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Abusos. "Temos de conquistar a confiança nas Comissões Diocesanas, só assim é que a Igreja sai bem disto"

12 mar, 2023 - 08:25 • Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo ( Ecclesia)

Depois do relatório da Comissão Independente, José Souto Moura, presidente da equipa de Coordenação Nacional das Comissões Diocesanas de Proteção de Menores, defende um caminho de "transparência", "que só tenha como prioridade o interesse das vítimas".

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Entrevista a José Souto Moura - 12 março 2023
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"Está tudo em movimento". José Souto Moura, presidente da equipa de Coordenação Nacional das Comissões Diocesanas de Proteção de Menores, adianta em entrevista à Renascença e à Agência Ecclesia que a Igreja “só sai bem do problema” dos abusos sexuais se “for capaz de conquistar a confiança de todos”.

O juiz jubilado afirma que "essa confiança tem de se conquistar com uma atuação que crie nas pessoas a convicção de que há finalmente transparência" e que só tem "como prioridade o interesse das vítimas".

O responsável admite que a decisão das Comissões Diocesanas passarem a ser constituídas apenas por leigos pode também contribuir para o aumento do capital de confiança e pode motivar mais denúncias. “Um fator que pode ajudar, para que realmente todos os casos sejam tratados, é dizer às vítimas que não se vão queixar a ninguém do clero, ou seja, da Igreja institucional”, sublinha.

Por outro lado, Souto Moura apela à denúncia e diz que tem de “acabar a cultura de não falar destas coisas desagradáveis”. "Esse tabu deve terminar", reforça.

O presidente da Equipa de Coordenação Nacional das Comissões Diocesanas diz que “ainda não há pormenores acerca da competência” da nova comissão, ou grupo específico anunciado pela Conferência Episcopal, mas deixa um aviso em relação ao tratamento de casos no seio da Igreja: “Quem pensar que o tratamento destes casos pode sair do âmbito das Comissões Diocesanas está muito enganado, porque não pode ser uma organização civil a tratar disso”.

Nesta entrevista à Renascença e à Agência Ecclesia, Souto Moura, que também integra a Comissão de Proteção de Menores do Patriarcado de Lisboa, deixa a confirmação de que “na lista [da CI] que tem a ver com a Diocese de Lisboa constam 25 sacerdotes, dos quais só cinco estão vivos”. “Não se espere que vá haver uma grande revolução neste campo”, adverte.

A Coordenação Nacional vai analisar a lista de alegados abusadores disponibilizada pela Comissão Independente? A documentação vai ser pedida às Comissões Diocesanas?

As comissões diocesanas dependem da opção que cada bispo tomar. A Comissão do Patriarcado de Lisboa, a que eu pertenço, já tomou a decisão de facultar a lista dos sacerdotes que têm a ver com o Patriarcado de Lisboa, e já a facultou a todos os membros da Comissão.

E, portanto, a partir daí se verá como é que a nível nacional, depois, cada Comissão decide?

Cada uma decidirá a nível nacional, mas eu não mando nos bispos, só coordeno as comissões. Admito, perfeitamente, que já haja uma orientação da Conferência Episcopal sobre esse assunto.

Que intervenção poderá ter a coordenação nacional? Considera importante, para não haver diferenças de tratamento das situações, existir a informação/documentação com procedimentos a adotar pelas dioceses nas situações de alegados abusos?

A atuação das 21 comissões está orientada por uma base comum, que já tem mais de um ano, e que eu elaborei com os meus colegas da equipa de coordenação, e essa base comum, diz, para quem não tiver regulamentos próprios - porque há muitas comissões que já tinham e têm regulamentos próprios - mas quem as não tiver orienta-se pela base comum. E mesmo quem as tiver tem que as adaptar a base comum para haver a tal uniformidade para não haver disparidade de comportamento.

Nos últimos dias criou-se alguma confusão no espaço público, nomeadamente com o debate sobre medidas cautelares ou suspensões que têm significados diferentes na opinião pública, ou no Direito Canónico. É importante tentar serenar o ambiente e passar uma mensagem de determinação, esclarecendo estes conceitos e também dando como exemplo as medidas que já estão a ser tomadas por algumas dioceses?

Acho que é muito importante dar conhecimento de que está tudo em movimento. Eu falo da Comissão de Lisboa, e na Comissão de Lisboa já se substituiu e está-se em curso de conseguir um novo coordenador para a Comissão, porque o elemento que coordenava que era D. Américo Aguiar, bispo auxiliar de Lisboa, vai sair porque serão só leigos a tomar conta das comissões. Em relação a medidas como, por exemplo, suspensão de clérigos, suponho que se queria referir a clérigos...

