Foi uma vez o SEF. Capítulo 4: Vertente internacional

Nem sempre foi assim, mas, pelo menos desde o início deste século, uma boa parte do trabalho do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) passa pelo exterior. Em dois formatos: um mais teórico e outro mais prático.

31 mar, 2023 - 06:30 • Celso Paiva Sol , André Peralta (sonoplastia)



Foi uma vez o SEF. Capítulo 4: Vertente internacional
OuvirPausa

Foi uma vez o SEF. Capítulo 4: Vertente internacional

Veja também:


Em mais de uma dezena de organizações internacionais, seja do ponto de vista político ou técnico, não só como representante nacional para a imigração e asilo, mas também através da participação em inúmeros grupos de alto nível, diálogos, protocolos e processos regionais, projetos e parcerias bilaterais, comités, grupos de peritos, e ainda a presença física em países de origem das nossas principais comunidades estrangeiras.

Portugal tem neste momento sete oficiais de ligação para a imigração: Em Angola, Brasil, Cabo Verde, China, Espanha, Guiné-Bissau e Índia.

É nestes fóruns internacionais, como a União Europeia, a CPLP ou as Nações Unidas, que se discutem problemas e soluções comuns, e de onde acabam por emanar muitas das leis, regras, e métodos de trabalho que são depois aplicados internamente.

É também ao serviço destas organizações, que o SEF marcou nos últimos anos cada vez mais presença em missões conjuntas – a maior parte delas relativas às crises humanitárias nas fronteiras Sul e Leste da Europa.

O diretor nacional do SEF sublinha o peso que a vertente internacional teve na vida do Serviço, em especial desde que a Lei Orgânica de 2007 alargou o âmbito das suas funções.

Fernando Silva dá o seu próprio exemplo. “Enquanto diretor do SEF sou membro do conselho de administração de três agências europeias: A Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira (Frontex), a Agência da União Europeia para o Asilo (EUAA), e a Agência Europeia para a Gestão Operacional de Sistemas Informáticos de Grande Escala no Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça (eu-LISA)”.

Para além destes organismos, o SEF “participa também nos trabalhos do grupo de Budapeste, e em muitos grupos de trabalho da União Europeia”.


Controlo de passageiros no Terminal de Cruzeiros de Lisboa. Foto: SEF
Controlo de passageiros no Terminal de Cruzeiros de Lisboa. Foto: SEF
Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. Foto: SEF
Presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. Foto: SEF


Lara Alegria Ribeiro entrou para o SEF em 2004, na altura através do curso de inspetores criado a pensar no Campeonato Europeu de Futebol que Portugal organizou nesse ano.

Vários anos colocada na investigação criminal, levaram-na a perceber a importância da “cooperação internacional no combate à criminalidade organizada. Uma capacidade de cooperar além-fronteiras que ainda nos falhava um pouco”.

Nas instituições comunitárias, cada vez mais dentro delas, estava a responsabilidade de garantir duas coisas. A livre circulação dos cidadãos europeus, dos seus bens e capitais, o que implica que “a pessoa que tem legitimidade de entrar e circular livremente, o possa fazer da forma mais fácil e com menos entraves possível”, mas também que todo esse processo decorra em segurança, porque “toda a pequenina parte de uma fronteira externa que cada país tem é, na realidade, uma responsabilidade da fronteira completa da União Europeia. Essa é a parte mais securitária”.

Uma uniformidade de políticas e procedimentos, numa procura constante do equilíbrio entre liberdade e segurança, só possível “com um texto jurídico, um tecido jurídico que tem que ser implementado por todos, de forma direta ou por transposição para as legislações nacionais”.

Um trabalho de décadas, desenvolvido por “grupos de trabalho onde estão todos os países da União Europeia ou que são associados ao espaço Schengen, que têm impacto em regulamentos, diretivas, e discussões no Parlamento Europeu. No que à área da imigração e asilo diz respeito, esse trabalho “esteve sempre a cargo do SEF”.


As relações internacionais tornaram-se um dos pilares do funcionamento do serviço. José Van Der Kellen, inspetor coordenador superior, no SEF desde o primeiro recrutamento em 1990, não só participou em centenas destas reuniões internacionais, como usou no terreno a mais-valia dessa cooperação.

Descreve um processo gradual, natural, de quase osmose até para os próprios inspetores do SEF. Uma evolução que começou com a “especialização em determinadas matérias, como por exemplo a área dos vistos, do asilo, e das fronteiras”, e que fez com que alguns dos elementos “fizessem carreira internacional”.

José Van Der Kellen destaca igualmente o retorno que esse trabalho externo teve no desenvolvimento do próprio SEF, porque “a informação que nos chegava permitia-nos adaptar a legislação, e a forma como devíamos gerir os nossos recursos. A vertente internacional permitia-nos ter um ‘chapéu de chuva’ que nos dava uma compreensão muito abrangente dos fenómenos migratórios, e outra capacidade de reação”.

