Reportagem na Ucrânia

Kharkiv. Onde o pão se reparte no intervalo das bombas

08 abr, 2023 - 20:45 • José Pedro Frazão, enviado da Renascença à Ucrânia

Na segunda cidade da Ucrânia, a proximidade à fronteira com a Rússia implica muitas cautelas na ação das Cáritas católicas. A região esteve sob controlo russo no início da invasão entre março e maio de 2022 e os bombardeamentos não pouparam os templos cristãos nesta província no Leste da Ucrânia. Por isso, ainda hoje há missas com horários mantidos em segredo em Kharkiv. As operações humanitárias não se aproximam a mais do que uma dezena e meia de quilómetros das linhas de combate ou de fronteira com a Rússia. Este é o retrato da ação dos católicos de ritos grego e latino na região que tem por sede uma cidade que já foi capital da Ucrânia.

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"Todos os dias ajudamos duas a três mil pessoas", diz responsável da Cáritas Spes em Kharkiv
"Todos os dias ajudamos duas a três mil pessoas", diz responsável da Cáritas Spes em Kharkiv

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O padre Wojciech vive num lugar comum. "Cada dia é um novo dia" em Kharkiv, a segunda cidade da Ucrânia, situada a apenas 40 quilómetros da fronteira com a Rússia. A tensão é a normalidade, com os seus altos e baixos tudo pode acontecer a qualquer momento. Nos primeiros dias de março de 2022, a Catedral de Kharkiv chegou a ser atingida num forte bombardeamento que chegou a interromper celebrações e a obrigar fiéis a recolherem-se nas caves da igreja.

"Era Quarta-Feira de Cinzas, lembro-me bem. O prédio que fica ao nosso lado era dos serviços de informação da Ucrânia, o SBU. Lembro-me que estava a celebrar a Santa Missa e tinha comigo uns 20 a 30 paroquianos. Rapidamente fomos para a cave e, 20 minutos depois, vim cá a cima à capela porque tinha que terminar a missa!", recorda o padre polaco Wojciech Stasiewicz, que lidera a Cáritas Spes, ligada à Igreja Católica, em Kharkiv.

Acabada a missa, saiu da Igreja e só viu destruição à sua volta. A catedral católica sofreu danos com o impacto das explosões, no culminar de dois dias de fortes bombardeamentos sobre alvos militares e instalações policiais que fizeram mais de 40 mortos e centenas de feridos.

Também a hierarquia ortodoxa procurou abrigo na catedral católica nessas horas. O ataque russo não poupou uma das igrejas históricas da Ucrânia onde os ortodoxos ucranianos têm a sua sede na segunda cidade do país. A catedral ortodoxa, que remonta ao século XVII, com a sua torre de 90 metros de altura, foi danificada no mesmo dia. O bispo Mytrofan, da igreja ortodoxa autocéfala ucraniana, refugiou-se nas caves católicas e, nas semanas seguintes, as duas Igrejas de Kharkiv uniram esforços na ajuda humanitária e mais tarde rezaram juntas por exemplo no Natal de 2022.

Rezar nas caves sem padre na Ucrânia ocupada

O alarme toca novamente em Kharkiv quando entrevistamos Andriy Nasinnyk, que dirige a Cáritas Ucrânia em Kharkiv, afetos à igreja greco-católica. A frequência dos alertas faz com que a rotina se mantenha dentro de portas, evitando sobretudo estar ao ar livre.

Em poucos segundos, talvez um minuto - dizem-nos os habitantes locais - um míssil disparado da Rússia pode cair no centro da cidade. A proximidade à Rússia e a ocorrência de combates numa extensa área do Leste da Ucrânia levam a que a região de Kharkiv tenha sido aquela que registou o maior número de alarmes antiaéreos na Ucrânia desde 24 de fevereiro de 2022, de acordo com dados oficiais ucranianos, que excluem propositadamente a província de Luhansk e a Crimeia.

Nasinnyk é o pároco de Vil'cha, a 70 quilómetros de Kharkiv e a 20 quilómetros da fronteira com a Rússia. Durante os dois meses em que estiveram sob controlo russo, os paroquianos usaram caves para se abrigarem dos bombardeamentos e, conta o padre greco-católico, juntavam-se para "rezar pelos soldados ucranianos" mesmo sem a sua presença.


"Logisticamente, é muito difícil para mim. Tento estar aos domingos, ir às festas e às aldeias. Mas como foi destruída uma ponte, tenho que conduzir 150 quilómetros para fazer o caminho até lá", explica-nos numa sala da Cáritas em Kharkiv.

