"Estive 22 anos em silêncio. Sentia-me culpada, passei muitas noites a chorar”

Alexandra foi vítima de abuso sexual há mais de duas décadas. Perdeu a confiança e o amor próprio. Viu-se obrigada a abandonar a vida religiosa e a recomeçar sem o apoio da família, mas não deixou de ter fé. Deus continua a ter um lugar “muito importante” na sua vida.

12 fev, 2023 - 21:30 • Ana Catarina André



"Estive 22 anos em silêncio. Sentia-me culpada, passei muitas noites a chorar”

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Quando Alexandra foi abusada sexualmente por um sacerdote, há mais de 25 anos, era uma jovem noviça. Durante 22 anos, não contou a ninguém o que lhe aconteceu.

“Era impensável chegar ao pé de alguém e dizer que tinha sido abusada por um padre”, conta à Renascença.

Hoje, com 43 anos, e depois de ter quebrado o silêncio, por não aguentar mais guardar o segredo, diz-se “em reconstrução”. Faz psicoterapia e, neste momento, a diocese a quem denunciou o caso, “ofereceu-se para pagar um x de consultas”.

Recuando à sua adolescência, quem era a Alexandra antes de ter sido vítima de abuso sexual?

Era uma miúda que gostava muito de socializar. Tinha sempre bastantes pessoas comigo. Apesar de ser tímida, ao mesmo tempo era extrovertida e autoconfiante. Gostava de conversar, de estar com outras pessoas.

Que idade tinha quando foi vítima de abuso?

17.

O que é que se quebrou em si a partir desse momento?

Sobretudo a autoconfiança caiu completamente. [Também] deixei de confiar nas pessoas. Para mim, não era fácil voltar a confiar em alguém, porque fui abusada por uma pessoa que nunca pensei que fizesse isto. Estava numa posição em que eu nunca imaginei que alguém pudesse fazer [isso].

Era um sacerdote?

Sim. A partir daí, confiar em pessoas novas e mesmo [com] aquelas que eu já conhecia era muito difícil mesmo. Deixei de ter amor próprio. Achava que não valia nada, e que não merecia que nada de bom me acontecesse. Acho que inclusive deixei de amar.

Os outros?

Sim.

Era impensável chegar ao pé de alguém e dizer que tínhamos sido abusados por um padre, acreditarem em nós, e fazerem alguma coisa

Porque é que se cala um acontecimento destes?

Isto é um acontecimento tão avassalador que nos muda completamente. Existe um antes e um depois. Há um sentimento de culpa tão grande, apesar de, agora, saber que não fui culpada. As pessoas não estão preparadas para ouvir. Não estão agora, mas há 20 anos [estavam] muito menos. Era impensável chegar ao pé de alguém e dizer que tínhamos sido abusados por um padre, acreditarem em nós, e fazerem alguma coisa. Naquela altura, aquilo que aconteceria era que se fôssemos contar a alguém ainda éramos nós criticados. Não acreditavam em nós, não confiavam em nós e iam defender a outra pessoa devido à posição que tinha. Era mais fácil para as pessoas pensarem que nós é que estávamos a fazer algo de errado, não é? Então, é muito difícil contar a alguém um acontecimento desses. Por isso é que calamos durante tantos anos, até que chega uma altura em que achamos que não podemos aguentar mais com este silêncio e precisamos de partilhar com alguém essa culpa.

Era uma culpa de quê? Sentia-se culpada pelo que tinha acontecido?

Sim. É uma coisa estranha. Além daquilo do que o padre me disse, das palavras que me disse de que ninguém iria acreditar em mim se eu contasse, [sentimos que] há uma culpa de que tudo aquilo se deu por nossa causa. Ou porque éramos frágeis e deixámos que acontecesse, ou porque não conseguimos lutar no momento para impedir. Arranjamos sempre uma desculpa dentro de nós, de que havia alguma forma de ter conseguido parar [aquele] acontecimento, de que aquilo não se desse. Eu não sei o que é podia ter feito, mas há aquele sentimento extremo de que haveria certamente alguma coisa para fazer e não fiz. Então, sim, sentia muito essa culpabilidade.

Como é que foi vivendo com isso nessas primeiras semanas, nos primeiros meses?

Foi terrível, [passei] muitas noites a chorar, porque durante o dia não o podia fazer. Foi sentir que cá dentro tudo estava a desmoronar. Parece que já nem eu existia e já nada fazia sentido.

Ninguém foi dando por isso?

Não, porque acho que aprendemos a fingir.

Cria-se uma máscara?

