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​Correntes d’Escritas: “um jardim literário” que homenageia Luís Sepúlveda

22 fev, 2021 - 15:11 • Maria João Costa

O Festival Literário Correntes d’Escritas da Póvoa de Varzim decorre nos dias 26 e 27, com 145 convidados em sessões digitais. Aos 22 anos, este festival presta homenagem a um dos seus criadores, o escritor Luís Sepúlveda que morreu de Covid-19. “Um Jardim Literário à Beira Mar” é a reportagem da Renascença para ouvir hoje depois das 23h00.

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Reportagem Correntes d
Ouça aqui a reportagem da jornalista Maria João Costa, com sonoplastia de André Peralta

Há 22 anos que é assim. No mês de fevereiro, a cidade da Póvoa de Varzim é palco do Festival Literário Correntes D’Escritas e este ano não será exceção, mas numa versão mais reduzida e através da internet.

O festival, que reúne escritores de expressão ibérica, decorre entre sexta-feira e sábado, dias 26 e 27, e vai contar com 145 participantes, uma centena deles escritores.

Adaptado ao tempo de pandemia, o Correntes d’Escritas presta este ano homenagem a um dos seus fundadores, o escritor chileno Luís Sepúlveda que morreu vítima de Covid-19, no ano passado, meses depois de ter estado na Póvoa de Varzim.

Há um ano, com o som do mar da Póvoa em fundo, e num dia de sol, como é habitual durante o festival, o escritor Luís Sepúlveda dizia à Renascença que “o Correntes d’Escritas colocou a Póvoa de Varzim no mapa cultural europeu e um pouco também no mapa da cultura do mundo”.

O autor de “O Velho que lia Romances de Amor” lembrava que já lhe tinha acontecido “na Feira do Livro de Guadalajara ou na Feira do Livro de Buenos Aires, na Argentina”, outros escritores perguntarem-lhe: “como se faz para te convidarem para ir à Póvoa de Varzim?”. Isto levava Sepúlveda a sorrir e a garantir que havia “algo bonito” e que confirmava que as Correntes tinham “algo muito diferente dos outros festivais.”

Luís Sepúlveda, que morreu aos 70 anos vítima de Covid-19, depois de ter passado pela última edição do festival da Póvoa de Varzim em 2020, e ter levantado a dúvida se haveria mais infetados no festival, foi um dos responsáveis pela criação do evento.

Francisco Guedes, que encontrou na cidade que viu nascer Eça de Queirós o palco das Correntes d’Escritas, recorda que Sepúlveda lhe pediu, num jantar em Gijon, que “encontrasse uma vila com um porto de mar” para organizar um evento literário como o que o escritor chileno já realizava na cidade espanhola.

Depois de ter batido à porta de Matosinhos e não ter conseguido uma resposta, Francisco Guedes foi à Póvoa. Luís Diamantino, o vereador da Cultura, disse-lhe então que avançasse. “Esta conversa foi a 19 de outubro”, lembra Guedes a quem sobravam pouco mais de três meses para por de pé o festival que teria lugar em fevereiro. E assim foi, começou logo a pegar no telefone e a fazer convites.

“Liguei para o Luís Sepúlveda para saber se ele poderia vir, liguei para Luanda para o Manuel Rui, para o João Ubaldo Faria no Brasil”, enumera Francisco Guedes que convidou também o cabo-verdiano Germano Almeida. Hoje, o Prémio Camões não falha um festival e, à Renascença, confessa que criou “uma relação afetiva com o Correntes d’Escritas”.

Das primeiras edições recorda que “eram muito poucos”, escritores e público. Agora, quando olha para a plateia que enche o Cineteatro Garrett pensa: “Quem diria?!”. A rir diz mesmo que a Póvoa “se tornou intelectual” e no seu tom de sempre bom humor, o escritor Germano Almeida afirma mesmo que “as pessoas vêm ouvir os escritores cada um dizer a sua asneira”.

Vinte e dois anos, mais de 650 autores

Organizado pela autarquia da Póvoa de Varzim, desde 2000, o festival já somou mais de 1.500 intervenções e juntou mais de 650 autores. Um deles, o poeta Ivo Machado que participa desde a primeira edição revela que há “um segredo das gentes da Póvoa e da Câmara Municipal” que está por detrás do sucesso, ano após ano, deste festival literário. “Têm uma capacidade e uma maneira de saber receber” que fazem os escritores se sentirem em casa.

