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Entrevista a Daniel Traça

Este ano "não vai acontecer" recuperação do poder de compra

20 jul, 2022 - 21:30 • Sandra Afonso

Um alerta deixado pelo economista e Director da Nova School of Business, Daniel Traça, em entrevista à Renascença.

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Com a inflação nos 8%, o professor catedrático de Economia Daniel Traça quer varrer qualquer ilusão de que um aumento, ainda que tardio, ou outra medida, pode compensar a subida dos preços.

O especialista admite que o país tem de aumentar a produtividade, para conseguir pagar melhores salários e reter os melhores profissionais no país. A bazuca europeia seria uma boa ajuda, mas já arranca com problemas. Um deles é transversal a toda a sociedade: a dificuldade em tomar decisões e responsabilizarmo-nos.

O líder da Nova SBE, a melhor escola de gestão do país e uma das melhores do mundo, segundo o Financial Times, alerta ainda para os riscos de uma recessão, que não chegam apenas com a subida dos juros. Aos empresários e gestores, ficam alguns conselhos, para navegarem na actual economia internacional.

Está à frente da melhor escola de gestão em Portuga,l pelo terceiro ano consecutivo, e a que tem o nono melhor mestrado de Finanças do mundo, segundo o Financial Times. Este reconhecimento atesta a qualidade do ensino público ou a Nova SBE é um caso especial?

O nosso resultado atesta duas coisas. Uma, é que há uma qualidade grande do ensino superior público em Portugal. Houve um investimento muito grande, foi feito ao longo de uma década, e as universidades têm respondido e dão formação de excelente qualidade.

Também atesta uma diferença da Nova, que é ambição e aceitar que queremos ser sempre maiores que nós próprios. A ambição assumimos sem complexos, não nos cingimos à ideia de que por sermos portugueses, temos que ser menos ou temos que querer chegar menos longe.

O resultado mais importante deste ranking, o nosso nono lugar na Europa, é o facto de haver uma escola portuguesa que chega a este lugar e de cinco escolas portuguesas estarem no ranking do Financial Times. Isto atesta, acima de tudo, que em Portugal, mesmo num setor muito competitivo como o ensino superior, as entidades públicas portuguesas quando têm esta ambição e esta vontade de fazer diferente, de fazer bem, de trabalhar e este desassombro e falta de complexos de que por alguma razão somos periféricos, podemos lá estar.

Gostava que esta fosse a lição que sai para o país, que não há nenhuma vicissitude, pelo facto de estarmos em Portugal, e que podemos fazer tudo e devemos querer concorrer em tudo com o melhor que se faz lá fora, porque é só assim que vamos chegar aos níveis de desenvolvimento de que o país precisa.

Qual é a taxa de empregabilidade da nova SBE?

Nos nossos mestrados, que é onde controlamos mais isto, no prazo de seis, mesmo no tempo da pandemia andávamos nos 93%. Em tempos normais andamos nos 98%. A empregabilidade é de facto muito forte e por todo o mundo.

Que percentagem de alunos acaba por sair do país?

Nós hoje temos mais de 50%, cerca de 57 dos alunos que saem. No fundo não saem, porque muitos destes alunos já são estrangeiros e voltam ao seu país. Mas também, dos estrangeiros que saem há uma ligação que fica. Acho que isso vai ter impacto, porque todos estes alunos vão estar muito mais disponíveis para fazer negócio com Portugal, para criar e para vir investir em Portugal.

No fundo, é isto o projeto da Nova: ao criar uma escola em Portugal, portuguesa, mas com um vetor muito internacional, nomeadamente nos alunos e nos professores, consigamos que a pegada de influência do país se expanda pela Europa fora.

Fala-se muito agora dos nómadas digitais. Têm informação sobre alunos estrangeiros que estudaram em Portugal e que optaram por ficar cá, mesmo trabalhando para multinacionais e empresas estrangeiras?

Eu não tenho dados concretos, mas sei e tenho a ideia de que há muitos que ficam. Por exemplo, no grupo que entrou em 2021, cerca de 60% dos alunos são estrangeiros, metade alemães. Ou seja, estamos a falar de 1600 alunos, em que 30% são alemães, o que faz de nós uma escola muito grande no mercado alemão, e estes alunos quase todos voltam. Mas, por exemplo, os alunos italianos, muitos ficam a trabalhar em Portugal, e eu encontro muitos aí em Lisboa porque a língua lhes permite ficar cá.

