Legislativas 2024

Os temas que ficaram de fora da campanha depois de mais de um mês na estrada

08 mar, 2024 - 06:30 • João Carlos Malta

Natalidade e desertificação do interior, inteligência artificial, água e seca e a crise nos media. Estes são só quatro exemplos (a lista será porventura muito maior) de temas que podem mudar a face do país sem que tenham merecido atenção dos líderes que se candidatam a eleição do próximo domingo.

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Após mais de um mês na estrada e entre pré-campanha e campanha, com muitos milhares de quilómetros percorridos, há temas que vão (ou podem) mudar o país que não tiveram palco na corrida para as legislativas de 10 de março. A crise na natalidade, o impacto da inteligência artificial em áreas como o trabalho, os riscos da seca e da falta de água e a crise sem precedentes dos media, são apenas quatro exemplos de questões que não saíram dos programas dos partidos para as ruas.

Numa campanha marcada pelos temas da habitação, educação e saúde, mas sobretudo pelas estratégias de coligação de cada partido tendo em vista a governabilidade pós-eleitoral, há problemas que passaram ao lado das caravanas partidárias.

Muitas vezes, é verdade que não é só pela vontade de quem comanda os partidos que os assuntos não têm relevo mediático. O caso do dia, os casos e casinhos da campanha e a seleção noticiosa das redações podem muitas vezes ajudar a justificar a inexistência de espaço para estes temas entrarem na discussão.

A Renascença foi falar com especialistas das áreas excluídas dos discursos dos líderes partidários para perceber o porquê e os riscos de estes assuntos se manterem como “buracos negros” no discurso político.

Faltam bebés e falta vontade de falar disso

O presidente da Associação Portuguesa de Demografia, Paulo Machado, concorda que o tema ficou excluído apesar de até ter uma presença importante nos programas dos partidos com assento parlamentar. Ainda assim, diz que nesses documentos é melhor o “diagnóstico do que as soluções apresentadas”.

A razão para este tema não ganhar relevância na discussão política pré-eleições é justificada “com o facto de na campanha se discutir a espuma dos dias”. “É o diz que disse, e o que o outro disse, e o que vai fazer ou deixou de fazer. E, portanto, as questões programáticas ou parte dessas questões programáticas como a demografia ficam para trás”, afirma Paulo Machado.

O especialista diz que desta forma a discussão não chega às pessoas, uma vez que a maioria não lê os programas “porque são muito grandes”. No entanto, salienta que nesta área é na AD que vê um maior esforço para criar políticas com “um programa bem detalhado”. Isto ao contrário do PS, em que, segundo Paulo Machado, o tema quase desaparece por oposição a 2022 em que tinha sido uma prioridade.

Os riscos da ausência de discussão sobre as questões de natalidade e da desertificação do interior, na ótica do presidente da Associação Portuguesa de Demografia, é antes de mais o adiar das decisões que “teria sido muito importante terem sido tomadas há 10, 15 ou 20 anos”.

“Não temos uma verdadeira política pública nesta área. Vamos repartindo medidas pelas diferentes tutelas, da Saúde, à Segurança Social, à Educação, às Finanças, espalhadas por diferentes tutelas. O nosso caminho vai-se fazendo e o nosso caminho é de progressivo envelhecimento”.

Paulo Machado lamenta que o único tópico que tem levado a falar marginalmente de natalidade e demografia é a imigração. “Aí tem-se falado muito, mas sobre a barganha se devemos ter ou não algum condicionamento ao número de imigrantes”.

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"O único tópico que tem sido usado na campanha para falar de demografia é o da imigração", Paulo Machado, presidente da Sociedade Portuguesa de Demografia.

Este especialista condena as prioridades dos partidos que põem a imigração à frente da natalidade, quando esta já entrou pela vida dos portugueses adentro em áreas como a educação com “o encerramento de escolas”.

Um país com poucas crianças é um país que não se desenvolve”, remata o presidente da Associação Portuguesa de Demografia, Paulo Machado.

IA mudará trabalho em breve, mas discussão está adiada

José Júlio Alferes, presidente da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Lisboa e especialista em inteligência artificial (IA), confessa que é difícil perceber o porquê de a IA continuar fora da discussão política e pública.

“Talvez ainda haja pouco conhecimento da população sobre a importância deste tema. E por isso, se calhar os políticos também falam pouco dele. Também eles, se calhar, sabem pouco”, arrisca.

Ainda assim, Alferes diz que é perigoso que isto aconteça porque, a “muito curto médio prazo, terá influência na vida das pessoas”.

A inteligência artificial, garante, “vai trazer necessariamente mudanças grandes na sociedade, na forma como nos organizamos, e muito em especial no que diz respeito à organização do trabalho”.

