03 mai, 2016 - 06:54 • João Carlos Malta , Ricardo Vieira , Teresa Abecasis (imagem) e Rodrigo Machado (gráficos)
Veja também:
Dos nove aos 53, foram 44 anos a trabalhar. Chegaram a ser 14 horas por dia, Justiniano Neves não parou. Ou melhor, teve uma pequena interrupção de nove meses. Nada de especial. Antes era assim, saía-se de um trabalho e entrava-se noutro. Nem se pensava no desemprego. Até que, em 2013, o encerramento da cerâmica Valadares lhe abriu um “abominável mundo novo”.
A vida era estável. Tudo estava previsto. Os ganhos e os gastos. Ele e a mulher amealhavam cerca de 1.500 euros por mês. O suficiente para as vidas remediadas no bairro dos pescadores em Espinho, no distrito de Aveiro. Não se queixava. De um momento para o outro, tudo muda: a icónica produtora de mobiliário de casa-de-banho entra em desgraça e com ela 340 trabalhadores.
Um terço ainda teve uma segunda oportunidade na nova vida que a fábrica ganhou em 2014. Não foi o caso de Justiniano Neves, que passou duas vezes pela unidade fabril nortenha, a última das quais durante 23 anos. Teve de se conformar com uma nova realidade, a de ter três vezes menos rendimento disponível ao final de cada mês. Sem a almofada da família, as duas filhas, na casa dos 20 anos, tiveram de partir para a Suíça em busca de novas oportunidades. Passo a passo, começa a descida até aos dias em que todos os tostões começaram a ser contados.
“Foi uma quebra muito grande. Tive de abdicar de muitas coisas. Antes, tirava em média um ordenado de mil ou 1.100 euros por mês”, conta o ex-operário. A primeira talhada vem logo no primeiro mês de subsídio. Passa a receber 600 euros. Mas não foi a última.
“Passado um tempo, levei mais o corte dos 10% e fui para os 540 euros. Passei a ganhar menos de metade”, desfia o homem, hoje com 56 anos. Na mesma altura, a mulher, Carlota, também ficou sem a principal fonte de rendimentos, um casal de idosos de que tratava. E uma outra senhora onde fazia limpezas deixa de ter dinheiro para lhe pagar.
O valor do apoio social que Justiniano recebe ainda baixou mais e é agora de 419 euros, a que se somam os 100 que a mulher ganha por duas horas semanais a limpar uma dependência bancária ali da terra.
Justiniano é um dos quase 300 mil portugueses que está desempregado há mais de dois anos. Este grupo, a que as estatísticas dão o nome de “desempregado de muito longa duração”, é já quase metade do total de pessoas que não trabalham em Portugal. E este é o conjunto de trabalhadores mais susceptível de engrossar as fileiras do desemprego estrutural que o governador do Banco de Portugal, Carlos Costa, já definiu como “um dos fenómenos mais gravosos da evolução da economia portuguesa na última década”.
Esta realidade tem crescido desde 1998, ano em que são conhecidos os primeiros dados do INE. Em menos de 20 anos, o número absoluto de portugueses que perdeu o trabalho há mais de 24 meses aumentou cinco vezes e a representatividade no total de desempregados duplicou.
Ele saiu da Valadares. E a Valadares saiu dele?
Justiniano caiu e Carlota foi com ele. Habituarem-se a uma nova vida não foi fácil, muito menos pacífico. Ela teve de aprender a cozinhar refeições de três e quatro euros. “Evito certos comeres. Não faço fritos. Têm de ser refeições para durar algum tempo”, explica.
Mas as contas eram o pior, lembra Carlota. As cartas continuaram a chegar ao dia certo e os euros passaram a ter de ser de elástico. “Isto dá cabo da cabeça, uma pessoa chegar ao fim do mês e não ter dinheiro para pagar”, sublinha. Houve alturas em que até para o pão era difícil ter dinheiro.
O sociólogo do ISCTE Renato Carmo, especialista em questões relacionadas com o trabalho, explica que, quando o desemprego se torna estrutural, ele é motor de outros problemas. Com a pobreza à cabeça.
“Há uma relação directa. O risco de pobreza tem uma incidência nos desempregados que é muito clara, mas também o da desigualdade e da precariedade. Penso que é um pouco desta maneira que ele se torna estrutural e que dentro de si tem diferentes componentes”, refere.
Mas o dinheiro, ou a falta dele, não significaram só dificuldades económicas. Os problemas começam a ramificar-se e apanharam os afectos. A relação de Carlota com Justiniano ainda passou por uma fase conturbada.
Ela põe as mãos à cabeça quando recorda os primeiros tempos pós-Valadares. Ele dá voz aos sentimentos e às maleitas que o corpo foi somando.
“As cismas começaram a aparecer. Uma pessoa vê-se incapacitada de fazer qualquer coisa. Comecei a ter enxaquecas, até estou a fazer tratamentos, e a tomar medicamentos para as tensões”. A estes somou-se o “problema de ácido úrico.”