Portanto, a maior parte dos nossos alunos, quando acaba o seu programa, sai de Portugal. Os alemães, muitos regressam. Os não alemães, nomeadamente italianos e outros, muitos ficam em Portugal, porque é mais fácil por causa da língua. E os portugueses, muitos ficam em Portugal e muitos vão para o estrangeiro, neste caso não tanto para a Alemanha, porque há a questão linguísticas, mas muitos para Londres e para Espanha.

Para fechar este tema, como é que se retém o talento em Portugal?

Para reter o talento em Portugal temos que ter empresas que, primeiro, oferecem carreiras interessantes, de crescimento rápido, com a capacidade desses alunos tomarem decisões rapidamente e crescerem e se desenvolverem dentro das empresas.

Segundo ponto, temos que ter empresas que tenham uma cultura muito aberta e muito dada à inovação e às tendências mais vanguardistas da gestão.

E terceiro, e talvez mais importante, temos que ter empresas que ofereçam pacotes salariais competitivos. Isso obviamente é um desafio grande. Eu olho para os nossos alunos, para os que vão para a Alemanha trabalhar, mesmo os portugueses que vão para Madrid ou para Inglaterra trabalhar, e é muito difícil competir em Portugal com os salários que eles têm.

Mas já existem alguns incentivos fiscais?

Os alunos dizem, e é uma tendência interessante, que quando se volta tem-se um benefício fiscal grande, portanto, se calhar mais vale sair e estar uns anos lá fora, criar currículo e depois voltar a Portugal, ainda por cima tem-se um benefício fiscal interessante. Os próprios alunos já começam a pôr estes fatores nas suas decisões.

Segundo um estudo da Fundação José Neves, numa década o salário médio em Portugal só aumentou para os menos qualificados. Quem tem o ensino superior perdeu 11% do rendimento real. Estamos a desincentivar o ensino e o trabalho?

Em Portugal, ainda vale muito a pena tirar um curso superior. Há dez anos, a percentagem de portugueses com curso superior era muito menor e, portanto, pela lei da oferta e procura, é normal que hoje a diferença entre aquilo que ganha alguém com curso superior e sem se tenha esbatido um pouco.

É um facto que temos que, para os qualificados e para os não qualificados, encontrar uma forma de fazer crescer a produtividade da economia e das empresas portuguesas, para que elas sejam capazes de oferecer salários que sejam competitivos com aquilo que se oferece lá fora.

Este é que é o grande drama, o grande desafio. Como é que Portugal, onde a produtividade tem crescido muito pouco desde o princípio do século, há 22 anos já, e por causa disso o crescimento dos salários médios em Portugal é muito baixo, como é que se inverte este ciclo, para que o país passe a aumentar a produtividade, seja capaz de competir para, por um lado, dar um melhor nível de vida aos portugueses, por outro lado, ser capaz de reter em Portugal aqueles que hoje estão a ir para fora.

Perguntas concretas. Concorda com o aumento salarial decidido este ano pelo Governo para a Função Pública, 0,9%, quando a inflação ronda os 8%?

O crescimento dos custos dos bens alimentares e da energia vão representar sempre, para todos no mundo, uma perda de poder de compra. Nós temos que aceitar, que todos nós, sem exceção no mundo todo, vamos ter uma perda de poder de compra por aquilo que se passa neste momento do ponto de vista internacional, por causa da questão da guerra, por causa do preço da energia, por aí fora. por isso é que o preço da energia é problemático! Tem que haver um ajustamento real de todos, em Portugal e pela Europa.

Há o risco de que esta subida de preços, se se começar a refletir de uma forma muito generalizada nos salários, possa criar aqui uma espiral inflacionista, que é o que não se quer.

O próprio governador do Banco de Portugal já veio dizer que há uma margem até 2% para aumentos salariais, que não causaria pressão inflacionista.

Um aumento de 2% é o aumento normal da inflação...

Mas o governo tinha margem para um aumento mais generoso dos salários?