Sim, a pergunta vai no sentido de se perceber se a terminologia muito própria da igreja, nesta matéria, prejudicou a comunicação?

Eu acho que prejudicou a comunicação, porque há alguma confusão de termos e do significado desses termos. Fala-se em suspensão, mas em Direito Canónico suspensão e eu até posso ler aqui o artigo 62 do “Vade-Mécum” que foi feito pelo Dicastério da Doutrina da Fé, e esse artigo é muito claro. Diz: ‘Observa-se frequentemente que ainda está em uso a antiga terminologia da suspensão ad divinis para indicar a proibição de exercer o ministério imposta como medida cautelar a um clérigo. É bom evitar tal designação, bem como a de suspensão ad cautelam, porque na legislação em vigor a suspensão é uma pena e, nesta fase, ainda não pode ser imposta. A forma correta para designar tal disposição será, por exemplo, afastamento ou proibição do exercício público do ministério.

"Está tudo em movimento para mexer nisto de uma vez por todas"

Acha que há ambiente mediático para as pessoas pararem, serenarem e perceberem que estamos a falar de coisas diferentes quando se calhar, depois, a resposta vai ao encontro das preocupações? Porque um afastamento temporário como aconteceu já, nalguns casos, responde às preocupações das pessoas.

Sim. Eu acho que a terminologia a usar mais correta e para evitar a tal suspensão ad cautelam ou ad divinis é afastamento. É um afastamento temporário, mas é um afastamento temporário que, apesar de ser temporário e de não ser uma sanção, isso é que é importante, porque se fosse uma sanção, era da competência de Roma e sendo o afastamento pode ser do bispo. É importante ter em conta uma coisa que tenho visto um bocadinho esquecida e os senhores bispos, se calhar, não se têm pronunciado de maneira mais clara.

Fazendo um paralelismo com a lei civil, no fundo, será a constituição de um arguido para sua própria defesa?

Não tem nada a ver com isso. Tem a ver eventualmente com a medidas de prevenção, que acontecem no processo penal. São medidas estritamente processuais não penais, não de sanção. São judiciais porque é um juiz que as impõe, no caso civil. Porque pode haver perigo de fuga, perigo de prejuízo de conservação da prova, pois podem estar a ser destruídas provas se o arguido estiver em liberdade e, além disso, há arguidos que podem continuar a cometer crimes.

Essas três razões que são preventivas, são medidas que no Penal correspondem às medidas cautelares do Civil, e, portanto, pode estabelecer-se um paralelo entre isso e este afastamento. Agora, é importante, é que se diga que esse afastamento acho que pode ser determinado pelos senhores bispos.

Nalgumas intervenções públicas, podemos ouvir e ler que os padres acusados seriam culpados até prova em contrário. Tem faltado racionalidade face à grande carga emotiva que todas estas questões geram?

Desculpe, mas deixe-me perguntar: quando disse padres acusados, são os padres mencionados na lista da Comissão?

Sim, refiro-me a essa situação.

Mas não são acusados, nem suspeitos. São designados pelas pessoas que foram ouvidas. Em 90% dos casos, serão pessoas que os indicaram anonimamente sobre anonimato. E claro que são pessoas que vão desencadear necessariamente uma investigação para se saber qual o fundamento dessa indicação por parte das vítimas. Eu não acredito que as vítimas acusem de uma coisa com esta gravidade sem fundamento e, portanto, dou o benefício de que estão a falar verdade e é um facto que aconteceu. Agora, há um princípio básico do processo penal português e de todo o direito sancionatório, e é disso que estamos aqui a falar, quer civil, quer canónico, e esse princípio básico é tão básico que está na Constituição e chama-se presunção de inocência.


Tem faltado racionalidade face à grande carga emotiva que todas estas questões geraram ou se tudo isto se precipita por causa dessa confusão de que vínhamos a falar ainda há pouco?

Eu acho que a reação do público é natural e é necessariamente emotiva. E deixe-me dizer-lhe que na apresentação na Gulbenkian do relatório da Comissão independente, a descrição que foi feita de vários casos que foram denunciados e foram descritos pelas vítimas contribuiu imenso para que as pessoas ficassem realmente muito impressionadas, se é que não estavam já. Porque quando se fala de abusos, qualquer adulto percebe de que é que se está a falar. Pode ser mais ou menos grave, mas é sempre muitíssimo grave.

Mas considera que não se devia ter feito esse relato?

