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Entrevista Renascença

Rafael Gallo: "As histórias de perda instigam-me a escrever"

03 nov, 2023 - 19:50 • Maria João Costa

“Rebentar” (Ed. Porto Editora) é o mais recente livro do escritor vencedor do Prémio Saramago, a sair em Portugal. É uma obra que retrata a história de uma mãe cujo filho desapareceu aos cinco anos. "Rebentar" e o livro “Dor Fantasma” formam, para o autor, um “díptico” sobre a perda.

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Foto Wilian Olivato
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Já passou mais de um ano desde que Rafael Gallo venceu o Prémio Saramago, mas o escritor brasileiro continua a sentir que ainda “não retomou o pé no chão”. Diz que o prémio mudou a sua vida e, sem ele, não estaria certamente a publicar um segundo livro em Portugal.

Depois de “Dor Fantasma” (ed. Porto Editora), com que ganhou o Prémio Saramago, Rafael Gallo edita agora “Rebentar” (ed. Porto Editora), um livro escrito antes de “Dor Fantasma”, mas que não estava publicado em Portugal. Em entrevista à Renascença, o autor explica que há uma ligação entre os dois livros. Formam para si, um “díptico”, sobre a perda e da dor.

Rafael Gallo escreveu em “Rebentar” sobre a dor de uma mãe cujo filho desapareceu quando tinha cinco anos. 30 anos depois, esta mãe vive um dilema. Sente que quer ter o direito ao esquecimento e seguir em frente, mas a esperança não a deixa despir o luto do coração.

Que história é a da Ângela que conta neste “Rebentar”?

“Rebentar” é essa história da Ângela, que é a mãe de um filho desaparecido. O Filipe tinha cinco anos quando ela o deixou sozinho pela primeira vez, e foi aquela situação de deixar uma criança, poucos minutos, sem supervisão, e ela desapareceu. Nunca mais se soube o que aconteceu com ela.

Mas a história, na verdade, começa depois de 30 anos de desaparecimento e de um movimento de luto, de tentativa de reencontro, em especial por parte da Ângela, mas também do Octávio, o pai.

Passado esse tempo ela decide, ou percebe, que o melhor para ela, ou que a decisão dela é encerrar esse período de luto e de esperança para a acatar que realmente esse filho está perdido. Ela se dá o direito de recomeçar a própria vida, que ficou obviamente muito prejudicada por essa perda.

A Ângela sente que tem o direito ao esquecimento? De fechar o capítulo do luto do filho desaparecido?

Essa é ótima expressão, um bom jeito de colocar, porque eu acho que talvez não seja exatamente o direito ao esquecimento, mas o direito a delimitar a divisão entre o que é memória, o que é esquecimento, e o que é uma expectativa. Esse filho Felipe, que ainda poderia estar por ser recuperado, foi o Filipe que existiu, que ela teve por cinco anos.

Agradece a muitas mães com filhos desaparecidos. Precisou de fazer trabalho de campo para preparar a escrita do livro?

Sim. Quando tive a ideia para contar a história da mãe de um filho desaparecido, pensei, bom, nunca vivi isso, eu sequer filhos tenho. Não conheço ninguém que passou por essa experiência, não havia ninguém próximo. Então, eu sabia que teria de aprender muitas coisas, muitos detalhes.

Em especial nos romances temos de entrar muito no universo da personagem, nos detalhes desse universo. Por mais que todo mundo tenha, no seu imaginário algumas imagens do que seria ter um filho desaparecido, a verdade é que as pequenas sutilezas daquilo em geral, a gente não pensa!

A gente pensa que a mãe sofre, que ela vai na televisão, que procura pelo filho, que sai às ruas, talvez chamando pelo filho, gritando nome. Mas, por exemplo, no primeiro dia, depois de ele desaparecer, essa mãe vai para casa e dorme à noite, ou não? Ela passa a noite inteira ainda procurando? Em que momento ela dorme pela primeira vez?

E até outras particularidades que eu precisava muito aprender. Eu tive essa sorte de ter essa generosidade de algumas mães, em especial uma delas, que teve uma filha desaparecida e me contou muito da vida dela, basicamente, tudo o que acontece e que eu acho que é a matéria-prima do livro. Esses detalhes são fundamentais para a construção dessa história, ainda que ficcional.

Este é um livro em que o leitor sabe desde o início que esse filho desaparecido não volta. Porque quis deixar já isso revelado?

Quando a história começa, eu digo que o filho não é encontrado, porque isso, e não é “spoiler” nenhum, é revelado nas primeiras páginas, esse filho não é reencontrado. Eu não queria que as pessoas estivessem a ler com essa expectativa dessa pergunta, será que vai ser encontrado ou não? Ou trouço para que seja!

Eu sei que essas histórias suscitam isso. Sempre que há um desaparecimento, seja na realidade, ou na ficção, a gente espera saber, e que o mistério seja resolvido. E para esse livro, para essa história, não me interessava isso.

Já está dado desde o começo que não há mistério nenhum, ele não é encontrado. O que interessa é ver o processo dessa mãe, da Ângela, de refazer essa relação com o filho, refazer essa vinculação, que é uma espécie de reconstrução desse amor materno. Só que agora de uma outra maneira, para que seja justamente voltado para Filipe que existiu, e que ela teve consigo, mas não mais para essa ilusão de um Filipe que ainda poderia estar de volta, mas nunca está.

