Mário Lúcio Sousa

"Portugal deveria responsabilizar-se pela preservação do Tarrafal"

14 nov, 2019 - 16:00 • Maria João Costa

Ex-ministro da cultura de Cabo Verde, Mário Lúcio Sousa lançou o livro “O Diabo foi Meu Padeiro”, sobre o Tarrafal. O autor defende que a antiga prisão deveria ser Património da Humanidade.

A+ / A-

É um livro onde é tudo real, não há ficção. “O Diabo foi Meu Padeiro” de Mário Lúcio Sousa é um livro de “gratidão” a todos os presos políticos do Tarrafal.

Passados 45 anos do encerramento da cadeia em Cabo Verde, o escritor que já foi ministro da cultura deste país critica Portugal. Diz que deveria ser o governo português a assumir a preservação daquele património. Em entrevista, que poderá ouvir na sexta-feira no programa "Ensaio Geral", Mário Lúcio de Sousa revela que investiu o dinheiro do seu Prémio Miguel Torga na recuperação do Tarrafal - um “campo de concentração”, como lhe chama - onde o escritor viveu em criança.


“O Diabo foi meu Padeiro” é um livro que dedica uma lista imensa dos nomes. Estão todos identificado e todos passaram pelo Tarrafal. É um livro de homenagem a esses presos?

É um livro de gratidão da minha pessoa. Depois o livro foi se estendendo à minha aldeia, à minha vila e a Cabo Verde. Depois estendeu-se, de certo modo, a todos os países africanos de língua portuguesa, porque à medida que fui escrevendo fui tendo o entendimento e a profunda emoção de que devia uma grande parte da minha liberdade a esses portugueses que morreram no campo de concentração do Tarrafal, mas também a esses angolanos e guineenses.

Percebi que isso não era tão percetível para muita gente. Que também os angolanos pudessem dizer "uma parte da nossa liberdade, da nossa independência se deveu a muitos portugueses", que os guineenses dissessem o mesmo, e que também aqui em Portugal os portugueses tivessem noção de que o 25 de Abril é o corolário de um conjunto de esforços de vidas humanas que foram disponibilizados assim para a liberdade total.

O Mário Lúcio Sousa nasceu no Tarrafal. Sente que devia este livro à sua terra?

Sim. Acho que nem todos os escritores podem dizer isto, mas eu podia não ter escrito nunca nenhum livro e poderei não escrever mais nenhum. Acho que é o livro que todo o homem, todo e ser humano, gostaria de escrever. Ao mesmo tempo que é uma gratidão, é também uma dádiva. Quando eu digo que sou do Tarrafal, imediatamente a imagética vai para tudo o que aconteceu no campo de concentração do Tarrafal. Por coincidências da vida, eu vivi dentro desse campo durante 5 anos, de 1975 até 1980. Conheço todos os cantinhos. É como se parte do meu destino tivesse escrito para eu fazer o que acabei de fazer.

Nunca escrevi um romance que eu conhecesse o cenário tão bem, melhor do que todos os presos, porque eles estavam confinados. É um livro que eu devia à minha existência.

Este livro revive a História. São histórias reais todas as que conta?

Este livro não tem nada de ficção, não é um romance. 99% do livro é real, os nomes são reais, as datas de nascimento, os lugares, os factos e os acontecimentos. Posso em algum momento pegar num facto e poetizar. É uma pequena liberdade. No campo de concentração todas as histórias são livros de óbitos e um romance não pode ser uma lamentação. Tinha de ter formas de fazer a leitura agradável. A grande virtude desses homens era viver morrendo, mas viver. Eles desapegaram-se da vida, porque perceberam que qualquer apego dentro da prisão era mais uma morte

Não deixa de ser irónico que esta prisão do Tarrafal tenha sida construída, como escreve no livro, numa terra que se chamava Chão Bom.

Eu gosto de coincidências. Sobre o Tarrafal, eu fiquei fascinado com os nomes das pessoas. Os primeiros doze presos que vão à chamada "frigideira" eram o Tiago, Jaime, Pedro e Simão. Eles diziam que talvez por isso, escaparam do primeiro fuzilamento.

Quer explicar o que era a "frigideira"?

Eu quero é que as pessoas leiam o livro. É um livro que todos os portugueses deviam ler. Sejam salazaristas, comunistas, socialistas, de direita ou extrema-direita, reacionários. Todos! É preciso ler para entender o que é a "frigideira" e entender que ali havia portugueses, comunistas, republicanos, até monárquico, todo o mundo passou por esse sofrimento enorme.

Quem foi parar ao Tarrafal, a maioria dos presos, nem conhecia a ilha de Santiago. Alguns no início pensaram que estavam a chegar a uma ilha paradisíaca.

Dos presos, nunca ninguém tinha estado em Cabo Verde. Os primeiros portugueses saíram de Lisboa e não sabiam para onde iam, o livro conta muito bem isso. Chegaram ao Tarrafal e viram aquela praia lindíssima e dizem "morremos, estamos no paraíso?!". E depois começa o calvário.

O mais triste da História dos presos portugueses é que eles construíram a própria prisão. Há o expressar desse sentimento no livro. Construir a própria prisão é como esculpir o mundo de dentro para fora, para depois se enclausurar. Foi muito difícil.

