​Hora da Verdade

Governo inclui Igreja nas regras do arrendamento coercivo. "Dever de utilização do património não tem exceções"

23 fev, 2023 - 07:00 • Susana Madureira Martins (Renascença) e Rafaela Burd Relvas (Público)

Ministra da Habitação considera "legítimo" que se levantem dúvidas de constitucionalidade em relação ao arrendamento coercivo, mas revela que o Governo se respaldou em decisões anteriores do Tribunal Constitucional.

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Governo inclui Igreja no arrendamento coercivo. Contratos de renda antigos ficam congelados de forma definitiva
Governo inclui Igreja no arrendamento coercivo. Contratos de renda antigos ficam congelados de forma definitiva

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O Governo vai incluir a Igreja nas regras do arrendamento coercivo. "Dever de utilização do património não tem exceções", afirma a ministra da Habitação, Marina Gonçalves, em entrevista ao programa Hora da Verdade, da Renascença e do jornal "Público".

Questionada se as Misericórdias e a Igreja Católica estão abrangidas pelas regras do arrendamento coercivo, a ministra da Habitação salienta que há "um dever geral" de "dar uso ao nosso património", sendo este "um dever aplicado a todos" e isto inclui "desde o Estado, até ao terceiro setor, até à Igreja, até aos proprietários privados".

Em entrevista ao programa Hora da Verdade, Marina Gonçalves considera "legítimo" que se levantem dúvidas de constitucionalidade em relação ao arrendamento coercivo, mas revela que o Governo se respaldou em decisões anteriores do Tribunal Constitucional sobre "posições de proporcionalidade quanto ao direito de propriedade que eram, aliás, mais agressivas do que esta".

Quanto à máquina do Estado que vai ser precisa para por em marcha estas medidas, a ministra da Habitação pede "articulação entre as várias entidades do Estado" e "programas o menos burocráticos e mais céleres possível". Marina Gonçalves refere as autarquias como "um grande parceiro", o IHRU como a entidade com "responsabilidade maior na atribuição de apoios" e a Segurança Social como "parte desta solução, sendo a Estamo a "parte da solução no programa arrendar para subarrendar".

Comecemos pela medida que tem criado mais polémica, o arrendamento coercivo. Esta é aquela proposta que, por mais discussão pública que exista, é mesmo para seguir em frente?

Temos de desconstruir o mito à volta desta medida. Estamos a construir um conjunto de instrumentos que nos permitem chegar ao nosso objetivo, que é garantir que as pessoas têm acesso à habitação. Não estamos a criar nada de novo, estamos a regulamentar uma obrigação que decorre da Lei de Bases de Solo e da Lei de Bases da Habitação, que diz que há um dever de utilizar o património. É precisamente por isso que colocamos este instrumento, como outros países fazem, para garantir que este dever de utilização pode ser cumprido na sua plenitude.

E se houver dúvidas sobre a constitucionalidade desta medida?

É legítimo que se levantem essas questões. Temos a convicção de que esta medida é constitucional. Não estamos a dizer que, agora, a política pública de habitação vai fazer-se entrando na casa das pessoas. É importante, também, vermos as exceções desta figura. Este é mais um instrumento na política pública, não é o prioritário. Mas é nosso dever ter ferramentas para garantir aquele que é um direito constitucional. E o Tribunal Constitucional já teve posições de proporcionalidade quanto ao direito de propriedade que eram, aliás, mais agressivas do que esta.

Durante quanto tempo é que o Estado pode requisitar uma casa para arrendamento coercivo?

Isto não é uma requisição, é uma posse administrativa, porque não pomos em causa a propriedade. O que temos pensado é celebrar contratos de arrendamento de cinco anos. Mas isto tem de ser sempre salvaguardado: o património é do proprietário daquele imóvel e, portanto, a utilização pode e deve ser definida pelo proprietário. Não vamos impedir que, antes de chegarmos à posse administrativa, o proprietário possa dar outro uso ao imóvel ou, se o colocar no arrendamento, que o faça com outras regras. Por isso é que este modelo pressupõe um trabalho prévio de notificação do proprietário, para que ele possa, por si, disponibilizar o imóvel.