Foi precisamente o apelo por uma forma mais coletiva de trabalhar os problemas comuns, que fez com Lara Alegria que se candidatasse à Europol, onde chegou no início de 2013.

Uma instituição que “não faz estas investigações ‘per si’ mas que dá mecanismos de auxílio à analise criminal, e ajuda a pôr em contacto os vários países onde determinada ação criminal pode estar em curso”.

Nessa altura viviam-se os reflexos da primavera árabe, e sobretudo o drama humanitário das guerras na Síria, na Líbia, no Iémen, Iraque e Afeganistão.

A Europol, em coordenação com várias autoridades nacionais – entre as quais o SEF –, identificou e começou a estudar a forma como “as organizações criminosas se começaram a adaptar às necessidades, à lei da oferta e da procura. Estamos a falar do auge da crise migratória, em 2014, 2015, 2106, quando estes grupos começaram a explorar a imigração ilegal e o tráfico de seres humanos”.

Lara Ribeiro lembra que “de um momento para o outro estava em curso algo extremamente lucrativo, quase sem qualquer consequência se fossem presos e condenados”.

A dimensão da crise humanitária nessa primeira década do novo milénio, leva a União Europeia a reforçar os seus instrumentos de controlo.

A FRONTEX

A Agência Europeia de Gestão e Cooperação Operacional de Fronteiras Externas, que tinha sido criada em 2004, passa no início de 2016 a chamar-se Frontex – Agência Europeia de Guarda de Fronteiras e Costeira.

O orçamento duplica face ao que acontecia até aí, e a estratégia operacional passa a ser mais interventiva, com maior capacidade de recrutamento junto de cada um dos estados-membros, e maior mobilidade no terreno.


Inspetor do SEF em ação de formação na Frontex. Foto: SEF
Inspetor do SEF em ação de formação na Frontex. Foto: SEF

É na Frontex que Lara Alegria Ribeiro trabalha atualmente. Agora já não como inspetora do SEF destacada, como acontecia na Europol, mas em regime de licença sem vencimento, contratada pela Agência para ser um dos seus quadros. É, desde 2019, oficial de ligação para Portugal e Espanha.

“Neste momento a Frontex tem bastantes operações, que vão desde Espanha a Finlândia. Tem operações terrestres, marítimas e aéreas, só no que diz respeito ao controlo de fronteiras, mas também organiza operações de retorno e atividades no combate ao crime organizado transfronteiriço”.

Cada operação resulta “da conjugação de vários critérios, a começar pela análise de risco. A própria Agência faz essa análise no sentido de perceber a necessidade deste apoio extra a um determinado estado-membro, seja numa situação de emergência ou de prevenção. Se a operação for aprovada, resulta normalmente no envio de meios humanos e técnicos para ajudar esse país”.

A dimensão e frequência dos fluxos migratórios que têm pressionado as fronteiras europeias, mostraram, entretanto, que este modelo já não satisfaz as necessidades.

A Frontex precisa de uma maior, e mais rápida, capacidade de resposta, e está a construir o corpo permanente de guardas de fronteira e costeiros.

De acordo com o calendário aprovado em 2019 no Conselho Europeu, a nova estrutura estará concluída em 2027 – ano em que já deverá ter 10 mil elementos "à disposição dos Estados-membros para o que for necessário, não só para situações de urgência, mas também em ações de prevenção”.

Lara Ribeiro explica que “o que está estabelecido no regulamento, é que existem quotas que cada país vai ter de preencher ao longo dos anos”, e que dessa forma “vai deixar de haver tanta necessidade de ter um grupo de pessoas em alerta, e em vez disso vai haver um grupo superior de pessoas, formadas e dentro dos procedimentos da Agência, que estarão destacados para todas as áreas em que a Frontex tem competência. Isto será sequencial e progressivo, até 2027".


Migrantes tentam chegar à Europa através do Mediterrâneo. Foto: Massimo Sestini
Migrantes tentam chegar à Europa através do Mediterrâneo. Foto: Massimo Sestini

OS OFICIAIS DE LIGAÇÃO

A necessidade de monitorizar tendências e movimentações oriundas de países e regiões, com maior ligação a Portugal, levou à criação, em 1994, da função de oficial de ligação do Ministério da Administração.

Em comissões de serviço de três anos, elementos do SEF, da PSP e da GNR, começaram a trabalhar em embaixadas, missões de representação e consulados de Portugal, sobretudo em África.

Mas em 2001, dois meses depois dos atentados do 11 de Setembro em Nova Iorque, é regulamentada e ativada uma outra forma de cooperação – exclusivamente focada nos fluxos migratórios.

São criados os oficiais de ligação de imigração, neste caso fornecidos apenas pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras.

“O nosso trabalho é evitar que o crime chegue à Europa, e pará-lo na origem”

José Van Der Kellen foi oficial de ligação de imigração em Angola, entre 2016 e 2019. Descreve a missão como um primeiro filtro à legalidade e normalidade dos fluxos migratórios “junto de países que realmente importam para Portugal”.

