Entrevista a António Nunes, presidente da lbp

"Foi um erro apostar as fichas todas na prevenção" de incêndios

08 set, 2022 - 08:00 • Celso Paiva Sol

Em entrevista à Renascença, o presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses considera que os incêndios deste ano demonstraram a importância do combate para resolver males maiores, e como precisa de ser restruturado e financiado.

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Foto: Arménio Belo/Lusa
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António Nunes, presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses. Foto: RR
António Nunes, presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses. Foto: RR

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O presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses (LBP), António Nunes, considera que está provada a necessidade de introduzir mudanças na reforma lançada depois dos trágicos incêndios de 2017.

Em entrevista à Renascença, António Nunes diz que cinco anos não chegam para resolver os problemas estruturais do país e, por isso, não se pode continuar a apostar apenas na prevenção.

Considera que os incêndios deste ano demonstraram a importância do combate para resolver males maiores, e como precisa de ser restruturado e financiado.

O presidente da Liga dos Bombeiros também manifesta esperança na investigação criminal ao grande incêndio da Serra da Estrela – para compensar a falta de independência da comissão criada pelo Governo, das falhas do SIRESP e da oposição à nova organização territorial da Proteção Civil.

Ao longo de toda a entrevista, e para resolver quase todos os problemas, António Nunes insiste na maior de todas as reivindicações: a criação de um Comando Nacional de Bombeiros.

Todas as épocas de incêndio têm a sua história. Qual é a de 2022?

Faz lembrar a de 2017.

Porquê? Em que aspetos há pontos de contacto?

As semelhanças entre os dois anos estão mais na área do combate, porque, de facto, nas outras áreas podemos dizer que houve melhorias significativas. Há aspetos que estão melhor, como a avaliação do risco - hoje em dia sabemos com antecedência o que se vai passar, e em que zona geográfica, e também há uma outra sensibilização das populações – é, por exemplo, muito mais fácil evacuar uma aldeia.

Mas na área do combate verificamos que muito daquilo que deveria ter sido alterado não foi alterado. E ao não ter sido alterado, fez regressar a discussão pública sobre a organização dos bombeiros, sobre as comunicações, sobre a logística do combate. Vimos isso nas grandes operações de Ourém e da Serra da Estrela, também em Murça e em Vila Pouca de Aguiar.

Oficialmente, os quase 110 mil hectares consumidos pelos cerca de 10 mil incêndios têm sido justificados com a severidade meteorológica, a seca e o comportamento de risco dos cidadãos. São explicações válidas?

O facto de muitos incêndios resultarem de práticas ancestrais do uso do fogo na agricultura, não é razão para termos incêndios com tão elevada intensidade, que não sejam resolvidos nos primeiros 90 minutos.

Se isso existe, e se sabemos que estamos perante uma seca, e perante uma floresta desorganizada e com material fino muito seco, temos que adaptar os métodos de combate. Não podemos usar as mesmas técnicas que usávamos há 10 anos. Nem a ter o mesmo planeamento.

Essa é uma das razões pelas quais a Liga dos Bombeiros tem exigido, e vai continuar a exigir, a criação de um Comando Nacional de Bombeiros que trate da doutrina, do planeamento e da gestão da supressão do fogo.

"Não podemos usar as mesmas técnicas que usávamos há 10 anos. Nem a ter o mesmo planeamento. É preciso um Comando Nacional de Bombeiros"

Mas o Governo diz que, face às circunstâncias, o ano até podia ter sido muito pior. Que foi a eficácia do sistema que evitou o pior.

Eu não aceito essa explicação, porque isso não existe. O que eu sei é que o Governo solicitou aos corpos de bombeiros que fizessem tudo o que pudessem no ataque inicial, para garantir que a área ardida fosse a menor possível. Esse é o objetivo de qualquer ano.

De resto, não faz qualquer sentido fazer estimativas de áreas ardidas durante o verão. Quanto muito isso faz-se no inverno e na primavera, e através de fogo controlado.

Quando chegamos ao verão, quando chegamos àquele período onde as temperaturas são mais elevadas, os ventos são desfavoráveis, e há condições meteorológicas adversas, aí não podemos fazer estimativas. Só especulações.

