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Investigadora de Saúde Pública

"Se na Páscoa cada família estiver com mais duas ou três pessoas é brutal. A transmissão cresce muito"

30 mar, 2021 - 06:33 • Hélio Carvalho

O país aguentou e reduziu a incidência nas primeiras semanas de desconfinamento, mas avizinha-se um período "complicado". Carla Nunes, diretora da Escola Nacional de Saúde Pública, alerta para o aumento de mobilidade nas próximas fases e acredita que a imunidade de grupo pode ser atingida no verão, se tudo correr dentro do previsto.

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O plano de desconfinamento a "conta gotas" anunciado pelo Governo arrancou no passado dia 15 de março e a incidência manteve-se estável, com o número de casos a descer gradualmente ao longo dos dias. A próxima fase arranca logo a seguir à Páscoa, no dia 5 de abril, com o regresso ao ensino presencial dos 2.º e 3.º ciclos, a abertura de atividades de tempos livres (ATL), de espaços culturais como museus e galerias, de esplanadas, de feiras e um alargamento no comércio.

Para Carla Nunes, diretora da Escola Nacional de Saúde Pública, da Universidade Nova de Lisboa, não há motivos para pensar em colocar um travão ao plano de desconfinamento. Prevê-se que a mobilidade no país aumente, e o número de casos poderá aumentar também. Algo que Carla Nunes não considera uma surpresa: o essencial é manter esse crescimento controlado e obedecer a um plano de desconfinamento com "metas muitíssimo controladas". E mobilidade acrescida não foi sinónimo, para já, de um crescimento da pandemia em Portugal.

Em entrevista à Renascença, a investigadora elogia a decisão de confinar no final de janeiro, quando os serviços de saúde estavam sobrelotados, e que travou a variante inglesa - uma ação que, acredita, foi a chave do sucesso para Portugal estar agora "melhor" do que o resto da Europa.

Carla Nunes também acredita que seja possível atingir a imunidade de grupo no verão, mas apenas se os serviços de saúde forem reorganizados para que o plano de vacinação possa acelerar.

E na Páscoa, um período apontado como crítico, a diretora da Escola Nacional de Saúde Pública pede cuidados acrescidos, especialmente nos encontros familiares.

A próxima fase de desconfinamento arranca dia 5 de abril, com o regresso dos 2.º e 3.º ciclos ao ensino presencial, a reabertura de ATLs, esplanadas, alguns espaços culturais, entre outras atividades. Tendo em conta os dados desde a primeira fase de desconfinamento, que começou no dia 15 de março, que balanço faz da situação pandémica desde o início do desconfinamento “a conta-gotas”?

Durante esta primeira fase de desconfinamento, nós continuamos com a descida. Obviamente que já estamos a descer mais devagar, estamos a atingir valores mais baixos e a própria curva começa a atenuar, mas continua a decrescer. Em termos de indicadores de incidência, estamos bem, já com os valores que nos colocam claramente no quadrante verde. E em termos de R(t), o tal índice de transmissibilidade está a subir e está a aproximar-se do 1 devagarinho, o que, com valores baixos de incidência baixos, é natural que isso aconteça; é sempre uma questão de preocupação mas dada a incidência com números baixos, este tal valor também não é de estranhar.

Vemos outros sinais de desconfinamento externos em relação a estes indicadores mais epidemiológicos, como o comportamento das pessoas, os dados de mobilidade, que nos mostram realmente que as pessoas estão efetivamente a desconfinar e, portanto, vai haver uma alteração no padrão.

Neste momento, o que nós vemos é que há realmente uma maior adoção de mais saídas de casa, mais encontros, mais passeios... Vamos ver se, assumindo que vai haver um crescimento, os casos se vão manter suficientemente baixos para conseguirmos que o plano de desconfinamento continue conforme está previsto. Neste momento, penso que não temos factualmente nenhuma resposta que nos leve já a pensar que vai ter de haver uma alteração ao plano de desconfinamento. Estamos a ver esta alteração de padrões de comportamentos que, se forem suficientemente cuidados e suficientemente infrequentes, ou seja, se todos nós não aumentarmos em muito os nossos comportamentos, será possível continuar com o plano de desconfinamento.

"A Páscoa pode levar a que o aumento de casos seja incomportável para a continuidade do plano de desconfinamento"

Estamos alerta, não ainda pelos próprios indicadores epidemiológicos, mas mais pelos indicadores de comportamento e de mobilidade. Ainda não há repercussões que neste momento ponham em causa o plano. Mas os dias que se aproximam, e esta semana em específico, são sem dúvida fundamentais para o que vai acontecer na próxima semana.

Fala desta semana em específico porque é nesta semana que se poderá registar um maior aumento de casos, fruto da mobilidade acrescida?