Na grande região de Kharkiv, a guerra destruiu mais de 50 edifícios religiosos, de acordo com os dados do Instituto para a Liberdade Religiosa, organização ucraniana não-governamental baseada em Kiev.

"As igrejas afetas ao Patriarcado Ortodoxo de Moscovo foram ainda mais destruídas", adianta o padre Nasinnyk, que acusa os padres ortodoxos com essa filiação de "liderarem a colaboração com os militares, dizendo aos soldados russos onde disparar em Kharkiv". O padre greco-católico, de face fechada, ri-se quando pergunto sobre as relações que têm com a Igreja Ortodoxa afeta a Moscovo. "Não falamos com eles e eles não nos aceitam".

Fora da cidade, dentro do drama humanitário

No início da invasão terrestre russa, a artilharia foi colocada mesmo às portas da cidade em localidades como Ruska Lozova, a apenas cinco quilómetros do perímetro urbano de Kharkiv. Durante dois meses o cerco foi duro e por estes dias, um ano depois, há muitas marcas dessa batalha, sobretudo quando se sai da grande cidade.

Não é o centro de Kharkiv que agora preocupa a Cáritas Ucrânia, afeta à Igreja Greco-Católica . O foco está nessas aldeias da província, mas as condições de segurança são primordiais na decisão de estender a ajuda às zonas mais próximas da Rússia ou da linha da frente.

"Temos quatro brigadas móveis e a situação depende dos lugares onde se deslocam. Há uma grande preocupação com a segurança e as brigadas nem sempre podem ir onde querem. Temos um oficial de segurança que avalia se a deslocação é segura", explica o padre Andriy Nasinnyk, o diretor local da Cáritas Ucrânia, que explica que a regra é não estar a menos de 15 quilómetros da linha da frente ou da fronteira. É preciso, não apenas ter segurança, como garantir que a ajuda humanitária é fornecida em zonas onde há um abrigo anti-aéreo.

O apoio alimentar ainda é o mais decisivo. "Em Vil'cha encontrei uma senhora que me disse que pensava que nunca mais iria ver óleo de girassol na vida. Os preços no mercado russo eram tão altos que era impossível comprar. O que valeu a estas pessoas foram os pequenos cultivos de subsistência que tinham", explica Nasinnyk.

Um pão, um médico, um cheque

Todos os dias às 9h00 da manhã, com dois graus abaixo de zero, neve e gelo nos passeios, 20 pessoas juntam-se ao portão que dá para os pré-fabricados da Cáritas Spes, instalados no condomínio da catedral católica de Kharkiv. Trazem sacos para levar comida e vão conversando em grupos, não se pode dizer que façam uma fila. Procuram pão e outros mantimentos, mas o braço humanitário da Igreja Católica romana em Kharkiv não tem mãos a medir para ajudar nessas e noutras áreas de apoio de emergência.

"Elas sabem que estamos aqui, sabem que se precisarem de ajuda vêm à Igreja Católica. Já aqui estávamos antes da guerra. Ajudamos duas mil a três mil pessoas e todos os dias tentamos sair de Kharkiv. Muitas são novas, vêm pela primeira vez. Todas as quintas-feiras vamos a Saltivka, na parte norte da cidade, onde temos muita intervenção. As pessoas lá estiveram em grandes problemas", explica o padre polaco Wojciech Stasiewicz, que reconhece que a situação está melhor face ao primeiro dia de guerra.

A Kharkiv continua a chegar muita gente da região, "pensam que aqui é melhor para empregos, ajuda humanitária, alojamento. Temos muita gente de Balaklyia, Izyum, Vil'ch, porque a situação dessas pessoas é bastante problemática".

A Cáritas Spes presta apoio clínico, com médicos e enfermeiros que recebem os necessitados de Kharkiv três vezes por semana. A região está necessitada de médicos, uma vez que os clínicos fugiram para zonas seguras da Ucrânia ou foram mesmo para as frentes de batalha em socorro dos militares, explica Olga, uma voluntária farmacêutica que trabalha com a Cáritas Spes em Kharkiv.

A rede acolhe projetos humanitários de outras Cáritas europeias como as da Polónia, Noruega e Áustria. Um dos programas consiste na ajuda financeira direta de uma família ucraniana por outra polaca. Os beneficiários têm que trazer muita documentação, mas acabam por receber 200 euros na conta de dois em dois meses numa ajuda dirigida a 500 famílias com crianças.