A nós bombeiros, o que o ministro da Administração Interna nos pediu foi que atacássemos os incêndios por forma a que não se transformem em grandes incêndios. E é isso que nós estamos a fazer.

Portanto, 2022 faz-lhe lembrar 2017 do ponto de vista do combate, porque o sistema não se adaptou à realidade?

É exatamente isso. Nós não podemos ter grupos de combate a sete ou oito horas de uma frente de fogo. Isso não existe. Quando nós temos incêndios como os de Chaves, Vila Pouca de Aguiar-Murça, o da Covilhã, ou o da Covilhã-Guarda-Serra da Estrela, a serem combatidos por bombeiros que vêm do Algarve, do Alentejo, do Porto ou de Braga, que estão a seis, sete ou oito horas de distância, isso não pode acontecer.

Mil e seiscentos bombeiros num teatro de operações, é um número absolutamente exagerado do ponto de vista da gestão logística. Exige uma capacidade que o sistema não tem.

Por isso é que nós queremos um Comando Nacional de Bombeiros, que numa situação como esta, só se preocupa com a supressão do fogo. Não está preocupado com a evacuação das populações, não está preocupado com o corte das estradas, não está preocupado com a logística, nem com a capacidade de outros agentes de proteção civil estarem disponíveis ou não. Está concentrado naquilo que é a sua tarefa principal, articulando meios terrestres dos bombeiros com meios aéreos e com máquinas de rasto. E é isto que tem que ser entregue a uma única entidade, e responsabilizar essa entidade pelo sucesso ou insucesso da operação.

Apliquemos essa sua ideia a um caso concreto. Serra da Estrela, por exemplo, é o maior incêndio do ano. Se existisse um Comando Nacional de Bombeiros, o que é que tinha sido diferente na gestão daquele incêndio?

Eu não posso dizer o que é que podia ser diferente, porque não sou o comandante nacional desse grupo de bombeiros e, portanto, nós estamos no momento da especulação. Agora, o que eu posso dizer é que se houver um Comando Nacional de Bombeiros, provavelmente, um número de equipas mobilizadas depois do incêndio é menor, que tem que haver uma maior capacidade de pré-posicionamento de meios, porque se eles existem e estão disponíveis, nós podemos colocá-los onde a avaliação de risco nos diz, às vezes com uma semana de antecedência, onde é que podem ocorrer os incêndios mais complexos, e haveria uma maior articulação entre os meios aéreos e os meios terrestres.


Nos últimos meses a Liga dos Bombeiros levantou várias questões, fez algumas críticas, e uma delas foi a sugestão para que os comandantes dos voluntários apresentassem escusa de responsabilidade. A Liga acha que Pedrógão Grande não se pode repetir, e que os bombeiros não podem ser os culpados pelos erros de outros. Isso foi para a frente? E que consequências pode ter?

Eu creio que houve 130 ou 140 comandantes que apresentaram escusa de responsabilidade, mas terá que perguntar à Autoridade de Proteção Civil quantos requerimentos é que lá chegaram.

O que eu sei é que a diretiva de combate aos incêndios continua a ser redigida como em 2012 e em 2017, como se nada tivesse mudado no mundo. Está lá escrito que os comandantes são responsabilizados pelas situações que ocorram. Aceitamos que isso aconteça, mas quando se justificar e não por regra.

Quando se fizerem balanços vermos que comandantes assumiram essa posição, e a seu tempo se verá se tinham ou não razão. Na Serra da Estrela, felizmente, existe uma investigação criminal e, portanto, saberemos de quem foi a responsabilidade.

Mas há outro artigo da diretiva que contestamos. Aquele que diz que as associações humanitárias de bombeiros têm que garantir a logística de todas as pessoas que estão a combater um incêndio na área de atuação do seu corpo de bombeiros.

Qual é o resultado disto?

À data de hoje, a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Ourém deve 450 mil euros a todos aqueles que forneceram combustíveis e refeições durante o combate aos fogos naquele concelho. E o Estado ainda não lhe pagou.

E agora? Quem é que está a suportar isto? Quem é que está a dar a cara aos fornecedores? A Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Ourém.

Eu, por acaso, até gostava de saber com que base legal é que se diz que uma associação humanitária tem que garantir a logística de 1.600 pessoas. Gostava de saber.