Faz agora um tempo desde que as escolas abriram, já podemos ver algum efeito do que aconteceu nestas últimas duas semanas, mas também esta semana é crucial no efeito de daqui a 15 dias, que é mais este período da páscoa que pode levar a que o aumento seja incomportável para a continuidade do plano de desconfinamento. Neste momento, ainda não temos evidência para isso, neste momento os dados estão epidemiologicamente estáveis, estamos numa posição excelente na Europa. O que nos preocupa são os indicadores de mobilidade e vamos ver se não são suficientes para virarem novamente a nossa curva.

Fala dos dados da Europa: enquanto os números nacionais mantêm uma tendência de descida, países como a França e a Alemanha estão a enfrentar um novo período de crescimento de novos casos, com o desconfinamento a ser questionado. Porque é que Portugal passa por este contraciclo relativamente à Europa?

Nós temos andado em contraciclo algumas vezes. Já fomos os melhores, já fomos os piores, agora somos novamente os melhores. Nós tivemos a subida em janeiro, tivemos uma situação muito má, e descemos novamente com um confinamento muitíssimo apertado, mais apertado do que a maioria dos países. Por exemplo, em relação às escolas, Portugal foi muito estrito, fechou as escolas todas, e isso é uma medida que não foi tomada por muitos países nessa altura.

Não falamos das escolas enquanto lugar de infeção, mas são as escolas que condicionam a forma como todos os outros setores se organizam e funcionam.

Tivemos outra consequência, que foi até inesperada: quando a variante britânica, do Reino Unido, em dezembro apareceu cá em larga escala, o nosso confinamento também atuou sobre a vertente. Foi um receio na altura que aquele confinamento extremo, digamos assim, não atuasse sobre uma variante mais infeciosa como o caso da do Reino Unido. Mas atuou, e baixou em todo o lado. Nos outros países que não fecharam tanto, o crescimento da variante britânica continuou. Aquela variante faz com que os casos expludam, nós controlamo-la, agora é bom que consigamos manter isso e que todas as outras coisas que estamos a fazer, inclusive a vacinação, consigam funcionar como uma almofada para as outras situações.

Referiu o crescimento de casos em janeiro, uma altura que se costuma chamar de terceira vaga. No entanto, ainda no final de dezembro, início de janeiro, registávamos milhares de casos diários. Podemos falar em uma terceira vaga ou em uma segunda vaga mais alargada.

Não há nenhuma definição epidemiológica sobre se é a continuação da segunda vaga ou se é uma terceira vaga. Nós chamamos uma onda quando veio suficientemente cá abaixo, quase que desapareceu, para depois voltar a subir. É quase como se a doença tivesse desaparecido.

Por exemplo, com as gripes. No verão, tomam valores que são muito residuais em relação às ondas de inverno e são curvas que sobem e descem.

Neste caso, é dependendo das zonas do país. Por exemplo, no Norte, a onda de novembro foi igual à onda de janeiro, ondas quase iguais em termos de dimensão máxima. Mas se olharmos para a região de Lisboa e Vale do Tejo, o comportamento já foi completamente diferente: a onda de novembro foi uma onda muito mais pequenina e a onda de janeiro foi quase quatro ou cinco vezes superior.

Portanto, na minha opinião, nós nunca viemos suficientemente cá abaixo, durante um espaço de tempo suficientemente grande, para eu isolar o processo de transmissão e o processo de crescimento daquela onda em relação à onda anterior.

Mas enfim, é uma questão um bocadinho teórica, no sentido de ser pouco útil. Não é muito útil, nem em termos de decisão, nem em termos de comunicação e depende do espaço, seja numa área nacional ou em Lisboa e Vale do Tejo. Na minha opinião, nunca esteve suficientemente controlada durante um espaço de tempo suficientemente grande de tempo para eu dizer que são dois processos independentes.

Durante o verão, quando tínhamos cerca de 100 a 200 casos por dia, abordava-se a pandemia como controlada.

Mas aí foi a incidência muito baixa durante o período de quatro ou cinco meses. Em novembro, foi durante uma semana ou duas, e depende da região do país que estiver a falar.

Na primeira onda, houve claramente um padrão elevado e uma rutura - nem nós sabíamos o que era rutura dos serviços de saúde nessa altura -, houve muito pânico e depois tivemos vários meses descansados.

Passando à questão da vacinação. Este fim-de-semana, o processo acelerou e foi exclusivo para profissionais da educação. O vice-almirante Gouveia e Melo, que coordena a "task force" da vacinação, referiu que o objetivo do Governo seria atingir as 100 mil vacinações por dia durante o mês de abril. Considera que é possível atingir esta meta?

É preciso uma reorganização de serviços. Tenho ideia de que com reorganização de serviços será possível. Eu sinceramente não tenho informação sobre os serviços de saúde para dizer até que ponto essa reorganização é possível ou não, e também sobre a entrega de vacinas, que é algo que tem condicionado o plano de vacinação até agora, como com todas as alterações na entrega de vacinas e estas questões com a AstraZeneca que obrigaram a uma paragem durante uma semana por precaução.

