade financeira para isso. Mas tinha de devolver a minha indemnização e eu não podia. Teria de viver com 419 euros, sem a almofada que recebi com a saída”, explica.

Ainda assim há algo que a mói. Ataca-lhe a dignidade. Não era suposto viver da boa vontade dos outros. Ela que pode trabalhar, que quer trabalhar.

“Darem-nos coisas porque não temos é caridade, mesmo que seja da família”, afirma.

De seguida, reforça: “A caridade é a coisa pior que pode haver porque nos põe no rés-do-chão.”

E remata, com uma ideia que vem da cave do seu interior. “Nós já somos pouco livres, mas isto parece uma esmola. Mesmo sabendo que as pessoas estão de boa-fé, ninguém se sente bem em depender dos outros”.

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  • Martinhopm
    06 mai, 2016 perto de Évora 16:06
    O comentário do 'Zé das couves' é de um anormal. Se o não é, ou imita muito bem ou é patrão. Nunca deve ter passado dificuldades para falar assim. Perdeu uma boa ocasião de estar calado.
  • Zé das Couves
    05 mai, 2016 Conchinchina 21:22
    A mentalidade do operário português enquanto está empregado, é de que sempre é explorado e o patrão é um bandido, mas quando perdem o emprego lamentam de deixar de ser explorados, e o patrão poderiam ter-se esforçado mais para que a empresa não tivesse fechado as portas. Vamos entender esta gente. Ficam a comentar que o patrão deveria ter feito isto e mais aquilo nunca param para pensar se eles deixaram de fazer alguma coisa que pudessem ter feito melhor para manter a empresa em pé, isso nunca é perguntado. Aconselho quando assim for, a irem bater na porta dos sindicatos que lhe dão os conselhos para fazerem normalmente tudo o que não deviam fazer. Pensem nisso.
  • Manuel Vilas Boas
    04 mai, 2016 Gaia 12:22
    Tanta gente sem trabalho e a passar fome, por isso cada vez há mais exploração
  • Manuela
    03 mai, 2016 Porto 08:40
    Tanta gente sem trabalho e nós agricultores sem mão de obra!Eu não tinha problema em dar trabalho a Sras como a Rosário,o importante é haver vontade de trabalhar, independentemente da idade.A verdade é que todos os anos nas alturas de maior produção,que são sempre no verão,é sempre uma dor de cabeça para encontrar pessoal.É porque está muito calor,é porque as pessoas querem praia ou festas e romarias,ou ainda porque está cá o marido do estrangeiro.Enfim, muitas vezes o problema não é o trabalho, é mesmo a falta de vontade!
  • Pinto
    02 mai, 2016 Custoias 23:42
    Interessa a muita gente esta crise económica e laboral, foi a forma que políticos e empresários encontraram para atingir os objectivos, por arrasto tudo se vai transformando até ao ponto de todas as ideias e ideais se concretizarem. Só não vê quem não tem um palmo à frente da testa.
  • vanda
    02 mai, 2016 cartaxo 23:02
    Estou na mesma . sem trabalho. desemprego quase no fim. nova para reforma e velha para trabalhar.
  • coruja56
    02 mai, 2016 Viseu 18:45
    Uma situação muito grave, desesperante, mas sem solução ou com uma solução de nivel muito muito reduzido. Um mulher com 56 anos no desemprego, quando há milhares que já estão reformados com menos idade. É muito preocupante esta situação, mas as soluções não são encontradas no parlamento, pois , anda mais preocupado com outras coisas, como por exemplo: os homossexuais. É lamentável que tenhamos uma parlamento que não agarrra esta situação, aliás, não agarra porque não sabe como agarrar.
  • mara
    02 mai, 2016 Portugal 16:35
    uma vergonha o que estas inteligências fizeram a este País,estão a obrigar pessoas doentes ecom idade de estar em casa a trabalhar e a deixar no desemprego pessoas desta idade e mais novas, há dias uma professora disse-me estou exausta, não posso mais...E quantos professores estão desempregados? destruirão a agricultura, enfim tudo, e ninguém lhes pede contas ou exija que reponha o dinheiro do Panamá...Viva a democracia e as inteligências sem respeito por Portugal e pelo Povo. Destruir é fácil construir muito difícil.
  • nando
    02 mai, 2016 frança 16:02
    politica e trabalho nunca se deram bem, è ver a imagem França ,isso por aqui anda , trabalhar para encher os bancos! o povo jà nem conta!
  • 02 mai, 2016 16:00
    Os idosos em Portugal é para ficarem sentados no sofá à espera da morte e de preferencia sem chatearem ninguem. Triste pais este, e triste mundo que caminha para a escravatura. 40 anos já se é muito velha , quanto mais 50 ou 60.

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