"O SIRESP falha como falham todas as redes de comunicação. Agora, não quer dizer que não se possa usar, o que é preciso é saber onde falha"

Por falar em responsabilidade, também é pública a sua oposição à forma como o Governo vai investigar o incêndio da Serra da Estrela. Vai fazê-lo através de uma comissão que funciona dentro da Agência de Gestão Integrada de Fogos, e não de forma externa e independente – como a Liga exige.

A questão das lições aprendidas não tem rigorosamente nada a ver com aquilo que a Liga exigiu para o incêndio da Serra da Estrela.

A AGIF, nos seus estatutos, tem a obrigação de avaliar cada época de incêndios para perceber se as medidas implementadas estão ou não a resultar. O que nós dissemos sobre a Serra da Estrela, e que não dissemos dos outros incêndios, é que devia haver uma comissão independente de avaliação.

Porquê? Porque foi aquele que demorou 12 dias. Foi aquele que teve cerca de 1.600 bombeiros em simultâneo. E foi aquele que de facto atingiu um parque património mundial.

A Liga dos Bombeiros Portugueses não vai aceitar que, no final, venham dizer que mais uma vez foram os bombeiros que falharam. Não vai aceitar isso. Os bombeiros cometem erros, como qualquer organização comete erros. Mas os bombeiros não têm essa organização, e não podemos culpar os bombeiros por uma coisa que não têm. Tal como podemos ser responsabilizados por um parto mal feito a bordo de uma ambulância, mas não podemos ser responsabilizados pelas urgências estarem fechadas. Ou de termos que andar mais 50 quilómetros com a doente até ao próximo Hospital.

Nós dizemos que o sistema deve ser avaliado. Não os bombeiros, o sistema.

Acha, portanto, que o incêndio da Serra da Estrela vai ser investigado sem independência?

Claro. No grupo das lições apreendidas estão todas as agências que participaram no próprio combate. Alguém acredita que as próprias agências serão avaliadas negativamente? Não acredito muito nisso, nessa independência. Mas em relação á Serra da Estrela estamos tranquilos, porque vai haver uma investigação criminal.

Outras questões relevantes neste verão de 2022. O SIRESP falhou ou não?

Falhou. Falha. O SIRESP falha como falham todas as redes de comunicação. Não vale a pena. Nós temos a ideia de que há sistemas de comunicações que não falham, mas todos falham. Os telemóveis falham, a entrada na atmosfera no regresso do espaço falha durante 10 ou 15 segundos. Há momentos de sombra. Ou seja, há momentos em que não é possível garantir 100% das comunicações. Ou melhor, até há, mas tem um custo tão exagerado para qualquer país que não é possível garanti-lo.

Agora, o facto de falhar não quer dizer que não se possa usar, o que é preciso é saber onde falha.

Eu tive o cuidado de ir a Alvaiázere e percorrer todo o perímetro do incêndio com o comandante, e percebi onde estavam as zonas de “sombra”. Não há nada a fazer, haja ou não incêndios, há zonas em que não há cobertura.

É uma inevitabilidade até para um sistema de emergência?

É uma inevitabilidade para qualquer sistema de emergência. O que nós temos é que ter consciência de que isso existe, e conhecermos esses pontos negros, para os tentarmos contornar.

Em Alvaiázere, por exemplo, sabe qual foi o problema? Durante o incêndio havia uma antena móvel colocada em Ourém, e enquanto lá esteve houve um reforço da rede e não houve pontos negros. Quando a antena móvel foi desmobilizada, Alvaiázere desapareceu em termos de cobertura, e quando desapareceu ficou de facto com os pontos negros. Olhe, mais uma razão para ter um Comando Nacional de Bombeiros, porque se houvesse um Comando Nacional de Bombeiros, preocupava-se com estas questões.

Entretanto, a Liga dos Bombeiros já abriu uma nova frente de fricção com o Governo, porque agora diz que não concorda com a divisão territorial prevista na Nova Lei Orgânica da Proteção Civil. Já se sabe desde 2019 que vai ser assim, qual é o problema?

Em primeiro lugar, a Liga não tem tido fricções com o Governo. A Liga tem os seus pontos de vista e, até devo dizer que, de uma forma geral e abstrata, nós temos tido excelentes relações com o Governo e até temos conseguido melhorias nos últimos meses. Acho que isso tem que ficar claro.