Sim. É como se quando estamos diante dos outros, fossemos obrigados a ser outra pessoa, para que ninguém descubra –sobretudo para encobrir. Como é algo para nós tão doloroso e temos tanto medo de sermos julgados e ainda nos apontarem o dedo, há toda uma necessidade de criarmos uma nova faceta, uma máscara, como disse, para que as pessoas não descubram nunca aquilo que aconteceu. É claro que podem notar diferenças no nosso comportamento.

Deixou de ser alegre, é isso?

Sim, mas tinha de fazer um esforço para manter os mínimos. [Isso] faz com que as pessoas no dia a dia, se calhar, nem se apercebam das mudanças que há em nós. Podem pensar que tem a ver com a idade ou com alguma coisa que possa ter acontecido, mas nunca isso.


Qual era o seu contexto de vida naquela altura?

Estava na vida religiosa.

Que impacto é que o abuso teve no seu estado de vida, na procura da vocação?

Levou-me a sair mais tarde [da congregação], porque já não aguentava. Lembro-me, por exemplo, que, no dia em que fiz os meus votos, em que eu jurei obediência, senti que devia ser completamente franca e não podia esconder este pormenor. Mas não conseguia [contar]. Dentro de mim, havia sempre este conflito de que não estava a ser completamente obediente, por não ser completamente verdadeira. Isso magoava-me muito intimamente. Depois houve uma situação em que tive de lidar com alguns padres devido ao trabalho que estava a fazer, e não queria nada. Não confiava minimamente, e isso acabava por prejudicar a vivência da minha vocação. E é uma coisa que lamento muito, porque sinto que esse padre destruiu não só a minha vida, mas os meus sonhos e a minha vocação.

Como é que ficou a sua relação com Deus?

Ficou um bocado abalada. Acho que era impossível não ficar abalada, sobretudo no início, mas nunca deixei de acreditar, nem nunca deixei de amá-Lo. No fundo, acho que nunca mais foi completamente a mesma relação, com aquela intensidade com que a vivia dantes. Abala sempre, porque afinal foi dentro da igreja, não é? E isso altera-nos muito.

Foi quase como renascer das cinzas, pouco a pouco

Contava que saiu da vida religiosa por este motivo, mas nessa altura ninguém se apercebeu o que é que a tinha levado a essa decisão.

Não. [Ninguém soube.] Quando eu saí, já era irmã.

Já tinha feito votos, portanto?

Já. Já tinha vários anos de votos. O motivo que apresentei foi aceite e nunca ninguém se questionou acerca disso.

Como é que conseguiu recomeçar?

Foi difícil começar uma vida fora, sobretudo porque me sentia muito revoltada por ver me obrigada a abandonar a vida consagrada. Comecei uma nova vida longe de toda a gente, da família, dos amigos e da congregação.

Sozinha?

Sozinha. Completamente sozinha. Foi quase como renascer das cinzas, pouco a pouco. E pouco a pouco, fui-me levantando, e consegui reerguer-me, ter a minha vida pessoal e trabalho.

A relação com a sua família acabou então por ficar também ferida?

Sim, muito.

Porque nunca lhes contou o real motivo da sua saída da congregação, é isso?

Exatamente. Eles não sabem porque é que eu saí.

Com os seus amigos e as pessoas de quem era próxima a relação foi mudando também?

Senti uma necessidade de não meter ninguém neste assunto, porque, mais uma vez, ninguém iria compreender. Todos eles me questionavam porque é que tantos anos depois tinha saído [da congregação]. Inventava sempre a mesma desculpa e aceitavam. [Ainda assim], deixou de ser uma relação tão próxima.

O que é que a levou a pedir ajuda?

Já não aguentava mais este segredo. Vivê-lo sozinha. Sentia que precisava de partilhar com alguém. Houve um dia em que estive com uma pessoa que já conhecia um pouco, e permite-me confiar nela. Foi uma boa decisão. Não foi uma pessoa qualquer, foi uma pessoa que eu achei que realmente poderia acreditar em mim e me poderia ajudar.

Ao fim de quantos anos é que verbalizou isso?

22.

Depois desse primeiro passo de ter contado a alguém, como é que chegou a um apoio mais especializado?

Quando eu falei com ela, não era para denunciar nada, era simplesmente para partilhar o meu segredo. Nem colocava essa hipótese. Depois tomámos a decisão de ir falar com o bispo para denunciar o caso, e quando fiz a denúncia as coisas não correram muito bem. A partir daí fui-me um bocado abaixo psicologicamente e senti necessidade de pedir ajuda.

A que tipo de acompanhamento se refere?