O proprietário terá liberdade para cessar esse contrato se quiser dar outro uso ao imóvel?

As situações em que o proprietário precisar da casa para si terão de ser acauteladas.

A partir do momento em que existe esse arrendamento forçado e existe um contrato de arrendamento, ele só poderá ser cessado nos casos em que o proprietário necessite da casa para habitação própria?

Não queria ser tão taxativa, estamos agora a desenhar as situações em que isso pode acontecer. Dei esse exemplo porque esse é claro para nós. Mas não queria ser taxativa e dizer que está fechado.

Qual o prazo que os proprietários terão para dar resposta ao Estado?

Ainda não definimos qual será o prazo.

Mas estamos a falar de meses ou de semanas?

Não estamos a falar, certamente, de meses. Não estamos a falar de seis meses ou de um ano para disponibilizar a casa. Estaremos sempre a falar de semanas. Mas não temos o prazo fechado. Queremos que as pessoas tenham tempo para a disponibilização dos imóveis. Cinco ou dez dias não permitiriam que um proprietário pudesse dar uso àquele imóvel.

Quando um imóvel for arrendado coercivamente, as rendas ficarão limitadas aos valores praticados no PAA [Programa de Apoio ao Arrendamento]. Os proprietários que participam nesse programa têm direito a uma isenção fiscal total sobre os rendimentos prediais. Os proprietários dos imóveis arrendados coercivamente também terão isenção?

A isenção fiscal pressupõe que o arrendamento seja feito pelo senhorio. Esta é uma situação em que é o Estado que se sub-roga na posição de senhorio, numa relação com o arrendatário. Não há um arrendamento por parte do proprietário.

Mas as rendas ficarão 20% abaixo da mediana do mercado. No PAA, esses proprietários têm direito a isenções fiscais.

Porque o proprietário é o senhorio. Numa situação em que o proprietário é o senhorio, obviamente, tem direito às isenções fiscais. É um programa voluntário. Aqui, não estamos a falar disso. É um último reduto, em que o Estado se sub-roga na posição de senhorio. O senhorio é o Estado, sem prejuízo de a rentabilidade que se gera ser do proprietário, porque estamos a falar de posse e não de ficar com o direito de propriedade. A não ser que tenhamos uma despesa com o imóvel e tenhamos de nos ressarcir, a verba [da renda] é do proprietário do imóvel.

Não existe uma injustiça, por exemplo, em relação a proprietários de alojamento local que transfiram as casas para o arrendamento habitacional, que terão direito a isenções fiscais independentemente da renda que pratiquem?

Há uma grande diferença. Estamos a falar de uma habitação que tinha uma rentabilidade que era zero e que passará a ter a rentabilidade da renda. Não vamos aumentar a carga fiscal, vamos rentabilizar as casas e a renda é do proprietário. Verdadeiramente, o proprietário tem um ganho. O caso do alojamento local tem de ser visto no conjunto daquilo que estamos a propor para o sector. Estamos a criar um incentivo para que quem hoje tem alojamento local passe para o arrendamento tradicional.

As Misericórdias serão contempladas pelo arrendamento coercivo? E os imóveis devolutos da Igreja Católica ficam excecionados?

Mais do que o instrumento em si, diria que todos temos a obrigação, desde o Estado, até ao terceiro setor, até à Igreja, até aos proprietários privados, todos temos a obrigação de dar uso ao nosso património. Estamos a falar de património pronto a utilizar. Os imóveis devolutos já hoje têm um mecanismo que está previsto no regime jurídico de urbanização e edificação, já está previsto o modelo para as obras de conservação. Ele existe em termos gerais. O Estado tem também a obrigação de colocar o seu património ao serviço das pessoas. Aquele que está pronto a utilizar está a ser utilizado para o arrendamento, aquele que está a precisar de obras, com tantas décadas em que não fizemos nada pelo nosso património, está num processo de reabilitação. Este é um dever geral, não tem exceções o dever de utilização do património. É um dever aplicado a todos.