Alferes acredita que há “uma série de profissões que vão desaparecer ou que vão ter muito menos necessidades de recursos humanos”. “É verdade que vão aparecer outras, mas há grandes dúvidas de que em número suficiente para colmatar os que se vão desaparecer”, analisa.

Um dos riscos da falta de relevância pública do tema é a pouca preparação para planear o impacto das mudanças. “Poderá haver crises de trabalho em vários setores”, concretiza.

José Júlio Alferes alerta também para um aumento das desigualdades que a maior presença da IA no dia-a-dia trará.

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"[A IA] vai trazer grandes mudanças na sociedade, na forma como nos organizamos e muito em especial à organização do trabalho e das desigualdades", José Júlio Alferes, especialista em inteligência artificial.

Isto porque, garante, “estas são ferramentas que vão aumentar muito a produtividade”, e haverá quem tem acesso a elas e quem não tem. Quem não as detiver ficará indubitavelmente para trás e aumentará as diferenças entre vários estratos da população.

“O assunto não desaparece, por não se falar dele, e vai surgir com uma sociedade menos preparada para enfrentar os desafios que vêm da introdução dessa da inteligência artificial”, sublinha.

Falta de água “não dá votos”

A água e a seca são dois temas relacionados e ambos estão foram dos holofotes da campanha. Carmona Rodrigues, membro do Conselho Nacional da Água e ex-presidente da Câmara de Lisboa, pensa que a razão poderá ser o facto de estes assuntos garantirem poucos votos .

“As pessoas hoje estão mais preocupadas com a habitação, a saúde, os transportes, a segurança”, analisa.

Carmona considera, todavia, que há uma dissociação entre a discussão que existe na sociedade civil em relação à escassez de água e das soluções para combater o problema, sobretudo no Alentejo e no Algarve, e a exposição pública pelos partidos que tem “arredado da campanha” a questão.

“Das duas uma, ou é um assunto que não é importante, ou as forças políticas têm poucas ideias e não se querem comprometer com propostas ”, explica o membro do Conselho Nacional da Água.

Como é um tema que tem incidência regional, mais a sul, Carmona Rodrigues pensa que, o facto de no norte o problema não ter tanta importância, leva a que o assunto não fure nas prioridades nacionais.

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"È um bocado supreendente [a ausência na campanha] quando na sociedade civil tanto se tem discutido as questões da escassez de água", Carmona Rodrigues, membro do Conselho Nacional de Àgua.

Ainda assim, “seria de esperar que nestas eleições que se seguem a anos de seca e falta de água devesse ser um tema mais debatido”.

Crise na comunicação social sem holofotes

A viver uma crise sem precedentes, o setor da comunicação social, mesmo fustigado com uma onda de despedimentos e a degradação das redações de um dos grupos mais importante do setor, a Global Media, não foi discutido na campanha.

Luis Filipe Simões, presidente do Sindicato de Jornalistas, reconhece que o tema não tem sido falado. “Não se debateu um tema que há anos devia ser debatido” e que “os partidos políticos ignoram”, explica.

“Parece que não há um problema com o jornalismo e a comunicação social. Há e é um problema grave, principalmente porque vivemos num tempo em que a desinformação vai ganhando terreno”, argumenta.

Luís Filipe Simões diz que, pelos vistos, “ ainda não se percebeu a emergência que estamos a viver”. Essa foi uma das razões, explica, por que os jornalistas tenham marcado um greve para 14 de março.

Mas não serão os jornalistas também responsáveis por esta ausência de discussão? O presidente do sindicato responde que "sim", porque era responsabilidade dos repórteres fazê-lo durante a campanha.

“O caso da Global Media devia ter feito pensar se a Lei da Transparência que temos é suficiente em Portugal. Se é possível que não sabermos quem vai comprar os meios de comunicação social”, alerta.

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"O risco é que qualquer dia se não investirmos no jornalismo, as redações continuarem a terem cada vez menos pessoas, termos dificuldades em saber o que é a verdade e o que é a mentira", Luís Filipe Simões, presidente do Sindicato dos Jornalistas.

O sindicalista garante que este já é um tema na União Europeia, mas em Portugal pouco se discute. “Somos um dos países que gasta menos per capita com jornalismo. Lamento que isto não tenha sido um tema”, reitera.

Os perigos da ausência de debate e de soluções é o de um dia com a degradação das redações, com cada vez menos pessoas e salários maios baixos, “termos mais dificuldade em saber o que é verdade e é mentira sem estes profissionais treinados”.

É um risco para a democracia ”, remata Luis Filipe Simões, presidente do Sindicato de Jornalistas.

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