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Reportagem

O que é que a Igreja já está a fazer no combate aos abusos de menores?

03 mar, 2023 - 09:20 • Ana Catarina André

Nos últimos meses, de norte a sul do país, padres, leigos e consagrados têm feito formação na área do cuidado de menores. No Patriarcado de Lisboa, existe também um projeto-piloto em quatro paróquias da diocese.

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O que está a Igreja a fazer no combate aos abusos?
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Sofia Marques conduz mais uma sessão de formação na área do cuidado de menores e pessoas vulneráveis, desta vez no centro social de Paredes, na diocese do Porto. Mais de 100 pessoas, sobretudo catequistas, mas também dirigentes dos escuteiros e padres, reunem-se para saberem como se pode prevenir o abuso sexual de crianças e os maus-tratos.

Diante de uma plateia atenta, entre a qual se encontra o bispo auxiliar do Porto D. Vitorino Soares a coordenadora-executiva do projeto Cuidar, uma iniciativa que nasceu no Centro de Estudos da Faculdade de Ciências Humanas, da Universidade Católica, começa por abordar os princípios que orientam a resposta da Igreja no combate aos abusos sexuais de menores. Explica também o que é violência sexual.

Nos últimos três anos, Sofia Marques, que é também coordenadora do Serviço de Proteção e Cuidado de menores e adultos vulneráveis da Companhia de Jesus, já deu mais de 40 formações a padres, leigos e agentes pastorais que trabalham com crianças, um pouco por todo o país. “É sobretudo uma formação de sensibilização”, explica a jurista, dizendo que estas ações têm sido feitas a pedido de dioceses, congregações religiosas, colégios, entre outras instituições.

Naquela manhã, como em todas as sessões, Sofia Marques dedica uns minutos a falar sobre os mitos associados aos abusos sexuais na Igreja Católica.

“Não há nada que prove que o celibato é uma das causas”, refere, entre vários pontos. E continua: “O maior mito é dizermos ‘aqui não’. Não se trata de nos tornamos polícias uns dos outros, mas de reconhecermos que aqui, também, pode haver práticas pedagógicas menos adequadas, que fazemos coisas que achamos que são boas e não são, e que também pode haver [casos]. Isso põe-nos com outro olhar”.

Na mesma sala, junto de si, está a psicóloga Joana Arsénio, que explica quais são os sinais que ajudam a perceber que um menor pode ter sido vítima de um crime sexual. “Quando a criança está em sofrimento normalmente pode haver um desinteresse por atividades antes apreciadas”, explica. “Gostava de ir ao futebol e agora não quer? Isto é um grande sinal de alerta. O que é que aconteceu para de repente haver esta desmotivação, quando era uma coisa que lhe dava alegria?”, diz a especialista, explicando que este tipo de comportamento é transversal a vários tipos de maus-tratos.

Entre questões e partilhas, Sofia Marques deixa também algumas recomendações práticas. “Na confissão das crianças e jovens da catequese, o que temos de garantir é privacidade. Nada obrigada a que a criança esteja invisível e fora do espaço”, afirma.

À Renascença, a jurista de 44 anos explica que a formação começa com “um enquadramento não só espiritual e evangélico, mas também conceptual do que são os maus-tratos e os abusos”. Conhecendo o tema, aborda-se depois os sinais de alerta, adianta a especialista.

“Há um exercício de elaboração de um mapa de riscos. [Este] parte da análise de consciência de que na minha função e na minha organização existe o risco de, em determinados espaços, interações, atividades, os adultos cuidadores não o serem.” E sublinha: “A partir daí conseguimos propor medidas preventivas”.

Projeto-piloto no Patriarcado de Lisboa

A juntar a estas ações de formação, algumas paróquias começam também a desenvolver ações dedicadas a esta temática do cuidado de menores. A Catequese do Patriarcado de Lisboa está a implementar um projeto piloto em quatro paróquias da diocese.

“Tendo em conta que trabalhamos com crianças, achámos que era muito importante darmos um passo em frente. Mais do que reagir, achámos que era importante agir por prevenção”, explica o padre Tiago Neto, diretor diocesano do setor da catequese, acrescentando que a iniciativa pretende também capacitar os catequistas para “olhar para o contexto da criança”.

