D. Vitorino Soares defende que é preciso lutar contra a solidão e o isolamento do clero

Para o bispo auxiliar do Porto, a existência de uma comunidade de sacerdotes não é “uma questão apenas de proteção, mas uma exigência de se ser padre”.

12 fev, 2023 - 17:00 • Ana Catarina André



D. Vitorino Soares, Bispo auxiliar do Porto. Foto: João Lopes Cardoso/Diocese do Porto
D. Vitorino Soares, Bispo auxiliar do Porto. Foto: João Lopes Cardoso/Diocese do Porto

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O bispo auxiliar do Porto D. Vitorino Soares alerta para o risco de os sacerdotes alimentarem “o culto do eu”.

“Quem vive em igreja, não pode ir por aí”, afirma em declarações à Renascença, a propósito de uma das ações de formação e sensibilização para o cuidado de menores e frágeis, que decorreu na Diocese do Porto, no início do mês.

D. Vitorino Soares, que é também reitor do Seminário Maior do Porto, considera que a divulgação do relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja “não significa que as coisas estão vencidas, concluídas”. “A questão vai manter-se. E aquilo que é doentio temos de eliminar.”

Como é que a Diocese do Porto tem acolhido estas ações de formação dirigidas ao clero e aos agentes pastorais?

Houve uma participação massiva nas ações dirigidas ao clero, o que quer dizer que este é um assunto que preocupa [os padres] e para o qual querem contribuir no sentido da própria prevenção e do acompanhamento de situações ou casos que haja ou que possa aparecer. Esse é um grande sinal bem positivo, para mim, pela adesão. Este tipo de ação de formação lembra-nos que a divulgação dos números da Comissão [Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja] não significa que as coisas estão vencidas, concluídas. A questão vai manter-se. E aquilo que é doentio temos de eliminar.

Nestas ações importa a divulgação e a sensibilização que se vai fazendo.

Na sua opinião, a que é que a Igreja precisa de dar mais atenção para evitar abusos? Investir mais na formação? Combater o isolamento em que o clero possa viver?

Sim, esse é para mim capital. Lutar contra o isolamento e contra a solidão, o que exige também uma comunidade de presbíteros, onde estes vão partilhando a sua vida pastoral e pessoal, não só como defesa, mas sobretudo como missão também. Não é uma questão apenas de proteção, mas é uma exigência de se ser padre e por isso, essa essa vida comum acaba por ser, também, uma particularidade da nossa identidade de sacerdotes. E depois, claro, a nossa vida eclesial nas comunidades ou com aqueles que nos estão entregues. Temos de estar com eles e não isolados, como pastores convidados a desenvolver uma relação de partilha, de vivência da Igreja.

Isso faz-se como?

A partir da formação logo nos seminários, embora haja aí outra lacuna. No seminário, vamos verificando [a questão da] retaguarda da família. Estes alunos, estes rapazes que temos não são uma casta da sociedade. São um bocado a imagem da própria sociedade, onde há caminhos que não foram feitos, histórias de vida muito complicadas, que é preciso retificar e corrigir. [Temos] idades já avançadas de vocacionados, onde há lacunas, e onde é mais complicado [intervir]. Portanto começa exatamente por aí.

Esse trabalho começa agora a ser feito na formação, é isso?

A formação nunca está concluída. É uma formação durante e pós seminário. [Trata-se] sobretudo de fomentar o encontro dos presbíteros entre si, embora sabendo que o grande agente na formação permanente é o próprio. É preciso que haja interesse e disponibilidade do próprio.

“É preciso fazer caminho, não afunilar, não encurralar”

Considera que os párocos têm o acompanhamento necessário, não só espiritual, mas noutros âmbitos?

Nós, aqui, concretamente, na Diocese do Porto, vamos fazendo um trabalho de acompanhamento dos padres que se ordenaram nos últimos dez anos. Não se impõe nada a ninguém, propõe-se, sugere-se. Depende da disponibilidade de cada um continuar a ter um diretor espiritual, mas sobretudo da capacidade de partilhar a sua vida real com quem está, e não viver isoladamente.


Foto: Max Rossi/Reuters
Foto: Max Rossi/Reuters

Há um risco de as próprias comunidades contribuíram para um certo endeusamento do padre, fruto também do clericalismo?

Pois, às vezes, pode ir um bocadinho para o culto do eu, que nos fecha aos outros e também a Deus, onde os outros não têm presença, nem têm valor nesse o caminho. Há uma falta de referências que nos pode centralizar e que nos pode fazer os únicos agentes do nosso caminhar e da nossa vida. Quem vive em igreja, não pode ir por aí.

Como é que as comunidades podem passar da culpa à redenção, no sentido de darem passos em frente neste tema?

Quando se fala de cuidado, fala-se de acompanhar e recuperar as vítimas. Há também a outra parte dos infratores que também precisam de ajuda. Sabemos que este tipo de trabalho é discreto, mas tem de ser um trabalho feito. Não podemos ficar apenas pela questão da culpa ou da situação. É preciso fazer caminho, não afunilar, não encurralar, e com certeza também o Espírito de Deus vai iluminando. [Trata-se] de, a partir de cada situação concreta, lutarmos por essa saúde, que é uma terminologia que eu gosto muito.

“Quero dizer às comunidades que elas também têm obrigação na ajuda”

Enquanto Bispo, o que é que pode dizer às comunidades que sofrem por causa deste tema dos abusos de menores na Igreja?

Primeiro, não generalizar. São situações concretas e pontuais. Há muitos padres que também estão feridos, magoados, não tendo qualquer motivo de suspeita ou de acusação. Depois, quero dizer às comunidades que elas também têm obrigação na ajuda, não só a evitar estes casos, fazendo tudo o que está ao seu alcance, mas também envolver-se na solução deles. Isto é uma questão da Igreja, de todos, das famílias, dos agentes de pastoral, de todos aqueles que sentem que fazem parte da Igreja. E, portanto, o mal de um é o mal de todos, e o bem de um o bem de todos.

Além do impacto do crime de que foram alvo, as vítimas ficam feridas também na sua fé e relação com Deus. Como é que acha que isso se pode ir ultrapassando?

Há sempre essa dificuldade em distinguir as mediações daquilo que é o próprio Deus. A Igreja é uma mediação, o sacerdote é o mediador. E isso são meios para chegarmos até Deus. Muitos sucessos e fracassos, passam por estas mediações, mas isso não quer dizer nos fiquemos por elas. É o próprio Deus que ultrapassa todas essas imperfeições e todos esses insucessos ou fracassos. Agora, também quem tem essa responsabilidade de ser mediador tem de ter essa noção. O papel da Igreja, como Jesus fazia, é conduzir as pessoas para Deus, não é conduzir as pessoas para si.

Durante anos houve um silenciamento à volta deste tema. Considera que há já uma transformação em curso?

Sim, acho que sim. É uma conversão também que se está a fazer. É uma abertura que vai dando os seus passos. Não será assim de um ano para outro, mas que progressivamente vai acontecendo.


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