Mas temos pontos de divergência, e este é um desses casos. O Governo democraticamente eleito pode fazer a organização territorial que entende, mas neste caso não negociou com os bombeiros. Os bombeiros não são do Estado.

Para além disso, estão a anunciar coisas que nem sequer estão previstas na Lei de Bases da Proteção Civil. Neste momento, a Lei considera os níveis nacional, regional, distrital, municipal, e atribui aos presidentes de câmara a primeira responsabilidade no princípio da subsidiariedade. Pelo meio foi aqui introduzido um ruido que são as divisões sub-regionais, que podem fazer sentido no turismo, na economia ou na cultura, mas que não fazem sentido na área da segurança.

Se o Governo quiser dialogar com paz, com serenidade e com capacidade de adaptação, tem que nos falar em coisas que são fundamentais para nós. Tem que nos falar dessa organização que quer ter, mas não nos pode obrigar a ter, tem que falar no financiamento dos corpos bombeiros, e tem que falar no Comando Nacional de Bombeiros. Nós não vamos subdividir as nossas unidades, não vamos deixar de ter as nossas unidades, e não nos vamos adaptar às unidades da Proteção Civil se não houver diálogo sobre estes três assuntos.

Ao longo desta entrevista, já terá falado umas 20 vezes do Comando Nacional de Bombeiros. Acredita mesmo que o vai conseguir? Tem algum sinal do Governo nesse sentido?

Não vou dizer se recebi sinais porque isso faz parte do relacionamento entre as partes, o que posso dizer é que estes órgãos sociais da Liga, que têm mandato até janeiro de 2025, não irão hesitar em defender os interesses dos bombeiros. Resistindo a tudo e a todos.

E se estão a pensar que têm alguma hipótese de alterar aquilo que nós achamos justo, que é criar independência financeira para as nossas associações humanitárias, criar a identidade dos nossos bombeiros, alterar o paradigma para que os bombeiros portugueses continuem a ser respeitados como foram ao longo dos últimos 600 anos, esqueçam isso.

Eu acredito que conseguiremos, porque o Governo não quererá ter bombeiros descontentes. O Governo e os portugueses precisam dos bombeiros.

Peço-lhe um balanço da reforma lançada na sequência do ano trágico de 2017. Cinco anos depois, e até á luz da forma como este ano tem corrido, que balanço faz?

Acho que talvez tenha havido um erro estratégico de comunicação, quando pensámos que em quatro ou cinco anos se resolvia o problema. E eu incluo-me nisso. As reformas que é preciso fazer são reformas para uma ou duas gerações, e, portanto, acho que errámos quando acreditámos que em cinco anos se alteravam substancialmente os mosaicos da floresta, o pensamento das organizações, e aquilo que é preciso mudar dentro das próprias agências estatais.

2022 mostra-nos que temos que continuar a investir no combate durante mais 10 ou 15 anos, e ao mesmo tempo investir muito mais na prevenção. E há de haver um ponto de equilíbrio em que chegamos à conclusão de que, de facto, na prevenção já tudo foi feito e então, nessa altura, podemos diminuir o investimento no combate. O erro estratégico que houve foi o de investir muito na prevenção e pouco no combate.

Uma das reflexões que tem que ser feita em 2022 é dar a mão à palmatória e dizer que nos últimos cinco anos não fizemos tudo pelos bombeiros portugueses. Temos que fazer mais pelos nossos bombeiros, temos que lhes dar mais condições, temos que lhes dar equilíbrio financeiro, mais viaturas, e mais formação. Temos que dar um comando hierárquico aos bombeiros, e criar-lhes condições para continuarem a fazer um combate sério aos incêndios florestais durante os próximos dez anos.

E quando chegarmos ao tal ponto de equilíbrio, quando a floresta já for mais amigável para o combate – com aceiros, caminhos, limpeza e organização da floresta – então, nessa altura, já podemos baixar o investimento.

Não podemos é continuar a pôr todas as fichas na prevenção, porque, apesar da floresta estar um pouco melhor, a verdade é que com as alterações climáticas, ainda é preciso ter capacidade de combate. E quando essa capacidade não existe, temos incêndios com 12 dias.

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  • Luiz
    13 set, 2022 SANTO ANTÓNIO DOS CAVALEIROS 11:05
    De bombisses percebe o Tóino!

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