É um desafio de organização e não sei, sinceramente não sei se o serviço e os profissionais de saúde têm a flexibilização e disponibilidade necessária para isso ou não.

O vice-almirante também referiu que seriam precisos mais recursos humanos. Sem esses recursos, considera que é bastante difícil atingir este objetivo.

Os profissionais de saúde e o Serviço Nacional de Saúde, e o sistema nacional de saúde de uma forma mais alargada, têm muitos desafios pela frente neste momento. Tem toda a parte da vacinação, toda a parte da recuperação não-covid, toda a parte do acompanhamento da chamada "covid longa", das sequelas que cada vez são mais notórias nas pessoas que tiveram covid-19... Portanto, eu sei que o desafio para os profissionais de saúde está muito longe de estar numa fase estável.

Imaginando que a pandemia e os indicadores mais práticos se mantêm a níveis controlados, neste momento as metas que estão definidas no plano de desconfinamento são metas muitíssimo controladas, são metas muito restritivas no sentido de não haver muito espaço para se poder chegar a situações semelhantes ao que aconteceu em janeiro.

Portanto se a organização a esses desafios é ou não possível, espero que sim, mas não tenho a informação sobre o que é que implica retirar de um lado e por do outro, com o devido cansaço que já existe em todos os profissionais de saúde.

Em termos de ritmo de vacinação, com o objetivo de tentar atingir a imunidade de grupo o mais depressa possível, considera que o ritmo a que temos assistido é suficiente tendo em conta a desafio de atingir essa meta no verão?

Se tudo correr em termos de entrega, o que está previsto é no verão nós conseguirmos atingir uma percentagem considerável, os tais 60% a 70% da população portuguesa vacinada. Não havendo nenhum percalço, penso que no verão teremos razões para boas notícias.

Agora, algo vai mudar nos próximos tempos, mesmo nos nossos comportamentos individuais que nós assumimos, como usar máscara e a lavagem das mãos, manter o teletrabalho quando possível. Vai haver alterações e não estaremos no final do verão igual ao que estávamos em 2019, infelizmente não me parece que essa realidade seja atingível, mas estaremos bastante melhor e vamos aprendendo.

Essa normalidade já tem sido bastante refutada, muitos cientistas já referiram que vai demorar bastante até largarmos as máscaras...

Sim, e nós fizemos um estudo sobre em que medida é fácil adotar determinadas medidas. E apenas 10% ou 5% das pessoas diz que é difícil ou muito difícil o uso da máscara e a lavagem das mãos, consoante for a máscara. Isso são comportamentos individuais ganhos.

"“Se na Páscoa cada família estiver com mais duas ou três pessoas isso é brutal. Aí a transmissão cresce muito”"

Há outro tipo de comportamentos que já têm mais a ver com influência externa, como o teletrabalho - não é só decisão do próprio se pode ou não fazer, aí já é muito difícil, andamos com cerca de 20% das pessoas a dizer que é difícil ou muito difícil o teletrabalho.

Outra questão que as pessoas identificam como mais difícil de adotar é as visitas aos familiares e amigos. São as questões de foro muito mais pessoal e de equilíbrio pessoal, que são os maiores desafios neste momento. E daí que períodos como este que nós vivemos agora, que são períodos, tal como o Natal, muito familiares, que são complicados.

Sobre esses encontros familiares, o Presidente da República também avisou que um relaxamento na Páscoa seria como "morrer na praia". Acha que as palavras são adequadas?

Não sei se é bem um “morrer na praia”, sei que estamos no bom caminho, estamos a conseguir cumprir até agora o plano de desconfinamento, um plano cauteloso e que não é preciso muito para nós novamente descontrolarmos.

Se cada um de nós, se cada família, ou cada bolha, estiver com mais duas ou três pessoas na Páscoa, isso exponencialmente é brutal, nós misturamos uma data de bolhas que até aí eram independentes. Aí a transmissão cresce muito.

É preciso é termos a consciência de que temos de continuar a manter as nossas bolhas o mais restritas possível, porque só mais uma pessoa em cada uma bolha é uma união de infinitas bolhas, são rampas de crescimento de transmissão muitíssimo grandes.

É preciso sem dúvida limitar ao máximo os contactos e, quando estão juntos, estar de máscara. Uma coisa que também é muito difícil na nossa cultura quando envolve refeições, que é algo que muito nos caracteriza.

Então beijar a cruz no próximo fim-de-semana está completamente fora de hipóteses...

Sim, sim. Neste domingo, já havia algumas restrições nas cerimónias que envolveram o Domingo de Ramos. A igreja é um sítio onde as pessoas estão sentadas e podem ter melhores ou piores comportamentos como em qualquer outro sítio, mas beijar a cruz está fora de hipóteses.

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