Outro segredo deste festival é confirmado por Luís Diamantino. O vereador da Cultura e um dos corações das Correntes d’Escritas assegura que no festival “não há estrelas”. “A única estrela é o livro”, explica o autarca, que assim espelha a forma como todos os autores, mais jovens ou consagrados são recebidos de igual forma.

O escritor Valter Hugo Mãe, um dos “cidadãos honorários da Póvoa”, como lhe chama Luís Diamantino, participa há muito nas Correntes. Morador do concelho vizinho de Vila do Conde confirma esse lado de “paridade” que há entre os autores. “Há autores que são mais visíveis do que outros, ou mais amados, têm mais público, mas a Póvoa recebe-os a par. Isso é a marca da dignidade das Correntes d’Escritas”, explica o autor de “O Filho de Mil Homens”.

Uma ilustração de adeus a Sepúlveda.“Fiquei ligado a ele a um nível difícil de pôr em palavras"
Uma ilustração de adeus a Sepúlveda.“Fiquei ligado a ele a um nível difícil de pôr em palavras"

“Um Jardinzinho de literatura” à beira mar

Pela Póvoa de Varzim, ao longo dos anos, já passaram nomes grandes da literatura, desde os brasileiros Rubem Fonseca ou João Ubaldo Ribeiro, a presenças nacionais como Eduardo Lourenço ou Hélia Correia. Esta última, é uma autora pouco dada a festivais, mas gosta de ir à Póvoa de Varzim.

“É realmente aquilo a que chamo uma festa do livro”, explica Hélia Correia. A autora que também já venceu um Prémio Camões diz que se tornou “adotiva” deste festival literário que considera ser “um jardinzinho de literatura”, único.

Durante o festival os escritores ficam no mesmo hotel, partilham todas as refeições de manhã à noite, viajam no mesmo autocarro para as sessões e isso cria um ambiente que muito referem como singular.

Até mesmo autores como Gonçalo M. Tavares, que diz “não ser muito apto socialmente” e que costuma passar pelo festival de forma rápida, sublinha essa relação que se cria entre gentes do mesmo ofício. O autor de “Uma Viagem à Índia” lembra que foi ali que nasceu a sua amizade com Hélia Correia.

Também o escritor Afonso Cruz, muito viajado e habituado a participar em vários festivais internacionais, diz que nas Correntes “há uma verdadeira tertúlia”, e ao contrário de outros eventos do género, “os escritores passam muito tempo juntos”.

Um dos autores que já fez uma das sessões de abertura é Álvaro Laborinho Lúcio, que na Póvoa diz já se sentir em casa. “Vimos para um sítio ao qual sentimos que pertencemos”, afirma o ex-ministro da Justiça. Laborinho Lúcio faz questão também de sublinhar a “grande liberdade” que há nas sessões onde os autores falam. “As pessoas têm toda a possibilidade de dizer exatamente o que pensam, nos termos em que pensam, permitindo um debate alargado com o público”, indica o autor.

Nesta comunhão com o público, lado a lado com nomes consagrados da escrita há aqueles que se estrearam na Póvoa de Varzim quando davam os primeiros passos na literatura, é o caso de Patrícia Portela que ainda ri quando se recorda do que sentiu quando subiu pela primeira vez ao palco do festival.

“Foi a primeira vez que eu falei para uma plateia de ilustres, sábios, filósofos, pensadores, escritores. E é absolutamente assustador! Eu não tinha percebido a dimensão e vim com o nível de distração que me é conhecido. Não me lembro, se quer como cheguei ao palanque! Lembro-me de no meio daquilo procurar uma cara amiga e só via ‘Ah, o Eduardo Lourenço! Ah! O Rui Zink!!’ É absolutamente aterrador. Não me lembro de nada do que disse!”, diz a rir Patrícia Portela, a escritora que preparou durante semanas a sua intervenção.

Aos autores é dado, pela organização do Festival, um tema da mesa em que participam. Nem sempre esse tema é seguido, mas para muitos é pretexto para criarem a sua própria narrativa. O autor João Tordo refere que esse é um lado único deste festival literário, em que os autores “não vêm para serem entrevistados”. Nas Correntes d’Escritas, diz à Renascença o Prémio Saramago, os autores “vão dar uma fatia de si” ao público.


A leitora que tira férias para ir ao Correntes

E o público é uma parte importante da equação deste festival. De ano para ano, há caras novas, há outros que são já frequentadores habituais. É o caso de José Almeida e Silva que desde 2006 diz que vai a todas as sessões, durante os vários dias de festival. Na Póvoa encontra um ambiente “fantástico”, “sobretudo na relação que de estabelece com os escritores, dentro e fora da sala”.