O oficial de ligação “tem de estar muito atento a estes fenómenos a partir da origem, porque desse trabalho resultam garantias de que os vistos que estamos a emitir serão bem utilizados, e não para projetar outras dinâmicas de imigração irregular”.

José Van Der Kellen usa como exemplo a sua própria experiência em Angola, que “permitiu em muitas situações estancar à nascença eventuais fenómenos que poderiam ter consequências em Portugal”.

Paulo Torres, oficial de ligação na Guiné-Bissau desde o início de 2021, sublinha a importância desta presença nos países de origem, e explica que tudo começa na “análise dos processos. Identificar numa fase precoce a fraude que esteja associada àquele requerente de visto. A primeira missão é em sede de concessão de vistos verificarmos a legitimidade do pedido, não em termos formais, mas em termos documentais”.

Um trabalho que Paulo Torres considera crucial, tendo em conta que “é assustador ver a quantidade de pessoas que utilizam documentação fraudulenta para esconder a sua identidade para virem para a Europa. E posso dizer-lhe que devido aos nossos conhecimentos de perícia documental, detetamos muitas fraudes”.

Ao trabalho de análise documental, Paulo Torres acrescenta outro mais prático “de assessoria que se faz nos aeroportos, junto das companhias aéreas e das próprias polícias de imigração locais". Os oficiais de ligação podem “detetar no aeroporto circuitos de imigração ilegal, traficantes de seres humanos, e entregá-los ás autoridades locais. Recolher informação sobre pessoas que habitualmente acompanham jovens, crianças, que os entregam a terceiros”.

Paulo Torres acrescenta que a missão “é evitar que o crime chegue à Europa, e pará-lo na origem. Tentar ainda no país de origem que estes criminosos não cheguem por via aérea a Portugal”.

O SEF começou por ter oficiais de ligação nos países CPLP, e com o tempo, mediante as próprias dinâmicas geopolíticas, foi alargando e adaptando essa presença noutros países. Já não tem, como já teve, no Senegal e na Rússia, mas tem agora, por exemplo na China e na Índia.

CONTROLO DAS FRONTEIRAS QUE NÃO EXISTEM

Outra missão internacional onde o SEF está envolvido, é nos Centros de Cooperação Policial e Aduaneira – neste caso num projeto bilateral com Espanha, para supervisionar as inexistentes fronteiras terrestres entre os dois países.

Começaram por se chamar Postos Mistos de Fronteira, apareceram no ano em que Portugal organizou a Expo98, e 10 anos depois evoluíram para a atual designação.


Foto: Olímpia Mairos/RR
Foto: Olímpia Mairos/RR

São atualmente cinco, espalhados pelos dois lados da faixa raiana. Três do lado de cá - Quintanilha/Alcanices, Castro Marim/Ayamonte, e Vilar Formoso/Fuentes de Onoro, e dois do lado de lá - Tuy/Valença do Minho, e Caya/Elvas.

Nestes centros trabalham lado a lado seis entidades portuguesas: SEF, PSP, GNR, Polícia Judiciária, Autoridade Tributária, e Polícia Marítima; e três espanholas, Guardia Civil, Corpo Nacional de Polícia, e o Departamento Aduaneiro e dos Impostos Especiais.

Acácio Pereira, enquanto responsável pelo Departamento Regional do SEF na Guarda, é também responsável pela presença do Serviço no CCPA de Vilar Formoso.

Destaca a vantagem de um modelo que tem todas estas forças e serviços a trabalharem juntos, e explica que “todos têm um coordenador português e um coordenador espanhol. No caso português a coordenação é assegurada rotativamente pelo SEF e pela GNR, que são as únicas entidades que mantêm pessoal em permanência 24 horas. Depois há um planeamento mensal que é executado, mas também situações inopinadas e ações de apoio a outras entidades”.

O trabalho desenvolve-se num raio de 30 quilómetros para cada lado da fronteira, e visa a recolha e partilha de informação, a prevenção de crimes - sobretudo os vários tráficos entre os dois países - o apoio a perseguições policiais, e ainda a gestão da readmissão de imigrantes que são obrigados a voltar ao país por onde entraram de forma ilegal.

Apesar de não haver fronteiras, Acácio Pereira garante que este tipo de mecanismo “resolve e evita muitos problemas, é uma fronteira invisível que esbate as fronteiras físicas e psicológicas”.


Foto: SEF
Foto: SEF

Esta é uma área onde provavelmente é mais difícil explicar como irá o SEF ser substituído. Nas dezenas de reuniões e missões em que o representante de Portugal era na esmagadora maioria dos casos o SEF, esse papel vai passar a ser desempenhado pelas cinco entidades que vão herdar as suas competências.

Em muitos casos, as pessoas até podem ser as mesmas, mas a instituição que representam já será diferente.


Artigos Relacionados