Faço psicoterapia.

O que é que a denúncia lhe trouxe?

É uma pergunta com uma resposta ambígua. A denúncia trouxe-me muita chatice, momentos muito difíceis, mas, ao mesmo tempo, a confiança de que tomei a atitude certa. É preciso fazer alguma coisa. É preciso fazer alguma coisa por mim, pelo meu caso e pelos outros. Denunciei a pensar nos casos que poderiam ter acontecido com o mesmo padre e em possíveis futuros casos, porque o padre ainda é vivo, ainda é jovem. Então foi a possibilidade de haver algo mais com outras pessoas que me levou a denunciar.

O mínimo que se pode fazer pelas vítimas é prestar-lhes apoio psicológico. É colocar ao [seu] dispor alguém que se preste a escutá-las, a entendê-las e a validar os seus sentimentos

Dizia que depois da denúncia teve um período difícil.

Muito difícil.

Porquê?

A maneira como o assunto foi lidado na diocese não foi muito correto, e tudo aquilo que eu vivi dentro de mim, com todas essas reações e ações, levou a que me fosse bastante abaixo.

Sentiu-se desvalorizada?

Não só, mas também. É complicado.

Em que diocese é que aconteceu?

Não quero partilhar esse pormenor.

O seu caso, neste momento, tendo acontecido há mais de 20 anos, está prescrito.

Pela lei civil sim.

Desde que fez a denúncia, o que é que aconteceu até agora?

Até agora, foi instituído o processo e foi enviado para Roma. Eu estou à espera de uma resposta.

Não veio ainda nenhuma sentença de Roma?

Sim, já veio uma primeira sentença, mas estamos à espera de saber as causas que levaram a essa resposta.

O caso ainda não está fechado?

Não, ainda não está.


Entrevista de "Alexandra", vítima de abusos sexuais por um sacerdote, à jornalista Ana Catarina André
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Oiça a entrevista de "Alexandra", vítima de abusos sexuais por um sacerdote, à jornalista Ana Catarina André

Se foi vítima de abuso ou conhece quem possa ter sido, não está sozinho e há vários organismos de apoio às vítimas a que pode recorrer:

- Serviço de Escuta dos Jesuítas , um “espaço seguro destinado a acolher, escutar e apoiar pessoas que possam ter sido vítimas de abusos sexuais nas instituições da Companhia de Jesus.

Telefone: 217 543 085 (2ª a 6ª, das 9h30 às 18h) | E-mail: escutar@jesuitas.pt | Morada: Estrada da Torre, 26, 1750-296 Lisboa

- Rede Care , projeto da APAV, Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, que “apoia crianças e jovens vítimas de violência sexual de forma especializada, bem como as suas famílias e amigos/as”.

Com presença em Lisboa, Porto, Coimbra, Braga, Setúbal, Santarém, Algarve, Alentejo, Madeira e Açores.

Telefone: 22 550 29 57 | Linha gratuita de Apoio à Vítima: 116 006 | E-mail: care@apav.pt

- Comissões Diocesanas para a Protecção de Menores . São 21 e foram criadas pela Conferência Episcopal Portuguesa.

São constituídas por especialistas de várias áreas, recolhem denúncias e dão “orientações no campo da prevenção de abusos”.

Podem ser contactadas por telefone, correio ou email.

Para apoiar organizações católicas que trabalham com crianças:

- Projeto Cuidar , do CEPCEP, Centro de Estudos da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica

Se pretende partilhar o seu caso com a Renascença, pode contactar-nos de forma sigilosa, através do email: partilha@rr.ptQue tipo de reparação é que poderia ajudá-la?

Não sei muito bem. Acho que o mínimo que se pode fazer pelas vítimas é prestar-lhes apoio psicológico. É colocar ao [seu] dispor alguém que se preste a escutá-las, a entendê-las e a validar os seus sentimentos. Acho que isso é muito importante.

Acredito que, tal como eu, a maioria das vítimas nunca contou a ninguém

A psicoterapia que faz neste momento tem algum contributo externo ou é paga à sua custa?

Paguei até há bem pouco tempo sempre tudo à minha custa, durante três anos. Neste momento, a diocese ofereceu-se para pagar um x de consultas.

Tem havido já vários pedidos de perdão por parte da hierarquia da Igreja em Portugal. Como é que os vai sentindo?

Sinceramente, não é coisa que a mim me diga muito. Importante mesmo é pedirem desculpa à própria pessoa e fazerem alguma coisa em relação à pessoa acusada, isso sim. Isso para mim é válido. Agora, vir para a comunicação social, seja o que for, como pedidos de desculpa, a mim sinceramente não me diz nada.