O que eu acho é que esse relato devia ter sido feito a título exemplificativo. Talvez tenha sido prolongado demais. É isso que eu acho, mas também percebo que a preocupação era criar um impacto, para que as pessoas ficassem realmente motivadas dentro daquilo que possam fazer para combater este malefício, que infelizmente irá acontecer mais vezes.

A Conferência Episcopal determinou que as Comissões Diocesanas sejam constituídas apenas por leigos competentes nas mais diversas áreas de atuação. Isso poderá fazer aumentar o capital de confiança das alegadas vítimas de abusos?

Há, eventualmente, um défice de conhecimento do que são as comissões. Porque as comissões trabalham sem fazer grandes exposições públicas e as pessoas não sabem que as comissões já têm especialistas nas várias áreas que interessam. Eu posso dizer que, por exemplo, a Comissão de Lisboa tem uma psicóloga do nível da Rute Agulhas, do melhor que há, tem outra psicóloga, tem psiquiatra, tem um ex-diretor da Polícia Judiciária, tem um ex-diretor-geral da PSP. Espero não me estar a esquecer de ninguém.

Aqui a questão é que a coordenação dessas comissões deixa de ser confiada, como acontecia nalguns casos, a um sacerdote ou um bispo auxiliar, e passam a ser constituídas apenas por leigos. Em que é que esta medida vai ajudar as comissões a ganhar a confiança de quem sinta necessidade de denunciar?

O que eu acho é que as pessoas devem todas denunciar, vítimas e quem tem conhecimento da existência dessas vítimas. Devem denunciar e a comunidade deve estar motivada para esse trabalho. É fundamental, porque é uma mentalidade e uma cultura que duraram anos ou séculos e que é uma mentalidade comum à sociedade: é na Igreja, nos ginásios, nas escolas, nos seminários.

Portanto, esse tabu de não falar nessas coisas desagradáveis deve terminar, aliás, essa cultura era de tal maneira difundida que no próprio Código Penal, até há muito pouco tempo, no crime de violação, só poderia haver processo se a vítima se queixasse. Podia haver uma mulher, ou homens, que preferia o silêncio, que não se falasse disso do que haver um processo. Isso passou a ser crime público, ou seja, qualquer pessoa que saiba que isso aconteceu pode fazer a denúncia.

Esta cultura tem de acabar. Um fator que pode ajudar, para que realmente todos os casos sejam tratados, é dizer às vítimas que não se vão queixar a ninguém do clero, ou seja, da Igreja institucional. Não é que eu desconfie de uma Comissão pelo facto de ter lá um clérigo, mas da parte das vítimas é possível que se sintam muito menos à vontade ou não acreditem que o processo vai ter um desenvolvimento capaz.


"Temos de ter a preocupação de conquistar confiança nas Comissões Diocesanas e nos outros organismos, porque só assim é que a Igreja sai bem disto"

Isso poderá motivar mais as pessoas a denunciar?

Eu acho que pode motivar, sobretudo se as pessoas tiveram experiências negativas nesse campo. Há 40 anos ou há 50 anos, não excluo que se tenham queixado - ou até mais recentemente - e que não tenham visto o processo seguir o caminho que esperavam.

A nova comissão que os bispos anunciaram, o “grupo específico” para escuta das vítimas, vai passar a responder diretamente à Coordenação Nacional e não à Conferência Episcopal. Como deve ser lida esta decisão?

A decisão não é a da criação de uma nova comissão. Houve quem propusesse que a Comissão Independente deveria continuar e, sobretudo, que as Comissões Diocesanas ficassem reduzidas, por exemplo, a medidas de prevenção.

Ora é importante que se saiba que as Comissões Diocesanas não são uma criação portuguesa nem da Igreja portuguesa. O Papa Francisco determinou, por outras palavras, ordenou que todas as dissesses tivessem uma comissão de proteção de menores e não só de menores, mas também de adultos vulneráveis, porque há pessoas que têm doenças psíquicas que também são abusadas.

A própria Conferência Episcopal Portuguesa também deu orientações nesse sentido. Portanto, já nem depende da Igreja portuguesa, foi uma criação de Roma, foi uma determinação que tem de ser cumprida. Portanto, quem pensar que o tratamento destes casos pode sair do âmbito das Comissões Diocesanas está muito enganado, porque não pode ser uma organização civil a tratar disso.


Esse grupo específico teria mais a ver com a escuta das vítimas do que propriamente o tratamento canónico das denúncias?