Se em vez de 0,9 fosse 2%... Não sou eu que o digo, é o governador do banco Central que o diz. Não era 1, passavam a ser 2%. Mas era isso que iria fazer a diferença?

Se ele o diz, eu tenho todas as razões para estar de acordo. Agora, percebamos uma coisa: se as pessoas têm a expectativa, e este é o ponto mais importante, que de repente, com 8% de inflação, que é como estamos este mês, vamos ter 8% de alinhamento dos salários de uma forma transversal na economia portuguesa, não pode acontecer. Porque vai desencadear uma espiral inflacionista; porque a subida dos produtos agrícolas e do petróleo, na realidade, vão exigir um ajustamento real de todos nós; porque é preciso atenção redobrado ao défice público, há aqui uma pressão que se vai criar, que é o aumento da despesa com juros à medida que a inflação e as taxas de juro sobem.

Vamos viver com a realidade que temos, assumindo que não vai haver um ajustamento real nas condições de vida, em Portugal e pelo mundo todo.

Falou da pressão sobre a energia. Os cortes fiscais nos combustíveis deviam ser substituídos por apoios diretos às famílias e empresas viáveis, como já defendeu, por exemplo, o FMI e a OCDE?

Essas entidades têm aqui uma questão sempre importante que é: não vale a pena dar subsídios a quem não precisa, até porque, como eu estava a dizer, o governo vai estar e está já sob pressão financeira, porque os juros vão aumentar. É preciso encontrar formas de poupar. Um apoio mais focado em quem tem mais necessidade, que sofre mais, faria sentido.

Agora, tudo isso tem uma dimensão operacional grande. Ou seja, para montar um sistema em que se identifique quem são estas pessoas, em que se faz o dinheiro lá chegar depressa, e nós lembramos o que é que se passou nos subsídios durante a covid, provavelmente, quando o dinheiro lá chegasse já estas pessoas tinham sofrido e andávamos todos aqui a penalizar o governo por causa disso.

Aqui a escolha é entre um sistema que, se calhar, não é tão eficaz do ponto de vista do foco que tem, mas tem a vantagem de que, do ponto de vista da sua operacionalização, é muito mais fácil, está ali todos os dias e nós temos logo a vantagem de sentir os preços a não subirem tanto como subiriam de outra forma.

Tem-se discutido muito o potencial do Porto de Sines, como porta de entrada do gás na Europa. Até que ponto é que o país pode beneficiar desta infraestrura? Porque o abastecimento por petroleiros também encarece o preço do gás.

A grande lição dos últimos três meses é que, às vezes, o mais barato sai caro. A estratégia alemã de "engagement" com a Rússia, de fazer o pipeline de gás que iria baixar os custos e assegurar o abastecimento saiu-lhes muito caro, porque hoje estamos dependentes de um país, e de outros provavelmente, com os quais não podemos ter relações de confiança.

A solução de Sines faz sentido numa lógica geoestratégica de diminuir o risco de, por um lado, depender demasiado do gás de países onde as instituições são mais frágeis e onde, do ponto de vista geopolítico, não podemos depender. Não são aliados. Do ponto de vista português, é interessante, porque nós temos o potencial de desenvolver uma série de atividades, quer a jusante quer a montante da cadeia de valor, que pode potenciar a viabilidade do país. Há infraestrutura que vai ter que se construir, durante alguns anos, a par de outras indústrias que se podem fazer surgir.

Portugal deve, aproveitando o contexto e em parceria com Espanha, porque isto será Sines e outros portos em Espanha, tentar fazer com que Europa perceba que depender de gás que vem simplesmente da Argélia ou da Rússia são riscos que a Europa não deve assumir.

Onde é que deve ser investido o dinheiro do PRR, para garantir a melhor taxa de aproveitamento e eficiência possível, para garantir que o dinheiro não é desperdiçado?

Acho que a atual forma de implementação tem alguns déficits. Há duas questões que me preocupam. Por exemplo, vamos fazer um investimento enorme na formação do setor administrativo do Estado, que eu acho interessante. Agora, gerir recursos humanos dando-lhes formação, mas sem alterar as carreiras e toda a forma de incentivos para que sejam verdadeiramente capazes de atrair e reter as melhores pessoas, motivá-las e inspirá-las, acho que é um problema. Eu estou na administração pública, vejo a dificuldade que tenho em motivar aqueles que querem fazer mais.

