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Avenida da Liberdade

Manuel Alegre alerta para "deslumbre" do poder absoluto e aconselha maioria a ter "espírito crítico"

06 abr, 2023 - 07:00 • Maria João Costa

"É fundamental para manter a saúde política da democracia", manter o espírito critico, diz o histórico socialista ao podcast Avenida da Liberdade. No caminho para as celebrações dos 50 anos do 25 de Abril, Alegre recorda a luta estudantil em Coimbra, a Guerra Colonial, a prisão em Angola, o exílio em Argel e a defesa da liberdade aos microfones da rádio.

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Manuel Alegre alerta para "deslumbre" do poder absoluto e aconselha maioria a ter "espírito crítico"

Fala a voz do poeta, com a autoridade de quem foi fundador do Partido Socialista e assinou o preâmbulo da Constituição portuguesa. Manuel Alegre alerta para os perigos do “poder absoluto”.

“Admito que deslumbre um bocado as pessoas e por vezes as leve a perder o sentido crítico”, refere o antigo conselheiro de Estado ao podcast Avenida da Liberdade da Renascença. Questionado sobre a atual situação do país, Manuel Alegre reconhece que “há carências” e deixa conselhos a António Costa.

“Nós, na nossa juventude, quando formamos o Partido Socialista dizíamos que era preciso manter o espírito crítico, sobretudo quando se é poder. Isso é muito importante! É esse o conselho que eu dou aos meus camaradas que hoje têm a maioria. Não percam o espírito critico em relação a eles próprios.”

Esse sentido crítico é, nas palavras de Manuel Alegre, “fundamental para manter a saúde política da democracia”. O poeta que redigiu o preâmbulo da Constituição portuguesa alerta para os perigos da “desconstrução da democracia” a que se tem assistido.

“O 25 de Abril inaugurou, diz o Samuel Waddington, uma nova etapa democrática no Mundo. E nós neste momento estamos a assistir um bocado à desconstrução das democracias, até nos Estados Unidos e um pouco por toda a parte!”, afirma Alegre.

Na sua opinião, o que hoje, 50 anos depois do 25 de Abril de 1974, “o que seria revolucionário seria voltar a um tempo de consolidação da democracia e transparência democrática. E também de acabar com este império do poder financeiro, sobretudo sobre a economia, a cultura, a política e sobre os próprios Estados, porque isto corrói a política e a vida”, conclui.

O 25 de Abril na sede da France Press e aos microfones da rádio

Foi no exílio, na Argélia, que a notícia chegou a Manuel Alegre. Eram 7h00 da manhã e estava em marcha a Revolução em Lisboa. Em Argel os primeiros dados pareceram confusos ao poeta exiliado.

“Não sabíamos que tanques eram aqueles. Não sabíamos se eram os tanques que depois vieram a ser, ou se eram os tanques do Kaúlza de Arriaga”, recorda Manuel Alegre.

Só com o passar das horas as coisas se foram clarificando. “Juntamo-nos, os exilados, com o Piteira Santos, com a minha mulher e outros amigos e a France Press convidou-nos a ir para lá, foram muito simpáticos e estivemos a seguir as notícias”, relata.

“Foi com grande alvoroço e emoção que vivemos esse período”, conta Manuel Alegre, que tinha vivido os últimos anos em Argel, dando voz à Frente Patriótica Nacional e ao movimento anti-ditadura aos microfones da Rádio Voz da Liberdade.

“A Voz da Liberdade transmitia, inicialmente, duas vezes por semana. Depois passou a ser três vezes, segunda, quarta e sábado. Havia boletins clandestinos que chegavam de Portugal, informações sobre as lutas que se travavam em Portugal. Havia muitas coisas do movimento estudantil, também do movimento operário e até de movimentações militares que nessa altura existiam e noticia que não passavam em Portugal”, relembra Alegre.

“Íamos fazendo alguma doutrina sobre a liberdade e a luta contra a Guerra Colonial”, conta o ex-radialista, que admite “nunca” terem sido alvo de “pressões” da Argélia.