Por enquanto, pretende-se que as quatro paróquias inseridas nesta iniciativa-piloto (Sintra, Benedita, Parque das Nações, em Lisboa, e mais recentemente Telheiras, na mesma cidade) criem grupos de trabalho que desenvolvam e apliquem um manual de boas práticas.

“O objetivo também é que haja formação para que as pessoas saibam como agir e tratar algum caso que possa aparecer”, refere o sacerdote, dizendo que se inspiraram no sistema de proteção e cuidado da Companhia de Jesus e nas indicações da Conferência Episcopal Portuguesa.

Na paróquia do Parque das Nações, onde há cerca de 650 crianças na catequese, existe já uma equipa de seis pessoas dedicadas ao tema.

“Começámos por frequentar uma formação [dinamizada pelo setor da Catequese do Patriarcado de Lisboa] e tentámos implementar na paróquia um sistema de cuidado e proteção de menores. Fizemos um primeiro draft de um código de conduta que será aplicado a todos os adultos envolvidos no contacto com crianças”, diz Elsa Lima, uma das catequistas envolvidas no projeto, contando que, recentemente, houve também uma ação de sensibilização na paróquia em que participaram 80 pessoas que acompanham crianças.

“Percebemos que há determinados comportamento que não se pode ter. Por exemplo, quando há um problema, não levamos a criança para determinado sítio para ter uma conversa com ela – falamos logo ali. Também não há portas fechadas, nem abracinhos”, afirma Elsa Lima, frisando que não se trata de transformar os catequistas em “pedras de gelo”.

Como explica o pároco do Parque das Nações, Paulo Franco, o objetivo da iniciativa é “proteger as crianças, de forma que, em caso algum, corram perigo, e por outro lado, sintam que são tidas em conta para se sentirem em segurança caso isso não suceda no seu âmbito de vida, noutros contextos e instâncias”. E sublinha: “É muito importante sentirmos que a nossa missão não se confina às paredes de âmbito paroquial”.

Ao abordar o tema e ao dar formação, muitos pais dizem sentir-se mais confiantes. É o caso de Sofia Monteiro e Rui Custódio, pais de três crianças, com idades entre os 4 e os 12 anos, que estão também envolvidos na organização do campo de férias da paróquia.

“É um tema que nos preocupa, mas acima de tudo sentimos muita segurança ao saber que a paróquia onde estamos inseridos tratou o assunto com muita sinceridade, numa tentativa de proteger as crianças e de assumir que, de facto, as coisas existem, mas que estamos a tentar fazer algo”, diz Sofia Monteiro.

O marido acrescenta: “[Com a formação], estamos também mais elucidados sobre como conversar com os nossos filhos sobre comportamentos de que possam ter sido alvo e agir de uma forma que os proteja mais”.




Se foi vítima de abuso ou conhece quem possa ter sido, não está sozinho e há vários organismos de apoio às vítimas a que pode recorrer:

- Serviço de Escuta dos Jesuítas , um “espaço seguro destinado a acolher, escutar e apoiar pessoas que possam ter sido vítimas de abusos sexuais nas instituições da Companhia de Jesus.

Telefone: 217 543 085 (2ª a 6ª, das 9h30 às 18h) | E-mail: escutar@jesuitas.pt | Morada: Estrada da Torre, 26, 1750-296 Lisboa

- Rede Care , projeto da APAV, Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, que “apoia crianças e jovens vítimas de violência sexual de forma especializada, bem como as suas famílias e amigos/as”.

Com presença em Lisboa, Porto, Coimbra, Braga, Setúbal, Santarém, Algarve, Alentejo, Madeira e Açores.

Telefone: 22 550 29 57 | Linha gratuita de Apoio à Vítima: 116 006 | E-mail: care@apav.pt

- Comissões Diocesanas para a Protecção de Menores . São 21 e foram criadas pela Conferência Episcopal Portuguesa.

São constituídas por especialistas de várias áreas, recolhem denúncias e dão “orientações no campo da prevenção de abusos”.

Podem ser contactadas por telefone, correio ou email.

Para apoiar organizações católicas que trabalham com crianças:

- Projeto Cuidar , do CEPCEP, Centro de Estudos da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica

Se pretende partilhar o seu caso com a Renascença, pode contactar-nos de forma sigilosa, através do email: partilha@rr.pt

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