Estar a investir na formação e depois não reformar e não pôr a funcionar os sistemas mais modernos de gestão de pessoas, para que a administração pública se torne muito mais eficiente e muito mais capaz de entregar valor aos cidadãos, não sei se é a melhor forma de investir.

O segundo tema é que eu gostava que toda esta forma de investimento do PRR tivesse muito claro os objetivos. O que é vai representar sucesso? Formar pessoas não é sucesso.

Estatisticamente?

Com indicadores! Queremos aumentar a eficiência na administração pública de X para Y. Queremos produzir X pessoas que sejam capazes de produzir isto para o país.

O que se ouve falar é em executar. Executar é gastar! Eu preferia que o foco fosse muito mais em investir e tirar proveitos naquilo que é o desenvolvimento do país. Depois de executar, quais é que vão ser os resultados? Esta abordagem era mais interessante e eu gostava que houvesse mais compromisso de quem está a executar dos resultados que quer atingir e de quem é que é responsável por esses resultados, para depois no fim podermos avaliar e dizer se esta pessoa fez bem o seu trabalho ou não.

Por outro lado, focou-se muito na administração pública, em investimentos já previstos. Gostava que houvesse uma lógica mais de transformação do setor. Não uma lógica de apoio aos privados, em Portugal os privados também estão sempre um bocadinho à espera de receber apoios, mas uma lógica de facilitar e premiar os privados com mais vontade de transformarem, de fazerem essas reformas.

Numa lógica de vamos dar dinheiro aos privados, mas só recebem de facto se entregarem: se exportarem mais X, se inovarem mais Y. O PRR tinha sido uma boa oportunidade para se criar esta cultura em Portugal. Nós focamo-nos demasiado nos recursos e não nos objetivos.

Também por isso, as reformas continuam sempre a ser adiadas no país e temos problemas recorrentes como a rutura nas urgências ou no aeroporto de Lisboa. São situações que já podiam ter sido resolvidas há mais tempo?

Claro que sim! Qualquer situação de rutura pode sempre ter sido resolvida antes, se tivesse sido prevista. Há sempre imponderáveis na gestão e nós vivemos disso. Agora, o que importa são as soluções para a frente.

Por exemplo, no aeroporto de Lisboa já foram estudadas várias soluções.

É o meu ponto. Voltando a resultados. Acho que o resultado do aeroporto de Lisboa já não é decidam bem ou decidam mal. Decidam! Não há nenhuma razão válida para que ainda não haja uma decisão sobre a questão.

Mais uma vez, é a questão da cultura, de falta de vontade de haver uma accountability real, que diz: eu comprometo-me com estes resultados e vou ser avaliado pelo que entregar. E posso não conseguir, falhar não é o fim do mundo! Paciência. Vou outra vez.

Neste contexto político, em que temos estabilidade, um governo com poder e com a capacidade política para tomar as decisões, é muito importante que houvesse essa accountability (responsabilização).

Há falta de gestão na política?

Eu não diria na política, acho que isto é um problema nacional. É uma questão cultural, mais transversal. As pessoas têm dificuldade em comprometerem-se com objetivos. Têm muito receio, na política e fora dela, de ficar com marca de terem falhado para a vida.

Estive muito tempo fora e estou há 14 anos de volta e é uma coisa que sinto muito. Quando começámos este projeto do Campos, lembro-me da quantidade de pessoas que nos diziam que não vale a pena, não vai resultar e depois vocês vão ficar como as pessoas que prometeram e que não entregaram. Podia ter falhado e não estava aqui a falar consigo, mas era importante para mim ter tentado e ter-me esforçado para lá chegar. É algo que temos de trazer mais, era importante neste contexto político que viesse mais e que as empresas também o fizessem. Esta lógica de: estes são os nossos compromissos, vamos demorar X anos e queremos ser avaliados por eles.

O Parlamento aprovou o início da discussão da redução do horário semanal para quatro dias. O que pensa desta medida? O ensino podia ou devia envolver-se também mais nesta discussão?