Contou que esteve muito tempo em silêncio. 22 anos. Há um silêncio à volta deste tema. Na sua opinião, o que explica que em Portugal, ao contrário de outros países, não haja uma associação de vítima ou outra manifestação mais visível da sua voz?

Portugal é ainda muito profundamente católico, e por isso é difícil às próprias vítimas lidarem com isto, porque a própria Igreja, [enquanto] instituição continua a ter bastante poder. Acho que as pessoas têm medo. Têm medo não só de denunciar, de se manifestar, mas têm medo também, muitas vezes, daquilo que [a denúncia] poderá fazer à sua própria vida. Acredito que, tal como eu, a maioria das vítimas nunca contou a ninguém. Os esposos não sabem, os filhos não sabem, os amigos não sabem, a família não sabe. Não é fácil para um esposo ou uma esposa perceber que estamos há tantos anos casados e nunca souberam desta situação. As relações familiares, matrimoniais são profundamente abaladas.

Que impacto é que o abuso foi tendo, ao longo do início da sua vida adulta, nas suas relações, namoros?

Teve uma influência muito grande, porque, como deixei de confiar nas pessoas, isso não me permitiu ser completamente honesta com aqueles que me rodeavam, com as pessoas mais próximas de mim, com as minhas relações de namoro e até de casamento. O meu marido só soube quando fui fazer a denúncia. E então as nossas relações são um bocado alteradas, porque não são genuinamente verdadeiras. Há ali um pormenor que falta, que para eles é um pormenor extremamente importante, e que para nós um pormenor que queremos profundamente esquecer. E depois, na entrega de uma relação isso então afeta muito.

Teve momentos de depressão ao longo deste período?

Só depois da denúncia.

Aí já com acompanhamento da psicoterapia?

Sim.

Como é que está hoje?

Estou em reconstrução.

Continua a rezar todos os dias?

Sim.

E a ir à missa?

Sim. [Mas] nem sempre. Tem alturas em que me custa mais.

Deus continua a ocupar um lugar importante?

Muito importante.

O que pode dizer a outras pessoas que tenham sido vítimas e que, tal como a Alexandra, tenham silenciado o abuso durante décadas?

Acho que é importante que cada uma encontre alguém em quem possa confiar. Temos o direito de não viver sozinhos com este assunto, de poder partilhá-lo e encontrar alguém que nos acolha. Não é que nos entenda, mas que nos aceite e que nos estime com a nossa história. E sobretudo que as pessoas a quem contem [o que aconteceu] não lhes façam certas questões que magoam, como por exemplo: “Porquê agora?” “Porquê passado tanto tempo?”, “Esquece isso, isso já lá vai”. Estas são das piores coisas que se pode dizer a uma vítima, porque para nós é como se continuasse a acontecer hoje. E se não dissemos há mais tempo, foi porque não conseguimos. Então, há que acolher esta não capacidade de partilha, de aceitar e não julgar. Estar ali.


Se foi vítima de abuso ou conhece quem possa ter sido, não está sozinho e há vários organismos de apoio às vítimas a que pode recorrer:

- Serviço de Escuta dos Jesuítas, um “espaço seguro destinado a acolher, escutar e apoiar pessoas que possam ter sido vítimas de abusos sexuais nas instituições da Companhia de Jesus.

Telefone: 217 543 (2ª a 6ª, das 9h30 às 18h) | E-mail: escutar@jesuitas.pt | Morada: Estrada da Torre, 26, 1750-296 Lisboa

- Rede Care, projeto da APAV, Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, que “apoia crianças e jovens vítimas de violência sexual de forma especializada, bem como as suas famílias e amigos/as”.

Com presença em Lisboa, Porto, Coimbra, Braga, Setúbal, Santarém, Algarve, Alentejo, Madeira e Açores.

Telefone: 22 550 29 57 | Linha gratuita de Apoio à Vítima: 116 006 | E-mail: care@apav.pt

- Comissões Diocesanas para a Protecção de Menores. São 21 e foram criadas pela Conferência Episcopal Portuguesa.

São constituídas por “especialistas de diversas áreas”, “recolhem denuncias” e dão “orientações no campo da prevenção de abusos”.

Podem ser contactadas por telefone, correio ou email.

Para apoiar organizações católicas que trabalham com crianças:

- Projeto Cuidar, do CEPCEP, Centro de Estudos da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica

Se pretende partilhar o seu caso com a Renascença, pode contactar-nos de forma sigilosa, através do email: partilha@rr.pt


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