Nas salas da Cáritas, há centenas de caixas com apoio básico prontas a serem entregues às famílias que visitam no terreno. Cada família recebe uma caixa que tem que servir para dois meses. Arroz, carne, peixe, açúcar, café, chá e chocolate são alguns dos mantimentos que são entregues às famílias dos arredores de Kharkiv.

"Temos que saber sobre as necessidades das pessoas neste momento. Pode ser um médico, pode ser pão. Há pessoas que vêm ter connosco e que estão sob muito stress e, nesses casos, temos que dar apoio psicológico. Há pessoas que têm crianças e que estão prioritariamente em grande stress", explica o diretor da Cáritas Spes em Kharkiv.

"Damos pão, comida, médicos, psicólogos. Mas não consigo, por exemplo, dar apartamentos ou empregos. Essa não é a missão da nossa organização."

Rezar para ajudar (e para vencer)

À mesma hora que o portão vai ficando preenchido, o padre Wojciech lidera uma reunião numa das salas da Cáritas Spes, onde reúne três grupos de voluntários.

"Eles sabem o que vão fazer, mas durante cinco minutos, todos os dias, tento falar sobre a organização de cada grupo. Todos os dias passo pequenas instruções. Temos aqui protestantes, apenas tenho três ou quatro católicos do meu grupo. Muitos voluntários são da Igreja Ortodoxa."

O padre polaco diz que é preciso sublinhar diariamente as razões da intervenção da Cáritas Spes no terreno. "Alguns não entendem. Como sou padre, o primeiro a fazer é falar de Deus, do Evangelho. Os meus voluntários precisam de informação sobre a Igreja e a fé. Os nossos voluntários têm que entender que não somos apenas uma organização humanitária, somos uma organização religiosa. Por exemplo, hoje, ao começar temos que rezar. E todos os dias, cinco minutos antes de fechar o centro, rezamos o Terço. Temos que saber sempre o que estamos aqui a fazer. Primeiro damos o Evangelho e falamos de Deus e em segundo lugar fornecemos ajuda humanitária."

Já na Igreja Greco-Católica muitas orações dirigem-se também para o sucesso militar ucraniano na guerra. "Como padre, tento pedir a Deus a vitória o mais rápido possivel", explica Andriy Nasinnyk.

Do ponto de vista humanitário, o líder da Cáritas Ucrânia em Kharkiv está preocupado com a situação das crianças. "Precisávamos de muitos psicólogos para tratar delas. As escolas e jardins de infância foram aniquilados. Com a falta de eletricidade, não há condições para manter o ensino remoto e não se consegue uma continuidade de estudos". Outra aposta essencial é o regresso das interações sociais em aula, cujo projeto carece de apoio de doadores, explica o padre greco-católico, preocupado com a demora na reconstrução da Ucrânia.

Os ritos latino e greco-católico da Igreja Católica ucraniana não são fator de desunião, mas falar da coordenação com a outra Cáritas católica não merece grande entusiasmo dos interlocutores. "Eles - Cáritas Ucrânia - são bons na região toda de Kharkiv e quando eles estão num sítio eu vou a outra localidade", explica o diretor da Cáritas afeta à Igreja Católica Romana. Em contrapartida, o lado greco-católico não fornece apoio médico como faz a Cáritas Spes. "Não temos licenças para isso", responde Andriy Nasinnyk.

Uma história que se repete

Voltamos aos lugares comuns na anormalidade da guerra, ao "dia novo" que é cada dia ao serviço dos necessitados de Kharkiv. "Quando acordo, dou graças a Deus por viver mais um dia. Quando vou dormir, peço a Deus para que amanhã possa estar a fazer coisas", confessa o padre Wojciech Stasiewicz.

A igreja está mais vazia do que antes da guerra. As missas, que se mantêm todos os dias da semana, são transmitidas pela internet e a assembleia é geralmente apenas composta por voluntários e militares.

"Por razões de segurança, não divulgo a informação da hora a que vamos ter missa ao domingo. Só a comunicamos às pessoas que estiverem na igreja ou às que me telefonam."

Também os bombardeamentos e as ocupações são lugares comuns na memória de Kharkiv, algo de ataques aéreos alemães em 1941, ocupada até 1943, durante a Segunda Guerra Mundial. Viver hoje em Kharkiv, cidade que foi capital da Ucrânia enquanto República Soviética Socialista entre 1919 e 1932, implica gerir o risco da proximidade às linhas do inimigo. A fronteira é logo ali e a fé na vitória ucraniana alimenta a esperança dos católicos de Kharkiv numa qualquer paz.

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