Se o corpo não está são, é a cabeça que paga. “A minha esposa é que me alertou de que andava a passear de um lado para o outro sem sentido e comecei a meter-me um bocado no álcool. Até achar que era demais”, revive.
Ele saiu da Valadares, mas sentiu muito mais dificuldades para que a Valadares saísse dele. No corpo tinha as marcas e na rotina os hábitos. “Havia dias em que a meio da noite tinha de ir comer qualquer coisa. Ainda estava habituada ao tempo em que trabalhava por turnos e por volta das 3h00 ou 3h30, o estômago começava a queixar-se”, recorda.
Passados quatro anos, a nova vida que teve de construir já quase apagou todas essas marcas do passado. Justiniano divide agora o tempo entre O Benfiquista, o café onde lê o jornal, os passarinhos que a gaiola guarda e que lhe dão música quase todo o dia, a paciente cana de pesca com que fica horas a olhar para o mar e a necessidade de prestar cuidados ao sogro acamado.
Diz-me que idade tens, e eu digo-te não ao trabalho
Quando em 1990, depois de uma passagem por uma fábrica de cortiça, pela construção civil e até pelo bar de um parque de campismo, regressa à Valadares, abrem-se as portas dos fornos. Não literalmente, claro, mas as temperaturas do local em que trabalhava, relata de memória, chegavam aos 70 graus. “Era uma caixa de fósforos”, lembra.
O trabalho era por turnos, ganhava-se melhor e tinha 30 anos à época. Nada pesava.
Não é bem assim. As sanitas que ganhavam forma na olaria em que laborava podiam chegar aos 50 quilos. E ele pouco mais tem de corpo do que o peso que tinha de carregar.
Não matou, mas moeu. As costas começaram a ressentir-se. O que se seguiu foi uma via-sacra pelos hospitais.
“Tinha de ser operado, o médico disse-me que as minhas costas pareciam uma espinha de bacalhau. Mais uns anos e ficava mesmo entrevado”, avança.
Seguiu-se meio ano em casa e quando regressou já não podia ir para os fornos. Passou a transportar carros de louça. E nesse serviço se manteve até ao fim dos dias na Valadares. Nessa altura, tinha a certeza que, ao contrário do passado, não bastaria estalar os dedos ou falar com um amigo para que o trabalho aparecesse.
“Já sabia que não ia ser fácil, porque já havia tanta falta de emprego. Víamos pessoas com 30 ou 35 anos que não arranjam trabalho. Eu já tinha 53 anos”, sublinha.
A ideia com que ficou, logo na altura, é que “nunca mais” ia “arranjar trabalho”. “Sabia que me tinha de agarrar ao fundo de desemprego, mas claro que se aparecesse um trabalho para eu trabalhar mais quatro ou cinco anitos ainda podia [aproveitá-lo].”
Depois dos 45 mais nada
Também já não servia para tudo. Os trabalhos mais pesados estavam riscados do futuro. O corpo já não os aguenta. “Se ainda fosse para motorista ou para fazer entregas…”
Mas quando não eram os ossos a dar negas, era a data de nascimento a fazer o resto. “Sempre que vejo anúncios, pedem até aos 45 anos. Depois dessa idade é muito difícil, só para trabalhos que tenham mais estudos. Aí é que pode aparecer. Só fiz a 4.ª classe, não é fácil”, constata.
António Saraiva, presidente da Confederação Empresarial de Portugal (CIP), reconhece que entre um jovem e um trabalhador mais velho a escolha do empregador tende a ir para o primeiro. Mas não admite acusações de discriminação, escudando-se na lei da oferta e da procura.
“As empresas que têm a capacidade de contratar, em igualdade de circunstâncias, têm preferido, provavelmente, contratar um jovem com maiores competências a nível informático, de línguas, etc., do que um sénior que, provavelmente, tem sobre determinada profissão um enorme conhecimento de saber, de experiência feito, mas depois falta-lhe outras competências que hoje, a tal economia nova para que caminhamos, exige e ele não tem”, defende.
O sociólogo do ISCTE Renato Carmo garante que o grupo mais preocupante dentro dos potenciais alvos do desemprego estrutural são “pessoas com níveis de escolaridade baixos, e com uma certa idade, que tem empregos de trabalho intensivo, pouco qualificado quer nos serviços, quer na indústria”.
“É um problema muito característico na sociedade portuguesa porque continuamos a ter um défice de qualificação. É uma população que não tem muita saída. Esse é um problema e as políticas públicas já não conseguem dar resposta”, frisa.
Justiniano olha para o lado e percebe que não tem muitas alternativas. Foram poucos, muito poucos, os que à sua volta, depois de perderem o emprego com mais de 50 anos, voltaram ao activo.
Aos 56 anos, já se mentalizou que o próximo passo – e talvez o único que lhe resta – é esperar o tempo necessário para poder pedir a reforma antecipada. E, com sorte, tentar que a penalização seja a menor possível.