“Isso é uma homenagem que temos de fazer a Argel. Tinham o culto da independência e nunca os argelinos intervieram nas nossas questões”, enaltece Manuel Alegre.

Um golpe falhado no Açores

Para trás na memória de Alegre estão os tempos da luta estudantil em Coimbra, que “foi fundamental” e “é, aliás subestimada”. “É a partir do momento em que ganhamos as eleições para a Associação de Estudantes, em 1960, numa eleição encabeçada pelo Carlos Candal” que tudo mudou.

Desse tempo, recorda a forma como a PIDE interferia no dia-a-dia. “Prendia-nos, seguia-nos, sentava-se ao nosso lado nos cafés, fazia uma perseguição ostensiva. Era um jogo do gato e do rato em que nós, evidentemente eramos o rato!”

Depois de Coimbra, Alegre é mobilizado. Vai primeiro para os Açores, onde arriscou com Melo Antunes uma tentativa de golpe para tomar a Ilha de São Miguel.

Mas o golpe dessa Junta de Ação Patriótica que queria levar para a ilha açoriana o General Humberto Delgado, candidato que apoiavam falhou, “porque as estruturas clandestinas não estavam em condições de acompanhar” o golpe, porque antes, em maio de 1962, nas comemorações do primeiro de maio muitos tinham sido presos.

Preso em Angola Alegre recorda como a música e a poesia o salvaram

Tal como escreve no romance “Jornada de África”, quando chegou a Angola, Manuel Alegre sentiu o cheiro da guerra e da morte. “Já sabia que não se vence uma guerra de guerrilha, portanto ia com a consciência de que aquela era uma guerra fora do tempo, contra o tempo, contrária aos interesses de Portugal”, diz ao podcast Avenida da Liberdade.

Considera que “ter sido um combatente, ter conhecido a guerra por dentro” deu-lhe “autoridade moral para poder ser mais fortemente ainda contra a ideia da guerra como solução última da questão colonial”.

Foi nas ruas de Luanda que foi preso. Esteve isolado no cárcere, até que ao seu lado, também preso estava o escritor Luandino Vieira que lhe enviou uma mensagem.

Primeiro mandou-lhe um “queijo e uma laranja” que Alegre, desconhecendo a proveniência, não comeu. Depois, recorda o histórico socialista: "encontrei uma caixa de fósforos, em que me dizia: 'sei quem tu és, estamos contigo, não estás só e todas as madrugadas um de nós assobiará o 'Plaine, ma plaine', aquela canção russa'”.

Essa música salvou-o, conta Alegre. “Aquilo deu-me uma força, que não imagina! Eu estava ali isolado, rodeado pelos 'Pides' e a ser interrogado. Ouvia-a o assobio deles e era como se fosse uma multidão dentro de mim”.

Sem papel ou caneta para escrever na prisão, na sua cabeça nasceram os primeiros poemas do livro “Praça da Canção”. De regresso a Portugal, foi por causa dos seus versos cantados que acabou por passar à clandestinidade em Argel.

O autor do preâmbulo da Constituição

Já depois do 25 de Abril, Manuel Alegre integrou a Assembleia Constituinte. Sentava-se ao lado do poeta, como gostava de ser conhecida, Sophia de Mello Breyner.

Dela recorda um discurso fundamental sobre a cultura e da sua força. Alegre recorda que foi ele quem redigiu o preâmbulo da Constituição que viria a ser aprovada mais tarde.

Dos trabalhos, deixa ao microfone do Avenida da Liberdade uma homenagem ao dirigente comunista Carlos Brito.

Era “presidente do grupo parlamentar” e “teve um papel fundamental para que os comunistas cumprissem também o seu papel. Apesar de andarmos à trolha e à bulha cá fora, ali dentro, os deputados cumpriram a sua função de fazerem a Constituição. E ele foi o primeiro dirigente comunista a perceber a importância que era levar a Constituição até ao fim", elogia Manuel Alegre.
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