Também entre o público do Cine Teatro Garrett está Maria de Lurdes Sá que tira sempre férias para ir às Correntes d’Escritas. Para esta poveira, o festival representa “um mergulho em pleno inverno”, uma espécie de “retiro” literário que lhe permite enfrentar a rotina.

Outra das dimensões importantes e sempre sublinhada por todos os escritores com quem conversamos são as deslocações dos autores às escolas da região. Aos estudantes tentam injetar o bom vírus da leitura, conta a escritora Raquel Patriarca que diz em tom irónico que os autores “vão com essa missão de os traumatizar, no bom sentido” os alunos. Para esta autores de livros infantis, “é nessa idade que eles percebem que a leitura é um ato de resistência e liberdade”.

Os livros, as estrelas deste festival estão sempre disponíveis durante o festival. Há anos que o livreiro Alfredo Costa muda a sua livraria para o festival durante os dias das Correntes d’Escritas. Este poveiro preocupa-se em ter disponíveis todos os livros dos participantes e conta-nos que é ali que muitas vezes nascem novos leitores. São compras geradas pelas sessões do festival refere: “Alguns clientes chegam aqui e dizem, ouvi fulano, achei simpático, fala bem, se calhar também escreve, eu vou comprar livros dele!”.

Correntes d’Escritas marcam o ano editorial

Na Póvoa de Varzim durante o festival são lançados dezenas de livros, há muito que as Correntes marcam o ano editorial, reconhece a editora Maria do Rosário Pedreira que explica que “em agosto” já começam a “dizer aos organizadores os livros que pensamos publicar durante o mês de fevereiro para a Manuela Ribeiro já poder preparar os convites”.

E quem é Manuela Ribeiro de quem fala Maria do Rosário Pedreira e também o editor Manuel Alberto Valente que diz ser “o pilar deste festival”. Manuela Ribeiro, atual diretora do Cineteatro Garrett, é desde a primeira edição quem pensa o festival, faz os convites, é “uma espécie de mãe” refere o editor Manuel Alberto Valente.


No meio da correria de bastidores do festival, encontramos Manuela Ribeiro, sempre bem-disposta e de sorriso largo que nos explica que um pouco como se monta um evento desta dimensão há mais de duas décadas. Já agraciada em 2019, pelo Presidente da República com o grau de Comendador da Ordem do Infante D. Henrique, Manuela Ribeiro revela: “As Correntes d’Escritas já estão dentro de mim que já não tenho de pensar muito!”.

A rir, diz que “tudo é pretexto para pensar nas Correntes” e admite que pensa “o ano inteiro” no festival. Referindo que se trata de um trabalho de equipa, explica que “é uma espécie de construção de um puzzle”.

Há 22 anos que faz este puzzle que na opinião do escritor José Luís Peixoto se define com a palavra “amizade”. Para o autor de “Morreste-me”, o encontro da Póvoa “é um espaço onde todos os que chegam são recebidos com vontade” e que tem espaço para “crescer nessa estrutura da amizade e do bem-querer”.

Essa amizade já chegou mesmo a ganhar outras formas é o que recorda a editora Maria do Rosário Pedreira que conta que foi ali que nasceu o seu casamento com o editor Manuel Alberto Valente.

Também ali se conheceu o casal de escritores Karla Suarez e José Manuel Fajardo, tornando assim este um festival de afetos para o qual o escritor Onésimo Teotónio Almeida faz todos os anos quilómetros para participar.

Teotónio Almeida, professor em Boston, nos Estados Unidos, atravessa sempre o Atlântico para estar na Póvoa de Varzim desde as primeiras edições. É normalmente o escritor que participa na última sessão das Correntes e é conhecido pelo seu bom humor que mobiliza sempre muito público.

Este ano, o público tal como os autores vão participar na edição 22 das Correntes d’Escritas à distância. Nos dias 26 e 27 de fevereiro mais de uma centena de escritores vão participar em várias iniciativas digitais do festival por onde ao longos dos anos passou uma boa parte da história moderna da literatura portuguesa e de expressão ibérica.

“Um jardim literário à Beira Mar” é uma reportagem de Maria João Costa, com sonorização de André Peralta que pode ouvir na Edição da Noite deste segunda-feira, depois das 23h00.

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