É uma medida que antes de ser discutida no Parlamento, deve ser testada em vários setores, em vários países, em vários contextos, perceber as implicações que tem.

Já estão a decorrer vários testes piloto.

Vamos ver os resultados, daqui a um ano e tal, com base nos resultados desses testes piloto, o Parlamento pode tomar a sua decisão.

Há uma história que acho interessante que é a das 35 horas em França, há cerca de 20 anos. A ideia era baixar o tempo de trabalho e toda a gente recebe o mesmo. Depois começaram a perceber que o mercado tem a sua forma de ajustar, se cada trabalhador faz menos horas as empresas têm que recrutar mais pessoas, têm que dividir o trabalho e, portanto, não podem continuar a pagar o mesmo. Aos poucos, os salários não subiram como era suposto e os trabalhadores franceses começaram a dizer que queriam trabalhar mais, para poder ganhar mais.

Estas medidas, que são extraordinariamente transformadoras, fazem sentido. Há uma altura em que dissemos que não trabalhámos ao domingo. Mas devemos testá-las, perceber os resultados, deixar o tempo passar e depois, quando sentimos que a sociedade está pronta, assumimo-la como uma mudança societária.

A sustentabilidade está na moda, mas os chamados produtos verdes, o investimento em produtos sustentáveis, são credíveis ou ainda há pouca informação? O que pensa sobre este mercado?

Ainda há muita confusão e muito daquilo que se chama green washing, que é o que me está a dizer, em que as empresas põem um produto, e há muitos casos, produtos anunciados como sustentáveis, verdes, qualquer que seja a marca da moda, mas não têm nenhum critério objetivo para o validar.

Indicadores muito confusos?

Exatamente. A prazo vamos ter um processo importante, regulatório, de certificação, de definição de critérios, de definição de métricas. Porque na base está o facto de que as pessoas querem este tipo de produtos, as pessoas querem ser conscienciosas quando tomam decisões de investir, de consumir, de poupar. A partir daí, vai ter que haver a definição desses critérios e alguma clareza no mercado.

Como é que vamos lá chegar? Há uma parte em que o mercado vai funcionar, ou seja, pode haver uma agência que surge, que faz uma acreditação deste ou daquele produto, como uma agência de rating. Outra parte vão ser as próprias entidades públicas que vão, a nível europeu e a nível nacional, vão começar a regulamentar alguns destes produtos e explicar o que é que pode ser feito e o que é que não pode ser feito.

Esperemos que não seja tarde demais, porque o mundo precisa de soluções muito rápidas, para ser capaz de regenerar os estragos que têm sido feitos.

Estamos quase a terminar. Ainda pelo mercado financeiro, estamos a assistir a perdas de milhões nas criptomoedas. Podemos estar à beira de um crash?

Já estamos quase lá, com o que tem existido. Diria que esta é uma amostra de uma questão que vamos ter nos mercados financeiros nos próximos dois anos. Tivemos anos de taxas de juro muito, muito baixas, em que não havia nada para investir que tivesse rentabilidade e havia muita liquidez. As pessoas assumiram todos os riscos e mais alguns, investiram em cripto e em todo o tipo de fundos. Geraram-se bolhas.

Agora, com as taxas de juro a começarem a subir, as pessoas vão começar a pensar, das duas uma: muitos pediram emprestado para fazer esses investimentos, porque as taxas de juro eram baixas, e agora pensam duas vezes e vão vender para pagarem de volta os empréstimos; outros vão pensar que o dinheiro que investiram ali mais vale investirem nestes novos produtos, onde as taxas de juro estão a subir.

Vamos ter, não só nas cripto mas também noutros mercados de risco, que estavam muito estendidos, agora vamos ter crashes muito grandes. A grande arte do Banco Central Europeu e da Reserva Federal norte americana é que a subida das taxas de juro que vamos ter para combater a inflação seja suficientemente rápida para impedir que a inflação dispare e perca o controlo, mas não tão rápida que faça com que estes crashes se multipliquem. Senão a recessão não vem da subida das taxas de juro, mas de tantos craches a acontecerem.

Para já, há uma sinalização de subida de 75 pontos base este ano. Será suficiente, o BCE devia ser mais rápido a subir os juros?

