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Processos por assédio no trabalho são insignificantes face à realidade

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ACT. Processos por assédio no trabalho "insignificantes" face à realidade

21 abr, 2023 • Marina Pimentel


De acordo com a Autoridade para as Condições no Trabalho, a "cultura" de autoculpabilização será uma das razões para inibir denúncias. Nas universidades, o Sindicato Nacional do Ensino Superior até admite receber várias queixas, mas são poucas as que resultam em processo.

O número de processos de infração por assédio sexual ou moral nas empresas abertos pela Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) é "absolutamente insignificante" face à realidade conhecida, admite a inspetora-geral, Fernanda Campos, em declarações ao programa Em Nome da Lei da Renascença.

Segundo a ACT, a maior parte das intervenções diz respeito ao incumprimento de códigos de conduta e mecanismos de denúncia exigidos por lei nas empresas com mais de sete trabalhadores.

Em matéria de assédio moral, nos últimos três anos, a autoridade instaurou 55 processos de infração. Contudo, no que toca aos casos de assédio sexual, os números são bastante reduzidos: entre 2020 e 2021, foram abertos apenas dois processos.

A inspetora-geral da ACT, Fernanda Campos, frisa que os processos não espelham a realidade: "[São] absolutamente insignificantes perante aquilo que conhecemos".

"Cultura" de autoculpabilização

Em declarações ao programa Em Nome da Lei, da Renascença, Fernanda Campos aponta que este desfasamento se deve a uma "cultura" de autoculpabilização no momento em que a pessoa sofre de assédio.

"'Se calhar fui eu que não fiz a coisa certa. O patrão é um brincalhão, é mesmo assim, o colega é mesmo assim'. Não. Quando alguma destas atitudes frequentes deixam o trabalhador ou a trabalhadora desconfortável, deve denunciar."


ACT. Processos por assédio no trabalho "insignificantes" face à realidade
ACT. Processos por assédio no trabalho "insignificantes" face à realidade

Já António Garcia Pereira corrobora o desajustamento dos números apontado pela inspetora-geral. O advogado e professor universitário ilustra o caso recorrendo aos relatórios do Eurofound, os quais, por extrapolação, admitem que até meio milhão de portugueses sofre ou já sofreu assédio moral no local de trabalho.

"Basta olhar para os números que acabámos de ver referidos pela senhora inspetora-geral para ver que é ridículo, que é uma minoria absolutamente ínfima que é objeto de atuação, com vista ao apuramento da responsabilidade contraordenacional."

Universidades são "caldo perfeito" para situações de assédio

As universidades e instituições de investigação são, "provavelmente, o ecossistema mais dado a que haja situações de quase todos os tipos de assédio", diz o presidente do Sindicato Nacional do Ensino Superior, José Moreira.

"Porquê? Porque existem enormes relações de poder desigual."

De acordo com o professor universitário, existe um desequilíbrio nas relações em meio académico, indicando exemplos, como a "dependência que os alunos têm em relação aos professores, aquando do lançamento das notas", ou entre investigadores e orientadores.

"Temos aqui o caldo perfeito para que haja situações de assédio", lamenta.

No entanto, à semelhança do cenário nas empresas, a investigação sobre estes casos de assédio deixa a desejar. Segundo o dirigente, o sindicato recebe, "pelo menos, entre 20 e 30 queixas por por ano relativas a processos de assédio moral"

Contudo, as denúncias "quase nunca avançam". "Posso dizer que se avançarem uma ou duas por ano, provavelmente já estarei a exagerar."

José Moreira defende que o mecanismo de denúncia dos assédios em meio universitário tem de ser expedito e garantir independência, dando segurança às vítimas, mas também a quem é denunciado, para que não possa haver "caça às bruxas".

No entanto, a realidade não augura sinais positivos nesse sentido, como os 50 casos de assédio denunciados na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Inês Ferreira Leite, professora universitária, denuncia o clima de intimidação na instituição que era exercido sobre os alunos, com "discursos tremendistas" feitos pelos próprios docentes.

"Houve professores que iniciaram as aulas plenárias a dizer: 'O que é que vocês estão a fazer? Vocês vão acabar com a reputação da faculdade, não vão arranjar emprego'".

A também advogada penalista realça que o discurso perpetrado não fazia sentido, tentando confundir "falta de caráter de alguns docentes com a falta de qualidade de uma instituição, que são coisas completamente diferentes".

Por consequência, Inês Ferreira Leite admite ser natural que os alunos tivessem medo de denunciar novos casos de assédio: "Claro que não há ambiente para um para as pessoas se sentirem livres para denunciar. Mas isto foi deliberadamente feito. Eu não posso acreditar que foi sem querer".

Por outro lado, a advogada revela ainda não haver uma "vontade efetiva de investigar por parte da universidade", perante casos em que "não é difícil" apurar as circunstâncias em que se deram as situações de assédio.

E dá um exemplo concreto: "Um docente tinha 10 denúncias. Dessas 10, é extremamente provável que quatro, cinco, seis ou sete sejam iguais - de pessoas diferentes, mas a quem fez exatamente a mesma coisa. Então, também não é difícil saber - porque nessas denúncias era identificado o docente - a que turmas é que deu aulas, quando, em que salas, falar com os alunos... Não é difícil!"

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  • Anastácio José Marti
    21 abr, 2023 Lisboa 10:50
    Quando haverá a vontade, o saber e o querer dos que são pagos para que as situações de assédio, discriminação, homicídios profissionais e situações de bowling profissional sejam realmente encaradas de frente em vez do faz de conta que não existem, mantendo as vítimas destas vergonhosas realidades profissionais a sofrerem as consequências daqueles e daquelas que assim se comportam, porque quem deve dar o exemplo, como o Estado, é o primeiro a cometer estes atos deixando impunes os que a eles recorrem para imporem as suas vontades e os seus interesses, como acontece desde 1974- .Porque estamos no país do faz de conta que se faz sem nunca nada fazer, temos trabalhadores DEFICIENTES, PROFESSORES, MÉDICOS etc, em verdadeiras situações de homicídio profissional, pois nunca foram geridos como o deveriam ter sido para terem o mínimo de estimulo e de motivação que há muito não têm, porque continuam a ser fingidamente geridos por quem, nunca soube gerir nada e só é dirigente, graças aos cargos de confiança política que proliferam em tudo o que é Administração Pública em detrimento do mérito. Porque assim é e nunca o deveria ser, estamos a fingir que estas vergonhosas realidades profissionais não existem, desrespeitando todos e todas que destas situações são vítimas, o que para um país e uma União Europeia que subscreveram a Declaração Universal dos Direitos Humanos que ambos não respeitam desde sempre é inadmissível, ilegal, desumano, imoral, e anti ético, VERGONHOSO.