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Entrevista a Geni Lloris

“O sínodo da Amazónia foi muito importante, mas ainda não acabou”

19 nov, 2019 - 16:04 • Filipe d'Avillez

A missionária Geni Lloris está há 11 anos na Amazónia e esteve em Roma para acompanhar o sínodo. Conta que mal acabaram os trabalhos houve membros que receberam ameaças de morte por denunciarem atropelos aos direitos humanos naquela região.

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Aos olhos do mundo o Sínodo da Amazónia chegou ao fim em outubro, no Vaticano, mas para a missionária espanhola Geni Lloris, que está há mais de uma década na floresta tropical, esse não é o caso.

“O Sínodo da Amazónia foi muito importante, mas ainda não acabou”, diz ela. “Começou em Puerto Maldonado, quando os povos pedem ao Papa que a Igreja os apoie na defesa do território e o Papa pede que se escute a voz deles e que eles ensinem aos missionários a estar junto com eles.”

E foi precisamente isso que aconteceu em Roma, insiste. “Um momento que queria referir foi quando, no dia 4, plantámos uma árvore no jardim do Vaticano, Edna, de um dos povos indígenas que estava connosco, foi quem plantou a árvore e conta como foi uma experiência muito forte juntar a terra da Amazónia à do Vaticano.”

Outro momento, explica, foi no início dos trabalhos sinodais, que começaram com uma oração na Basílica de São Pedro. “Quando viemos do Brasil trouxemos três canoas. Trouxemos também sementes, redes e um monte de material. Nem me perguntes como passou na alfândega, mas passou! Era um desejo que Deus tinha de que a Amazónia chegasse até ali. E conseguimos que entrasse tudo, passando por todos os protocolos do Vaticano.”

“Fizemos uma roda e até uma dança indígena e quando Francisco chegou ele não quis protocolo nenhum. Foi sair com ele da Basílica até à aula sinodal, naquela mistura, tudo junto, a canoa a abrir caminho, a rede e as imagens dos mártires que ao longo destes anos morreram pela defesa dos povos e do território. Ressoava a Igreja da Amazónia na Basílica de São Pedro”, acrescenta.

Uma vocação que vibra na selva

Missionária da Verbum Dei, Genni Lloris foi enviada para o Brasil há 23 anos e trabalhou durante muito tempo com a conferência episcopal local na pastoral universitária. Foi só mais tarde que visitou pela primeira vez a Amazónia e sentiu o apelo de se dedicar aos seus povos. “Fiz uma viagem pelo Alto Solimões, de mais de dez dias, descendo pelas comunidades, e na medida em que íamos às comunidades partilhávamos, tratávamos de assuntos, dos desafios que eles viviam. O povo aproximava-se de nós com muito carinho e celebrávamos com eles. E eu compartilhava o Evangelho de uma forma... Os meus colegas diziam que parecia que estavam a ouvir D. Hélder Câmara, tal era a forma como a palavra brotava do meu interior. E eu questionava porquê? Porque é que eu sinto vibrar desta forma a minha vocação?”

No começo da sua ação missionária apercebeu-se da dificuldade posta pelas distâncias. “A paróquia que atendíamos era de 35 comunidades e num ano eu só conseguia passar duas vezes pelas comunidades. Algumas comunidades ficavam a oito horas de barco, mais algumas horas de bajara”, diz, referindo-se à embarcação tradicional usada.

Foi aí, contudo, que encontrou a felicidade. “Hoje na Amazónia reconheço que estou mais feliz quanto mais longe estou, quando estou nas comunidades onde ninguém quer estar, onde ninguém estaria, é onde estou mais feliz, onde não tenho comunicação. Sinto que posso morrer ali, porque sou feliz. Para mim foi muito gratificante, depois de morar cerca de um ano com os Tupinambas, eles diziam ‘Genni, só o facto de teres estado connosco, teres comido o nosso peixe, teres-te banhado connosco no Tapajos, participado nas nossas festas, entendemos que Deus nos ama e que não nos abandonou’. Isso para mim é o mais gratificante.”

Embora um dos grandes temas do sínodo, para a imprensa, tenha sido a luz verde dada à ordenação sacerdotal de homens casados, Genni Lloris diz que a importância real dessa decisão é muito pouca. “Não tem importância porque na verdade nas nossas comunidades já os leigos celebram. O que é importante é que se reconheça o que nós já vivemos. O sínodo simplesmente deu voz ao que já vivemos na Amazónia e encorajou-nos a falar abertamente sobre o que vivemos, trazer para o centro o que já vivíamos lá, mas se calhar ninguém sabia, e dizer que a Igreja reconhece isso.”

“É verdade que nas nossas comunidades celebramos mas não temos a Eucaristia. Quando não temos a Eucaristia partilhamos o que temos: A Palavra e os alimentos. E é preciso perceber que nas primeiras comunidades cristãs era isso mesmo que se passava.”

Ameaças e assassinatos são o “pão de cada dia”

Outra das grandes vantagens do sínodo foi ajudar a colocar a Amazónia no mapa e no centro das atenções, alertando para problemas reais que passam ao lado do resto do mundo.

Para a missionária as principais ameaças são “os projetos de desenvolvimento brutal, o consumismo, e a exploração desenfreada da terra. As mineradoras, tanto as legais como as ilegais que estão a entrar, as madeireiras que estão a devastar, o narcotráfico que tem aberto grandes estradas, o tráfico humano. E tudo isso os povos resumem na defesa do território, porque o problema é que todos os grandes projetos, incluindo das hidroelétricas, desrespeitam o território dos povos indígenas.”

Trata-se, garante, de uma ameaça que vai bem para além da ambiental. “Mal saímos do sínodo colegas nossos foram ameaçados de morte, simplesmente por denunciar as empresas madeireiras que estão a entrar nos seus territórios. Mal saímos, Paulinho do Maranhão, do grupo dos Guardiões da Floresta, foi assassinado por madeireiros. Esse é o nosso pão de cada dia. Quando denunciamos lá vocês não sabem, mas muitos dos nossos colegas vão morrendo”, explica.

É por isso que a missionária se demorou na Europa antes de regressar à Amazónia, para viajar por Espanha e agora Portugal para alertar para esta situação. Esta terça-feira haverá uma conferência na Paróquia do Campo Grande sobre o tema, a partir das 21h.

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