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“Sonho que o comboio anda aí e com máquinas a partir tudo”. Famílias que vão perder a casa por causa do TGV

27 nov, 2023 - 07:00 • Miguel Marques Ribeiro

Em pequenas povoações dos arredores de Coimbra, a notícia chegou como um comboio desgovernado que chocou de frente com a vida pacata dos habitantes. O projeto da Alta Velocidade põe em risco 64 habitações do concelho.

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Famílias que vão perder a casa por causa do TGV. Veja o vídeo

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Em junho, chegou a notícia que abanou a vida até então pacata de Manuel Vaz: um troço do traçado escolhido para o comboio de Alta Velocidade passa em cima da casa que construiu na Quinta das Cunhas, povoação rural nos arredores de Coimbra. Desde então que os seus dias são vividos em angústia.

"Penso mil e uma coisas. Penso onde é que eu vou viver se por acaso a casa for abaixo. Penso onde é que eu faço uma casa, penso se compro uma casa, penso que se vou para longe o resto dos terrenos, as nossas coisinhas que temos aqui à volta, fica tudo ao abandono. É muito complicado", desabafa.

As noites passaram a ser mal dormidas. "Até de noite eu sonho que o comboio já anda aí e com as máquinas a partir tudo. É difícil".

Uma povoação que vai deixar de existir

Manuel Vaz vive na povoação de Quinta das Cunhas desde que nasceu. Primeiro com os pais, depois na sua própria habitação, que construiu há quarenta anos.

No entanto, o traçado da 1ª fase do projeto de Alta Velocidade, que vai ligar o Porto a Soure e que a Agência Portuguesa do Ambiente validou a 16 de novembro, não põe em causa apenas a tranquilidade deste habitante, que se prepara para entregar os papéis para a reforma no início do próximo ano.

É toda a povoação, com cerca de uma dezena de habitações e mais de 20 habitantes, que fica em risco.

Fiz a casa com todo o amor e não estou muito interessado em trocá-la por nada.

“A Quinta das Cunhas deixa de existir”, resume com amargura o antigo supervisor da Bimbo, enquanto conta que os habitantes da aldeia que terão que se mudar para outro local assim que as obras começarem. São vinte pessoas que se vão embora, mas podem chegar a 21. “Fica uma casa simplesmente lá em cima que é de uma viúva. Ela diz que também não fica cá”, garante Manuel Vaz.

Ele foi surpreendido pela notícias como todos os seus vizinhos. “Ninguém estava a contar. Ouvíamos falar no traçado de TGV que ia arrancar, mas longe de nós pensarmos que ia passar aqui nesta zona. Foi muito duro”, relata.

"Foi um balde de água fria. Fiquei muito triste”

Só no concelho de Coimbra - e embora o número possa ser inferior, conforme a Renascença adiantou - deverão ser afetadas 64 habitações.

A estação Coimbra-B vai sofrer remodelações profundas e na secção que liga a Taveiro, a linha do Norte vai ser quadriplicada, para aumentar o fluxo ferroviário.

É precisamente aí, a pouco mais de três quilómetros, que está outro foco de famílias afetadas pelo projeto.

Sílvio Heleno vive em Reveles desde que nasceu, há 71 anos, e não admite mudar-se. Foi informado pelo namorado de uma vizinha de que o projeto de Alta Velocidade vai obrigar a demolir a sua casa. "Foi um balde de água fria. Fiquei muito triste."

“Eu não troco a minha casa por nada. Fiz a casa com todo o amor e não estou muito interessado em trocá-la por nada. E com esta idade…”, afirma.

O pior é também o impacto que a situação pode ter sobre a mulher, que tem uma doença crónica e de quem Sílvio é cuidador: “Não é fácil ir viver para outro lado. Isso só vai complicar mais a saúde dela, não é?”, questiona o bate-chapas, que ainda não acredita que lhe possam pôr em perigo a moradia que construiu em 1984.

Uma comunidade dividida

A passagem da linha pela vila de Reveles, zona rural nos arredores de Coimbra, motivou a criação de um abaixo-assinado, exigindo que fosse feita uma mudança do traçado.

Um dos subscritores foi Filipe Lopes, que está a ver o projeto de construção da nova habitação ir por água abaixo, pois o terreno onde investiu as suas economias faz parte do traçado atravessado pela linha.

No entanto, este enfermeiro que trabalha em Coimbra garante que há “uma passagem que é só de floresta, que não afeta ninguém”.

A ser desviado para oeste, para fora da vila, a Alta Velocidade podia ser construída com menos impactos, assegura. “Não havia ruídos, não havia barulhos, não havia habitações deitadas abaixo."

Quem não concorda com esta hipótese é José Fonseca, um agricultor que vive a norte da localidade, fora da zona afetada.

O empresário lamenta que alguns conterrâneos queiram atirar a linha para cima da casa dos vizinhos. “Isto demonstra egoísmo da parte das pessoas”, sentencia.

Se o itinerário proposto no abaixo-assinado for aprovado, a nova linha passaria a dividir a meio o terreno agrícola de que é proprietário, com prejuízos para o seu negócio.

Número de passageiros deve atingir os 16 milhões por ano

Independentemente do desfecho, há largas dezenas de pessoas que estão a ser afetadas pela construção da linha de Alta Velocidade, uma iniciativa considerada estratégica para o país.

O projeto, que vai ligar Lisboa e Porto numa hora e um quarto, tem um investimento previsto de cerca de 4900 milhões de euros, a realizar até 2030.

Espera-se que, depois de pronto, o número de passageiros transportados entre as duas maiores cidades do país chegue a 16 milhões por ano.

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