08 abr, 2016 - 17:49 • Joana Bourgard (texto e fotos)
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O projecto de lei socialista que visa um regime de classificação e protecção de lojas históricas e entidades com interesse histórico e cultural, para efeitos de arrendamento, foi aprovado esta sexta-feira, no Parlamento, com a oposição do PSD e do CDS-PP.
A nova lei surge numa altura em que a baixa de Lisboa sofre profundas alterações, em grande parte devido ao crescimento do turismo. Nascem hotéis e restaurantes onde antes havia negócios de família.
A Renascença fez um mapa dos negócios que já desapareceram em Lisboa (mais de 30, só no espaço entre a Rua do Ouro até à Rua dos Fanqueiros) e recolheu testemunhos de comerciantes que resistem (mas não sabem até quando).
"EU VEJO O CARTEIRO A PASSAR E O MEU CORAÇÃO TREME"
Há 31 anos que Amândia Fernandes está à frente da Relojoaria Quartzo, uma loja com 50 anos de história na Rua dos Douradores.
A empresa onde trabalhava não resistiu ao 25 de Abril e Amândia, aos 30 anos, viu-se sem emprego. O marido, que já trabalhava no ramo da relojoaria, comprou o trespasse da Quartzo nos anos 70 para a mulher poder ter um emprego. Clientes não faltavam, era o "El Dorado", recorda.
"Trabalhava-se muito por livro. As pessoas de mais idade compravam a crédito lembranças para os netos que todos os meses iam pagando. Pessoas sérias". Hoje, o livro das dívidas já não existe e os mais novos preferem artigos de bijuteria.
Foi em Fevereiro deste ano que recebeu uma chamada do senhorio, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, a marcar uma reunião. "Esta reunião é para os conhecer como inquilinos e para vos comunicar que precisamos do espaço já", foi a primeira frase dita pelo advogado, lembra-se.
A Relojoaria Quartzo tem oito metros quadrados, está classificada nas Finanças como um "cubículo". Amândia perguntou à Santa Casa se não teriam um outro local para arrendar, mas a resposta foi negativa.
Desde o dia 22 de Fevereiro, Amândia espera uma carta terrível: "Eu vejo o carteiro a passar e o meu coração treme."
"OS JOVENS SÓ QUEREM SHOPPINGS"
João Fernandes, de 62 anos, é taxativo: "A baixa vai ter de viver do turismo e os outros vão ter que se virar por aí ou viver do turismo também".
Foi emigrante no Brasil durante 26 anos. Quando regressou, comprou o trespasse dos Armazéns Godinho, uma casa com 110 anos. Já foi notificado pelo senhorio: terá que sair até 18 de Maio.
Já consegui mudar uma das lojas para outro local na Rua dos Fanqueiros, mas duvida conseguir manter aberta a segunda loja. "As vendas estão fracas", "os jovens só querem shoppings" e os turistas não procuram o tipo de artigos que vende (só querem "comida e dormida").
Tem quatro empregados. Se a loja fechar, pelo menos uma pessoa fica desempregada. É céptico em relação à iniciativa parlamentar do PS. "Temos que mudar, não há solução."
"AINDA TRABALHO À EXPERIÊNCIA, MAS DESTA VEZ COM O SENHORIO"
"A história desta casa dá para um romance". É assim que Fausto Roxo, proprietário da Pastelaria Suíça, na Praça Dom Pedro IV, inicia a conversa.
Em 1947, foi bater à porta de uma das mais famosas pastelarias de Lisboa a pedir emprego. Negaram-lhe o trabalho por ser demasiado baixo para o serviço – "tu nem chegas à caixa", disseram-lhe (tem 1 metro e 56 centímetros).
Fausto insistiu: "Mas eu já me despedi do outro sítio, veja lá se arranja qualquer coisa". Lá ficou, à experiência, a servir às mesas. Hoje, ironiza: "Por cá ando e ainda ninguém me disse que já sirvo para o serviço. Que é o que se passa com o senhorio, também estou à experiência".
Fausto Roxo, hoje com 89 anos, comprou a Pastelaria Suíça há 27 anos e há 26 anos, altura em que o prédio foi comprado por Sousa Cintra, para vir a ser um hotel de luxo, que luta pela permanência da emblemática pastelaria no Rossio.
"Nos anos 50 houve uma corrida às pastelarias", conta. Lembra-se de haver quase 50 pastelarias na Almirante Reis. Apenas "sobreviveram duas ou três".
Acredita que está a acontecer o mesmo com os hotéis e restaurantes na baixa, mas alerta: "Cuidado, porque isto pode dar um grande trambolhão". Para Fausto, é certo que "o hotel não tem viabilidade se a Pastelaria Suíça desaparecer".
"OS TURISTAS PEDEM-ME PARA NÃO FECHAR"
Foi de duas turistas belgas que Custódia Pinto ouviu a frase "Lisboa está cada vez menos portuguesa".
Com 61 anos, é dona da última loja de especialidade de sirgaria e passamanaria da baixa. Lamenta, mas reconhece: "Os portugueses dos arredores de Lisboa já não vêm fazer nada à baixa".
Por enquanto, consegue manter o negócio e o senhorio não pretende vender o prédio. Para já. "Enquanto nos deixarem estar, vamos ficando, mas o prédio está praticamente vazio e não sei o que vai ser disto".
Tem clientes de várias nacionalidades. "Os turistas pedem-me para não fechar, como se isso só dependesse de mim", conta. Troca cartas e postais com eles, objectos que guarda cuidadosamente numa pasta. "Houve um casal da África do Sul que esteve sem vir a Lisboa durante dez anos. Quando voltaram trouxeram uma facturinha passada por mim."
Tem conversa para toda a gente e estima a relação com os clientes: "Há muitas pessoas na cidade que estão isoladas e precisam de convívio. O comércio tradicional faz muita falta".
Chegaram a convidar Custódia para chefiar uma loja num centro comercial. O ordenado compensava, mas recusou a oferta. Não se imagina numa loja onde "as pessoas entram a saem sem dizer nada, se roubarem os apitos à porta dão sinal e não há contacto".
"A NOVA LEI DAS RENDAS FOI PÉSSIMA"
Fernando Lobo do Vale, de 84 anos, já era dono da Drogaria Loreto e em 1990 decidiu expandir o negócio e comprou o trespasse da Drogaria Central, na Rua da Prata.
Com o fecho da Loreto, no final de 2015, não perdeu tempo quando soube que o senhorio do edifício da Rua da Prata queria vender o prédio para um hotel.
Levou de imediato o caso para tribunal, em defesa da drogaria com 95 anos. Crítico da nova lei do arrendamento ("foi péssima"), lamenta que não haja protecção das lojas históricas.
Fernando defende que a Câmara de Lisboa devia ter mais consideração pelos antigos comerciantes e recorda um episódio em que foi notificado pela junta de freguesia por ter um tapete à porta. "O tapete estava lá há vários anos para evitar quedas dos clientes devido ao mau estado da calçada, mas a junta só quer saber se pagamos a taxa", conta.
Fernando tem também um armazém arrendado, num edifício da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que levou um aumento de 500%. "Sendo que a Santa Casa não paga IMI", critica.