03 fev, 2023 - 17:14 • Fábio Monteiro
O debate sobre aos gastos da Jornada Mundial da Juventude (JMJ 2023), que irá ocorrer em Lisboa, na semana de 1 a 6 de agosto, ainda não acabou. Mas, ao mesmo tempo, a obra avança.
Parte da estrutura daquela que será a nova ponte sob o rio Trancão já foi erigida. Por estes dias, qualquer curioso que passe pelo Parque Tejo consegue ver também: há camiões a transportar as vigas para o local onde ficará o palco principal, apesar de o desenho e o preço final ainda estar a ser alvo de discussão.
Aqueles que moram ou trabalham nas redondezas, não são alheios à controvérsia que corre no país. Há muitos críticos do investimento, que defendem que o Governo e a Igreja Católica deviam ter sido mais “poupadinhos”, “comedidos com o dinheiro dos contribuintes”, mas também existem apologistas do projeto.
Sahaj Dave, de 43 anos, está animado com a construção. O cidadão indiano, que mora em Portugal há quatro anos, tem quatro apartamentos em Lisboa, dois dos quais colados à zona principal que irá acolher a JMJ. Graças ao programa de Autorização de Residência para Atividade de Investimento – os chamados Vistos Gold -, possui passaporte português.
“Antes não existia vedação [do terreno]. Tinha sido cortada em alguns pontos. As pessoas costumavam deitar para lá entulho, lixo, estava em muito mau estado. Vinham cheiros de lá”, lembra Sahaj Dave, à Renascença.
Na perspetiva do investidor indiano - que é hindu, mas promete visitar o recinto da JMJ - o grande fruto do evento católico será as mudanças que irá legar no bairro. “Não sei o que pretendem fazer aqui, mas é um bom sítio. Podem desenvolver qualquer coisa aqui, como um espaço de desportos, jardim ou até um campo de golfe.”
A reabilitação do Parque Tejo levará à valorização dos apartamentos na zona, admite ainda Sahaj Dave. “Eu tinha um T1 aqui. Comprei-o por 280 mil e qualquer coisa, vendi-o por 250. Agora estão a vendê-lo por 350 mil. Vendi este T1 e comprei o T2 por 350 mil. E agora valorizou quase 100 mil euros.”
Leandro Freire mora no mesmo bairro que Sahaj Dave há um ano e meio. À Renascença, conta que, quando comprou o seu apartamento, o agente imobiliário fez questão de usar a JMJ como argumento de venda.
"O corretor falou na época. Agora, acho que vai ficar mais bonito. Acho que o resultado vai ser bom para quem mora para cá. Vai valorizar. E mais um parque perto é sempre bom, para a gente que tem crianças. Para a gente aproveitar como família", diz o cidadão brasileiro.
Numa das laterais do Parque Tejo, junto à Estação de Tratamento de Águas Residuais de Beirolas, há estaleiros do Centro de Recolha de Resíduos do Parque das Nações. O que pode parecer estranho para quem tem memória história do bairro. Mas tem explicação: antes de ser Parque Tejo, o espaço que vai acolher o recinto principal da JMJ foi o aterro sanitário de Beirolas.
José Luís trabalha no Centro de Recolha de Resíduos do Parque das Nações há três anos. E afirma que, depois das obras, “vai ficar bonito”. Todavia, ressalva: “É muito dinheiro para uma semana.”
“Podiam fazer um palco mais baratucho. O Papa vem cá uma semana, está aqui um ou dois dias. Acho que é demasiado. Podiam ser mais poupadinhos. Costuma-se dizer: 'eu com o casaco do meu pai sou um homem, com o dinheiro dos outros faço tudo e mais um par de botas, desde que tenha o dinheiro'. E não é justo. Podiam usar esse dinheiro para ajudar pessoas quem não têm casa. Há tantos sem-abrigo nas ruas”, defende.
O trabalhador municipal considera que todos os envolvidos na polémica “ficam mal na fotografia”. Enquanto católico, nota: “A Igreja devia ter dito: não, vocês vão gastar dinheiro nisto? Não, um palco destes? Não, não precisam disso. Uma coisa mais modesta.”
Manuel e Lucinda Santana caminham lentamente em torno da vedação que delimita a área do Parque Tejo. O casal de idosos, que mora em S. João da Talha e tem por hábito vir passear à beira do rio, espera uma “grande obra” que sirva para futuro; uma construção que não fique ao abandono. “Podia-se fazer uma coisa mais modestinha, porque a gente anda toda a fazer vida de modesto.”
As obras no Parque Tejo de preparação para JMJ começaram em março de 2022. E uma das primeiras preocupações quanto ao local escolhido foi que os terrenos estivessem “altamente contaminados” – suspeita levantada pela associação ZERO. A organização da JMJ 2023 e a Câmara Municipal de Lisboa (CML) afirmaram, então, que essa preocupação não tinha fundamento.
À Renascença, Lucinda volta a levantar esse problema. E revela: “Isto tinha químicas. Quando eles começaram a escavar isto, nós andamos aqui à volta e sentimos os olhos a arder. E as pessoas dos prédios também se queixaram. Os poços ainda estão abertos, para deitar as químicas cá para fora.”
Um pouco mais à frente aparece Carlos Rodrigues. O geólogo, que trabalha no setor da construção como especialista, leva nas mãos duas latas de refrigerante que acabou de apanhar – e quer levar para um ponto de reciclagem. A margem do rio está repleta de resíduos, toalhitas higiénicas em decomposição.
Carlos lembra que, em tempos, já existiu ali um passadiço de madeira – mas que não foi mantido e acabou por apodrecer. E aponta para o lixo.
Para o geólogo, a opção de construir o palco num dos pontos elevados do terreno é “estranha”. “Acho muito ousado estar a fazer um palco em cima de um aterro.” Existe o risco de se perfurar uma bolsa de metano – um gás explosivo.
“A coisa que me parece mais chocante é a permanência deste palco. Para mim, era simplesmente reflorestar tudo. Preferia ver isto cheio de árvores, não ao abandono”, afirma Carlos Rodrigues.
Carlos Vieira mora na zona da Portela há 45 anos. E veio passear à beira Tejo.
O idoso de 75 anos ainda se recorda quando o Parque Tejo era um aterro sanitário, da construção da Ponte Vasco da Gama, do nascer da Expo 98 e todas as polémicas da época. Por isso mesmo, diz que não se deve dar assim tanta atenção às controvérsias do momento presente.
Para Carlos, a JMJ é um evento que sai “caro” ao Governo e à Igreja, um caso de “novo riquísmo”. Mas afirma: “Há tanto fumo, nevoeiro, no meio disto tudo.”
Há muitas questões por esclarecer, em particular em torno de dinheiros. Daqui a 20 anos, porventura, a narrativa em torno do Parque Tejo seja outra, com palco gigante ou não, estará, muito provavelmente, esquecida, nota o idoso.
“Isto é como foi a Expo 98, no fim de contas. É aproveitar, fazer qualquer coisa. Já ninguém se lembra hoje do que foi dito sobre a Expo. Temos muitos 'Velhos do Restelo'”, atira.