Escreve que um filho desaparecido é um filho que morre a cada momento. Mas na realidade aqui não há uma morte física. Há esse dilema no coração desta mãe que participa em associações de mães com filhos desaparecidos?

Eu acho que voltamos à sua pergunta, sobre o direito ao esquecimento. É muito importante, porque é essa a tensão que acho que implica o desaparecimento. Se há uma morte, e eu nunca vou julgar se é melhor ter um filho morto, ou desaparecido, mas eu acho que se há uma morte, ela, ao menos, traça uma linha, uma delimitação do quanto foi vivido, o mais que não será vivido, e do quanto pode ser lembrado, e é desejado que se lembre para que não cai no esquecimento e do quanto não é mais possível criar memórias novas.

Acho que no caso do desaparecimento, essa fronteira fica sempre borrada. Nunca chega o momento em que essas mães, esses pais, ou quaisquer pessoas próximas podem realmente delimitar que não, essa criança, se ela desapareceu aos 10 anos de idade, por exemplo, teve aqueles 10 anos, e depois não teve mais nada. Tem alguma coisa, mas ao mesmo tempo não tem, porque também não dá para dizer, não, aos 15 anos, ou aos 20 anos, ela fez uma viagem com a gente. Não!

Você tem tudo que pertence à ausência, todo o pior lado da ausência, mas você não tem aquilo que a ausência definitiva da morte pode proporcionar que é dar um certo descanso, digamos, ou esse direito, a parar de acreditar na existência da pessoa.

O desaparecimento não te dá esse direito, então, você tem de ficar lidando com tudo que é da ausência, mas também lidar com essa questão de que pudesse estar presente. Isso é terrível.

“Rebentar” é um livro anterior a “Dor Fantasma”. Mas ambos falam da dor. Sente esse diálogo invisível entre os livros?

Esses dois livros, na minha conceção, formam uma espécie de díptico. Tem esse traço comum de lidar com a perda. É uma perda que talvez não seja uma perda do eu, da própria identidade como um todo, mas daquele ponto fundamental dessa identidade.

Tanto o Rómulo, no “Dor Fantasma”, quanto Ângela no “Rebentar” perdem uma parte de si ou da própria vida, mas é justamente aquela parte que demole tudo o resto de quem elas são. Elas não conseguem continuar a serem quem são, embora no caso de “Rebentar”, essa procura é uma história de uma restauração e uma história um pouco mais iluminada do que “Dor Fantasma”.

Essas histórias de perda, muito emocionais, elas me instigam a escrever. Justamente porque são momentos em que você realmente vai mais na essência, ou no âmago daquilo que a pessoa é.

Quando você tira aquilo que é muito fundamental para ela, parece que nesse momento a gente consegue explorar mais a fundo do que essa pessoa é feita. Acho que isso me interessa muito numa história. Descobrir as personagens e também na minha vida pessoal, do que elas são feitas. O que realmente importa para elas? O que é que norteia a vida delas e que se fosse subtraído, o que é que essa pessoa teria?

Claro, que na vida real isso é sempre ruim, mas na ficção é um processo interessante. Todo o esforço para reconstruir, ter que iniciar uma trajetória é muito intenso.

O que mudou para si com o Prémio José Saramago?

Desde o prémio, muita coisa tem acontecido. Eu confesso que me sinto até agora pouco siderado! Eu ainda não sinto que minha vida retomou o pé no chão.

Eu não acho que vá retomar, como era antigamente, porque é como se fosse um novo chão para mim. Mesmo esta conversa agora, ela não existiria se não fosse esse prémio. Mesmo o "Rebentar" que é um livro que não tem uma relação direta com prémio, ele, obviamente, só foi publicado agora em Portugal por causa do prémio.

Só tive a chance de reescrevê-lo como reescrevi, e agora no Brasil também está sendo lançado em simultâneo, uma nova versão do livro, tudo isso se deve ao Prémio Saramago, com certeza!

Não acho que haveria interesse da editora, por exemplo, em refazer o livro como eu quis se não fosse esse prémio. Acho que tudo, provavelmente, daqui em diante, na minha vida, pelo menos o que é da literatura, e talvez muitas outras questões, acho que vai ter um pouco esse traço, esse fio invisível que liga ao Prémio José Saramago.

Quando eu pensar mesmo daqui, 20, 30 ou 40 anos, aconteça o que acontecer, eu vou saber que esse Rebentar, ter chegado em Portugal, ser lido, poder ser discutido aqui, isso foi por conta do Prémio José Saramago. Se houver um próximo livro meu e que ele seja lançado aqui, e que eu, se tudo correr bem, possa ter essas conversas, esses encontros, essas atividades aqui, isso, sem dúvida nenhuma vou poder conectar com o Prémio Saramago.

Vou ter uma espécie de dívida com este prémio para sempre, inclusive pelo que representou para mim como pessoa. Emocionalmente, o facto de ser uma pessoa realizada, de me recuperar como escritor, de me introduzir aqui em Portugal, que é um país onde me sinto tão bem acolhido, acho que vai haver fios invisíveis desse prémio ligados, amarrados, a tudo o que acontece na literatura daqui para frente na minha vida. Eu fico extremamente feliz com isso, na verdade.

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