Também à Igreja Católica?

A todos.

Quantos imóveis do Estado estão disponíveis para ser destinados à habitação?

Não estamos a fazer uma coisa nova nos imóveis do Estado. Desde 2018, olhando para quando as leis começaram a entrar em vigor, que estamos a fazer este trabalho de inventariação do património do Estado. Não estamos a começar agora. Temos património do Estado pelo país todo. Fizemos uma primeira inventariação do património e identificámos o património para fazer essa intervenção. Temos um inventário do património com aptidão habitacional que está no IHRU e que já permitiu, definindo-se prioridades, numa primeira fase avançar com algumas reabilitações que são mais céleres, sobretudo fogos dispersos que são do Estado e que podem ser reabilitados e colocados ao serviço das famílias. Já temos pequenas obras concluídas, já temos obra no terreno que é património do Estado. Este é um trabalho contínuo. Não é um trabalho que começa hoje.

Este diploma vem é permitir uma segunda coisa. Assumindo a responsabilidade do Estado e assumindo a prioridade que definimos neste primeiro momento e que não muda, de reabilitação do parque público, de reforço do parque público, com base também no património do Estado, que é nosso dever colocar e rentabilizar o património do Estado também e sim, nós temos de dar o exemplo, o que fazemos aqui é pegar em parte desse património, sabendo que para termos uma resposta mais célere precisamos de ser parceiros e encontrar parceiros, pegar nesse património e poder ter para além dos municípios, que hoje já são parceiros nas suas estratégias locais de habitação, que já utilizam esse património para responder a muitas das necessidades, encontrar dois parceiros adicionais: um é o terceiro sector, as cooperativas, poderem também ser parceiros, esse trabalho aliás já foi começando ao longo dos últimos dois anos e reforçamo-lo aqui com a linha de financiamento e com um conjunto de medidas fiscais, de incentivos, para permitir uma maior eficácia nesta disponibilização de terrenos.

Fazemo-lo, também, com os promotores privados. Esta é uma grande reivindicação do sector que consideramos que é importante sermos parte na sua concretização, que é olhar para o património do Estado, perceber como podemos de forma mais eficaz e mais célere avançar com a reabilitação e ter as cooperativas e os promotores privados como parceiros na sua concretização neste pacote abrangente de medidas, com cedência de terrenos públicos para arrendamento acessível, ter um regime fiscal mais atrativo e uma linha de financiamento também mais atrativa.

Quais são os motivos socialmente atendíveis que podem justificar o não pagamento de rendas?

Estamos a falar de situações como uma quebra de rendimento, uma situação de desemprego, uma situação de quebra de rendimentos decorrente de despesas adicionais de saúde ou educação, uma situação de divórcio em que há uma quebra de rendimentos. São hoje as situações que a Segurança Social já acautela. Tudo o que estou a dizer são situações atendíveis para os apoios da Segurança Social e que já hoje no âmbito do Balcão Nacional de Arrendamento existe no caso de diferimento no momento do despejo. Isto já existe.

Estas situações socialmente atendíveis já existem para essa avaliação. O que estamos a fazer é alargar o regime mas, sobretudo, a tentar ser mais eficazes na resposta que queremos dar para estas situações. Queremos mesmo garantir que o senhorio tem a segurança no arrendamento, mas também que a família que não pagou a renda por uma situação deste género pode ter uma solução mais rápida naquele que é o papel e responsabilidade do Estado.

O apoio extraordinário ao pagamento das rendas destina-se a famílias com uma taxa de esforço superior a 35%, com rendimentos até ao sexto escalão de IRS, contratos de arrendamento celebrados até Dezembro de 2022 e rendas dentro dos limites máximos previstos no Porta 65. Isto limita bastante o potencial universo de beneficiários. Quantas famílias poderão vir a beneficiar deste apoio?