Como escritor cabo-verdiano, mas também como alguém da terra e antigo ministro da cultura de Cabo Verde, é importante para si deixar para memória futura este registo, daquilo que aconteceu há 45 anos no Tarrafal?

Sim. O próprio livro diz, “porque é que os presos tomavam notas?”, porque a memória é a única coisa que nos diz que algo valeu a pena, seja qualquer tipo de memória. A falta de memória é uma injustiça para com as pessoas, para com as vidas humanas. Este é o primeiro livro que junta e comunga toda a História. É a primeira vez que num único volume está a História dos presos políticos todos. Isto é mais fácil para as pessoas entenderem, em vez de lerem em quarenta volumes e várias pesquisas. Leiam o livro! Ficam a saber tudo o que aconteceu no Tarrafal, mas também as ramificações, ao Estado Novo, às coisas que aconteciam por cá.

Pode explicar o título "O Diabo Foi Meu Padeiro"? Estes presos comiam o "arroz da sorte", como escreve, ou o pão que o Diabo amassou?

Muita gente na vida come o pão que o Diabo amassou, mas pode comprar na esquina! Agora ter o Diabo como padeiro, é uma continuidade desgraçada! Esses presos políticos não só comiam o pão, mas o Diabo estava lá de serviço como padeiro. Tem vários tipos de diabos, o diretor, o auxiliário, o chefe e todos de certo modo, amassavam o pão.

Até o médico que estava lá, não para curar, mas para passar certidões de óbito.

Esse médico era o Esmeraldo Pratas. O livro trata as pessoas com muito carinho, só mostra a dimensão humana de cada um. Por exemplo, os diretores que eram enviados para o Tarrafal, eram outro tipo de presos. O homem era arrancado daqui de Lisboa, da sua casa com a sua família, para ficar ali confinado ao Tarrafal. Era o serviço, era o ganha pão. Imagino aquele médico que estava lá e nem queria estar. Ele dizia que estava lá para passar certidões de óbitos e não era menos verdade.

A notícia do 25 de abril só chegou ao Tarrafal, passada uma semana. Essa notícia teve grande impacto

Como diz o livro o dia 25 de Abril chegou no dia primeiro de maio, a Cabo Verde. Chegou com atraso. Apenas um ou dois presos cabo-verdianos souberam do 25 de Abril porque um dos oficiais da tropa portuguesa sentiu muito medo e foi conversar com um dos presos que era acessível. Não eram criminosos, estavam lá por delito de pensamento e de opinião. Então desabafou porque estava com muito medo e o próprio preso teve medo de contar aos outros todos, porque poderia haver uma rebelião e poderia ser uma catástrofe. Ele guardou a notícia. O 25 de Abril não teve um impacto em Cabo Verde. As suas consequências chegaram uma semana depois. Mexeu com tudo. O próprio 25 de Abril tinha sido cozinhado em África. Vários dos capitães de abril tinham estado na guerra chamada Guerra Colonial. Havia uma ligação. Aquilo era um produto de uma luta comum.

Mesmo com atraso a notícia teve impacto?

Evidentemente. Na essência estão duas coisas, a luta contra o fascismo em Portugal e a luta contra o colonialismo em África. Essas duas ações foram muito complementares para revolução dos cravos e para libertação dos presos políticos

Como está o espaço da prisão que pode ser visitado? Acha que merecia outra dimensão para vincar a importância dessa memória?

Sim, nós em Cabo Verde temos essa consciência. Eu mesmo quando fui ministro da cultura lutei muito, dediquei partes importantes do orçamento do ministério da cultura. Eu financiei parte das obras com o meu próprio Prémio Miguel Torga para que o lugar tivesse a dignidade do simbolismo que carrega.

Acha que o Tarrafal tem hoje essa dignidade?

Durante a escrita deste livro eu percebi porque é que a coisa não está a acontecer. Não está a acontecer porque Portugal não está a saber lidar com algumas situações. Talvez seja muito cedo, mas quem mais devia investir no campo de concentração devia ser a República Portuguesa.

Porquê?

Morreram no campo de concentração quatro africanos e morreram 32 portugueses. Os africanos chegaram ao campo de concentração do Tarrafal em 1961, saíram em 1974. Os portugueses chegaram em 1936 e só saíram em 1954. Foram os portugueses que construíram aquela prisão. Deve, em termos proporcionais, Portugal assumir um papel importante na preservação naquela memória. Só depois viriam os angolanos que tiveram maior número de presos, os guineenses e os cabo verdianos. Conjuntamente deveriam conseguir que o local seja declarado Património Multinacional, já eu fiz com que fosse Património Nacional de Cabo Verde. Simbolicamente tem que se situar na área de um património multinacional e mais tarde ser uma candidatura multinacional talvez a Património da Humanidade, vai depender de vários fatores. Por mais que Cabo Verde faça, Cabo Verde não tem toda a dimensão do que é o campo de concentração. Há coisas que só Portugal saberá como lidar com elas e isso tem de passar por um debate nacional, aqui em Portugal.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

  • César Augusto Saraiva
    17 nov, 2019 Maia 13:04
    «Portugal responsabilizar-se»?!... HOMESSA!!!... Se já venderam o Fortim de São Vicente, por que não vendem também a prisão do Tarrafal?...

Destaques V+