Gonçalo. António é bombeiro há 34 anos e nunca tinha visto um fogo tão voraz

Com décadas de experiência no terreno, António Marques foi surpreendido pela “intensidade e velocidade” do incêndio que varreu a Serra da Estrela em agosto. Compreensivo face a alguma desorientação dos bombeiros, diz: “Eles chegam aqui, não sabem onde está o perigo e onde não está. Enquanto não são posicionados, não podem começar a trabalhar.”

06 set, 2022 - 07:00 • Fábio Monteiro , Maria Costa Lopes (vídeo)



Gonçalo. António é bombeiro há 34 anos e nunca tinha visto um fogo tão voraz

Este é o nono de nove capítulos do especial "Serra da Estrela, 29 mil hectares depois" sobre os incêndios que consumiram perto de 25% do Parque Natural da Serra da Estrela.

António Marques é bombeiro há 34 anos. É também o membro mais antigo da corporação da freguesia de Gonçalo, na Guarda. E “nunca” tinha visto um fogo tão voraz como aquele que varreu a Serra da Estrela, entre 6 e 17 de agosto.

“Assisti a muito incêndio com muita intensidade, mas como aqui nunca vi. A densidade que trazia, a velocidade, e a forma como apanhou a povoação em todo o redor. Não havia quantidade de meios com que fosse possível dominá-lo”, conta à Renascença o bombeiro, que está de baixa devido a uma cirurgia. “Foi um dos dias mais horríveis da minha vida.”

Nem em 2017, num outro incêndio, quando as chamas lhe entraram pela casa adentro, e teve de correr para “salvar uma mochila da filha”, António ficou tão assustado. Ou perdeu tanto.

Em poucas horas, António perdeu mais de 200 oliveiras, árvores de fruto (“Ficou tudo derretido. Não há lá uma única árvore que se aproveite.”), centenas de fardos de palha (que ainda há dias andara a preparar, com a ajuda da esposa) e muitos animais, entre os quais quatro porcos. “E o pior ainda foi ter de os andar a enterrar e tirar do meio dos escombros, porque já estava tudo a desfazer-se com o calor”, confessa.

Utilizando um depósito de mil litros de água, o bombeiro ainda tentou salvar “alguma coisa” do que tinha numa das suas quintas. Mas a rapidez das chamas foi tal que a sua experiência profissional de nada serviu. “Parecia um ciclone mesmo. Berrava o lume, uma coisa que nem é bom pensar. Parece que ainda está no cérebro.”

A respirar com dificuldades, sem máscara, por pouco António não acabou asfixiado pelo fumo. Valeu-lhe uma filha, “uma autêntica guerreira-bombeira”, que o foi buscar. Em casa, situada numa das ruas principais que atravessam a aldeia e com vista para Belmonte, “estava tudo aflito, a chorar porque pensavam que já não me viam mais.”


O homem de 64 anos ainda não conseguiu assimilar as perdas; está desesperado, mal consegue dormir. Foto: Maria Costa Lopes/RR
O homem de 64 anos ainda não conseguiu assimilar as perdas; está desesperado, mal consegue dormir. Foto: Maria Costa Lopes/RR

O que pode ser salvo

Ao contrário de muitos populares, o bombeiro-chefe de Gonçalo não culpa os camaradas de profissão por erros no combate às chamas na Serra da Estrela. Afinal, conhece bastante bem as dificuldades de quem atua no terreno.

“Se fosse ao contrário, também não sabia atuar na zona deles”, começa por assumir. “Eles chegam aqui, não sabem onde está o perigo e onde não está. Enquanto não são posicionados, não podem começar a trabalhar.”

No passado domingo, António Nunes, presidente da Liga dos Bombeiros, denunciou, em entrevista ao “Público”, problemas graves na coordenação dos operacionais no terreno. Em um caso, pelo menos, houve bombeiros que esperaram 12 horas para receberem instruções, “sem missão”.

Apesar de compreensivo com os bombeiros, António Marques confessa que chegou, num momento, a exaltar-se com os seus camaradas. “Disse-lhes: ‘Não estejam aqui na estrada, comecem a colocar-se em pontos quentes.’” Ao que, o comandante, “com muita razão”, respondeu: “Estamos à espera de ordens para saber por onde é que temos de avançar.”

Para tentar recuperar das perdas provocadas pelo fogo, o bombeiro de Gonçalo pondera agora se vale a pena esperar pelas ajudas do Estado ou, simplesmente, desistir da vida de agricultor. “Não fui ainda a lado nenhum, porque não acredito. A densidade e a carência é tanta que, venha a ajuda que vier, não chega para ninguém”, admite.

O homem de 64 anos ainda não conseguiu assimilar as perdas; está desesperado, mal consegue dormir. “O quarto está embruxado. Da maneira que tenho a cabeça, acho que já nem volta ao normal.” Com a voz tolhida, António lamenta as oliveiras perdidas. No dia anterior, dissera à filha: “Enquanto eu for vivo, já não precisas de colher azeitona.”

Emocionado, António afasta o rosto e chora. “Mesmo que algumas [oliveiras ainda] rebentem, já não é para a minha vida. É para as netas e assim.”


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