Este apoio é para o arrendamento que já hoje existe, o que explica o porquê de termos uma data [Dezembro de 2022] definida. Relativamente ao sexto escalão de IRS, o grosso da taxa de esforço superior a 35% está nestes escalões. Portanto, a opção teve a ver com a realidade que observamos na comparação entre o rendimento das famílias e as rendas que são cobradas. Quanto aos limites de renda, é importante enquadrar este apoio nos instrumentos que temos. O Porta 65 tem estes limites de renda por tipologia e consideramos importante ter essa base. Dando um exemplo para clarificar: uma família com quatro pessoas pode ter uma renda até ao limite que está definido para um T4, ainda que viva num T3.

Mas sabemos a quantas famílias é que este apoio poderá chegar?

Sem fazer este enquadramento da tipologia, ou seja, olhando só para rendimento e rendas, são à volta de 100 mil famílias, mas este número tem de ser enquadrado neste critério, que implicará uma análise mais fina dos dados, que ainda não temos.

Como é que o Estado vai fiscalizar tudo isto? Esta máquina vai ser pesada, como é que vai funcionar? Com comissões que venham a ser criadas? Com o IHRU?

O IHRU é a entidade do ponto de vista do Estado central que tem esta responsabilidade maior na atribuição de apoios, na gestão de arrendamentos. O IHRU continuará a ter este foco. É importante criarmos uma escala maior na concretização dos programas. As autarquias são um grande parceiro na concretização do que já estamos a fazer e que continuaremos a fazer, essa ligação continuará sempre a ser promovida.

Os presidentes das duas maiores autarquias do país já vieram criticar muito estas propostas. Acha que vai conseguir convencer estes parceiros?

Não tem a ver com convencer. Podemos discordar da forma como chegamos ao objetivo, mas o objetivo é um que todos partilhamos. Aquilo que fizemos na discussão e na concretização deste pacote legislativo foi perceber as propostas que estavam em cima da mesa, a forma de as tornar eficazes e que parceiros podemos ter na sua concretização. Podemos depois discordar do modelo. Mas não tenho dúvidas de que depois de ele estar em lei, todos o concretizaremos dentro daquilo que são as obrigações, os deveres e as parceriais que devemos ter.

Certamente que quando construímos o 1º Direito há autarquias que fariam de forma diferente, e não é por isso que não temos a totalidade das autarquias a trabalhar connosco no 1º Direito. Estamos na fase em que estamos a discutir o diploma, estão a apresentar alternativas. Por isso é que abrimos uma discussão pública, para que se possa dizer que modelos alternativos ou que propostas se faz. No final, o modelo que vier a ser definido, e aquele que consideramos viável é aquele que temos, sem prejuízo desta discussão pública, certamente será aplicado e mais do aplicado será parte desta parceria e esta articulação.

Não acha que as autarquias vão ser um grão na engrenagem?

Nunca foram e tenho a certeza que continuarão a não ser. As autarquias têm toda a legitimidade de criar as suas propostas e têm programas próprias, mas foram sempre e continuarão a ser parceiros nas políticas nacionais. Não tenho muitas dúvidas disso porque no fundo os autarcas querem o mesmo que nós, é garantir que os seus munícipes têm habitação digna no final. Relativamente aos parceiros, referi muito o IHRU, mas para além desse há muitos parceiros: a Segurança Social é também parte desta solução, a Estamo é parte da solução no programa arrendar para subarrendar. Tem de haver uma articulação entre as várias entidades do Estado e tem de haver da nossa parte também esta necessidade de criar programas o menos burocráticos e mais céleres possível, porque estas medidas têm verdadeiramente de ser eficazes. Estamos no momento de discutir as linhas da medida e aquilo que vamos incorporar no diploma, mas aquilo que nos deve preocupar é sermos eficazes no objetivo.

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  • Amélia Melo
    24 fev, 2023 Carvalhos 14:00
    Concordo que este imóvel onde funcionou a Repartição de Finanças seja uma solução ao arrendamento para habitação em especial para as famílias mais carenciadas. O exemplo deverá começar de cima contrariamente aquilo que o governo quer fazer. O Estado deve organizar-se e utilizar os recursos que tem, antes de chegar aos privados.

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