Nós tivemos, na sexta-feira, uma reunião da equipa de Coordenação Nacional e, na quinta-feira, da Comissão do Patriarcado, de que eu também faço parte, em que tudo isso foi abordado. Ainda não há pormenores acerca da competência e do que este grupo vai fazer, especificamente. Aquilo que se disse é que esse grupo foi criado para acolher e acompanhar as vítimas, vai estar em coordenação com a equipa nacional ou, pelo menos, com a minha pessoa.

Neste momento, a minha posição é de aguardar mais alguns elementos que me digam como é que vai ser essa coordenação, porque isso depende da competência desse grupo. Convém não falar em comissão, porque seria mais uma e a confusão fica completamente instalada. É simplesmente um grupo, mais nada.

É um grupo específico, com uma função específica, que eu entendo como um grupo para acolhimento e acompanhamento. Agora, mais uma vez, esse grupo vem na linha e é coerente com a ideia de que não há clérigos nas comissões, isto é, a ultrapassar as dificuldades que possam existir, resultado da desconfiança das vítimas em relação ao próprio clero.

A Comissão Independente enviou 25 casos para o Ministério Público, nas Comissões da Igreja esse número é superior. Isso significa que estamos a falar de espaços temporais de análise diferentes? Às Comissões Diocesanas chegam casos mais recentes?

Acho que é errado comparar os números e o trabalho da Comissão Independente com o das Comissões Diocesanas. Em primeiro lugar, porque a Comissão Independente foi uma comissão para estudo, para levantamento de casos. Portanto, é uma comissão com propósitos históricos e sociológicos - acho que fez muito bem em existir, foi o presidente da Conferência Episcopal que a criou e subsidiou. Porquê? Porque ninguém pode combater um mal sem conhecer a extensão desse mal.

A Comissão Independente fez-nos um grande favor ao dizer: “o que aconteceu foi isto e é isto que não pode continuar a haver”. Agora, as Comissões Diocesanas e este grupo que vai funcionar em colaboração com a equipa de Coordenação Nacional, estão evidentemente virados para o futuro, em receber as notícias, as denúncias ou as queixas que venham a surgir.

Em relação a casos que já são do conhecimento da Comissão Independente, como por exemplo, a lista dos 100 sacerdotes, evidentemente que vão ter de atuar, vão analisar a situação e depois vão orientar o caso para o Ministério Público, se não estiver tudo prescrito ou o agente falecido.

Posso dizer que, por exemplo, na lista que tem a ver com a Diocese de Lisboa constam 25 sacerdotes, dos quais só cinco estão vivos. Não se espere que vá haver uma grande revolução neste campo.

Falou há bocado dos 25 casos que a Comissão Independente mandou para o Ministério Público, mas também é bom que se saiba que só seis deram origem a um processo, que está pendente. Foi um passado negro, não há dúvida, mas a minha preocupação é o futuro.

Exagerou-se então, na apresentação do número de 100 sacerdotes, até a julgar pelo que nos disse agora sobre Lisboa?

A Comissão Independente tinha de fazer isto. Não sei se tem os dados todos sobre se [os sacerdotes] estão vivos ou não, embora tenha elementos que lhe permitam supor que nem todos estarão vivos. De qualquer maneira, fez bem em apresentar esta lista.

Para lá das polémicas das listas e suspensões, há um conjunto de recomendações que será preciso levar em consideração. Existe essa preocupação sobre uma abordagem estrutural à questão, no futuro?

Está tudo em movimento para mexer nisto de uma vez por todas. E acho que todos temos de ter a preocupação de conquistar confiança nas Comissões Diocesanas e nos outros organismos, porque só assim é que a Igreja sai bem disto. E essa confiança tem de se conquistar com uma atuação que se vai conhecendo, embora não se anda aí a fazer grande publicidade do assunto, e que crie nas pessoas a convicção de que há finalmente transparência nisto tudo. E, sobretudo, que a atuação não seja uma atuação ambígua, que só tenha como prioridade o interesse das vítimas. A proteção do clero, que pode ser necessária em muitas situações - falei há bocado na presunção de inocência, por exemplo -, vem depois.

Por último, uma das críticas que se tem feito à Igreja é a de falta de empatia para com as vítimas e a defesa da instituição. O que vai ser necessário fazer para que a perceção da sociedade mude?

Quanto a essa perceção e essa suposta falta de empatia, eu nunca vi isso, com todos os clérigos que contactei, responsáveis, bispos, etc. É preciso que as pessoas se convençam que quem está nas comissões atua sem ambiguidade, pode até reagir ao curso de certos processos que desencadeou - são as comissões que mandam para o Ministério Público e que mandam para a diocese ou arquidiocese, para o processo canónico. As Comissões devem criar nas pessoas a certeza de que estão a atuar sem ambiguidades e com transparência.

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