Muito mais rápido, não. Estamos num ambiente em que a inflação está alta, 8% foi o último valor para Portugal. Mas, a expectativa dos mercados, a médio prazo, ainda não é de uma inflação a disparar.

Nós estamos num cenário de inflação que neste momento é uma inflação de curto prazo, mas estamos com muito receio que vá gerar uma inflação de longo prazo. Receio, ainda. Devemos ser cuidadosos, uma subida demasiado rápida vai gerar pânico nos mercados e morre-se da cura! Temos uma recessão generalizada por causa da queda dos mercados.

O BCE já alertou para esse receio de uma recessão na zona euro. Portugal, por arrasto, também pode cair nessa recessão?

Sim. Se houver uma recessão na zona euro, nós somos uma pequena economia aberta, obviamente que vai afetar o país. Agora, neste momento, a economia portuguesa está forte, o turismo está forte. O nosso problema é não termos trabalhadores para aquilo que precisamos de fazer.

Calma. Vamos ver com atenção as políticas do Banco Central. Isto não é um algoritmo, é uma arte. Têm de ser suficientemente rápidas para impedir que esta inflação se transmita ao resto da economia e que os mercados continuem a aceitar que a inflação, daqui a dois anos vai estar controlada.

Valia a pena irmos todos rever um bocadinho a história da década de 60, 70 e 80, porque está lá tudo o que estamos a viver agora.

Última pergunta para fechar e aproveitando o seu conhecimento da matéria. Discute-se muito a possibilidade de uma divisão da economia global em dois blocos independentes. Acredita neste cenário e quais serão as consequências?

Essa é uma questão importante e difícil de prever. A minha ideia é que, ao contrário daquilo que se passou na altura da Guerra Fria, há uma enorme interdependência económica entre a China e os Estados Unidos e entre o mundo todo. A rivalidade geoestratégica não vai necessariamente levar a uma divisão absoluta das economias.

As trocas comerciais vão-se manter, haverá alguma gestão para as áreas mais estratégicas, um bocadinho mais defensivo. Mas a interdependência hoje é demasiado grande e, quer a China quer os Estados Unidos, não vão pôr em risco uma enorme perda comercial por causa disto. Também não estou a ver o segundo tear de potências - Brasil, Turquia, Índia - a assumirem um dos lados, a china ou os estados unidos.

Vamos ter uma economia com alguma rivalidade geoestratégica entre a China e os Estados Unidos, mas com trocas comerciais, com o investimento em multinacionais americanas na China e multinacionais chinesas nos Estados Unidos, com alguma defesa dos setores estratégicos. E vamos ter grandes players regionais, que vão gerir a sua relação com a China e os Estados Unidos.

Vai ser um ambiente de alguma tensão. Eu se fosse gestor, preocupava-me muito em aprender um bocadinho mais sobre geoestratégica e sobre estas questões, porque gerir hoje na economia global vai exigir não só perceber preços e otimizar cadeias de valor, mas também perceber os movimentos geoestratégicos e como é que eles vão influenciar. Vamos passar de alturas em que vai haver mais protecionismo, depois vai haver menos, quem está a gerir tem que ter uma enorme capacidade de navegar estes temas. Esta ideia que o gestor não percebe esta realidade e espera simplesmente que o Estado resolva, vai sair caro a quem tomar esta opção.

E este fracionamento no comércio internacional é passageiro ou deverá prolongar-se por algum tempo?

Há tendências novas no comércio internacional. A covid trouxe a questão da dependência de um só lugar para ir buscar as matérias primas. Hoje, qualquer empresa quer assegurar que quando os materiais falham de um lado, podem vir do outro. Esta é uma tendência que está para ficar.

Outra tendência é tentar ir buscar materiais a zonas mais estáveis e mais próximas de nós. E esta é interessante para Portugal. O país perdeu muito com a entrada da China na OMC (Organização Mundial do Comércio) e perdeu muito com o leste da Europa e hoje tem potencial de se reafirmar, porque ninguém quer depender só da China, ninguém quer depender de quem está muito longe e no leste europeu hoje há muito risco.

Estas tendências vão ter impacto no comércio internacional, vão trazer mais alguma fragmentação, mas não vamos regressar à guerra fria ou ao mundo que tínhamos nos anos 80.

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