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entrevista à renascença

Isabel Allende. Escrever “é como cozinhar: há que agarrar os ingredientes e saber misturá-los”

26 jan, 2022 - 15:08 • Maria João Costa

A escritora chilena tem novo livro. “Violeta” é um romance entre pandemias, que começa com a gripe espanhola e termina na Covid-19. Isabel Allende denuncia que a atual pandemia fez aumentar a violência doméstica na América Latina e fala na iminência de uma crise económica.

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“O mundo está cheio de histórias a flutuar no ar como balões. É uma questão de as agarrar”, diz a escritora Isabel Allende. Uma dessas histórias é a de Violeta, a personagem principal que dá título ao livro que acaba de lançar em Portugal, com a chancela Porto Editora.

Em entrevista à Renascença, a autora fala deste romance sobre uma mulher que nasceu durante a gripe espanhola, atravessou várias guerras e chegou aos dias de hoje, à pandemia de Covid-19.

Para este livro, a autora chilena nascida no Peru, cidadã norte-americana desde 2003, foi beber muito à sua experiência pessoal – desde a morte da filha, à vivência dos regimes militares – para construir a personagem de Violeta.

Nesta conversa tida a partir do sótão onde escreve os seus livros, nos Estados Unidos, admite que tem uma “ligação sentimental com Portugal” e revela que terminou já um outro livro “sobre refugiados da América Central”. Antevê ainda a crise económica que se seguirá à atual pandemia.

Isabel Allende denuncia ainda o agravar da violência doméstica na América Latina, tendência percetível desde o início da pandemia.


“Violeta” é um romance que dá a conhecer a história de uma mulher muito determinada que nasce no meio da pandemia de gripe espanhola. A atual pandemia despertou a ideia para este livro?

Não. O que me motivou a escrever o romance foi a morte da minha mãe, que faleceu antes da pandemia. Se ela tivesse vivido um bocadinho mais teria chegado a esta pandemia de 2020, porque ela nasceu em 1920. Quando morreu, quis escrever uma história sobre ela, mas não consegui porque estava muito próxima da minha mãe emocionalmente. Decidi antes escrever ficção.

Começo todos os meus livros a 8 de janeiro e comecei este livro a 8 de janeiro de 2020 quando ainda não tínhamos pandemia. Ela foi declarada em meados de março, então ocorreu-me, quando já tinha escrito alguma coisa, que seria poético começar com a outra pandemia.

Há neste “Violeta” algumas referências a Portugal. Escreve que Violeta não é mestiça, mas "tem antepassados portugueses e espanhóis. Ela vive também na Casa Grande das Camélias, onde há um pátio com azulejos portugueses. Portugal está presente na sua escrita?

A ideia de Portugal está em diversos livros meus. A verdade é que, quando foi rodado “A Casa dos Espíritos”, o meu primeiro romance, todos as cenas exteriores foram filmadas em Portugal. Como fui a Portugal e tenho bons editores aí, tenho uma ligação sentimental com Portugal.

A personagem de Violeta tem desde cedo a noção de que a mãe e as tias vivem num tempo passado. Ela é uma mulher com desejo de independência, de uma vida diferente.

As ideias que tem vêm sobretudo de uma percetora de origem inglesa, que é como sua professora nos primeiros anos de vida, e depois de um casal de professores rurais que também a fazem ver o mundo maior e mais amplo do que a sua família que é conservadora, católica, patriarcal. Muito atrasada intelectualmente. Ela beneficia de sair desse ambiente também porque consegue manter-se sozinha. É capaz de ganhar dinheiro e não tem de depender da sua família, nem de ninguém. Isso faz com que seja mais forte.


Eu vivo em inglês e todo o meu trabalho é em inglês, mas escrevo em espanhol. Então, para recuperar a riqueza da linguagem, a cor do meu idioma, leio poesia.


Mas também escreve neste livro que Violeta trabalha, ganha dinheiro e sustenta a família, mas que isso “é ofensivo para o marido”. Ela foi uma pioneira?

Dependia das classes sociais. Na classe alta as mulheres não trabalhavam, nem tinham uma educação demasiado esmerada. Muito poucas chegaram a ser profissionais. A ideia nessas classes sociais é que as mulheres eram educadas para serem mães, esposas, donas de casa e no caso de trabalharem, tinham de ter um trabalho humilde que não competisse com o marido.

Sentiu isso na pele?

Quando eu estava a terminar o ensino secundário, não se pensava que eu iria para a universidade. Eu comecei a ter aulas de secretariado, porque nunca pensei que poderia ser algo mais do que uma secretária. À uma mulher não se colocada a hipótese de ser médica, pensava-se antes que seria enfermeira. A ideia era sempre um bocadinho menos do que o homem. A cultura propiciava isso. Havia algum complexo feminino também. Depois veio a onda feminista, as mulheres profissionais, saímos à rua e tudo mudou.

“Violeta” é um romance de figuras femininas fortes, desde logo Violeta, que ganha o seu dinheiro, mas também personagens como Teresa Rivas, a mulher que usa calças, que batalha pelos direitos das mulheres e pelo voto. Foram mulheres que tiveram um papel determinante que deve ser lembrado?

Sem dúvida, foram as precursoras. Graças a mulheres como elas temos o voto, temos educação pública e muitas das coisas que alcançámos foi devido ao movimento de mulheres que não se chamavam então movimentos feministas. Começaram a lutar pelo divórcio no início do século e só tivemos o divórcio em 2004. Foi o último país do mundo que legalizou o divórcio. Nesse sentido, o Chile estava muito atrasado, mas o romance não é passado no Chile.

Nunca diz no livro em que país se passa a história Violeta ou onde ela nasceu.

Está situada num país genérico que pode ser o Chile. É muito parecido, mas também é parecido com a Argentina, o Uruguai, poderia ser o Peru. Enfim, em algum país do sul do continente onde tivemos uma História similar.


As mulheres sabem relacionar-se. Estão mais próximas da emoção. Há que incorporá-las no poder. Não podemos continuar com este patriarcado até ao final do século!


Mas há muitas referências sobre acontecimentos históricos do Chile. É intencionalmente que não o refere o país, é um jogo com o leitor?

Não, é uma permissão literária! Se não menciono o país, tenho mais liberdade para mexer em algumas coisas. Procuro ser fiel à História e procuro mover-me numa geografia possível que conheço muito bem e que neste caso seria o Sul do Chile, do meu país. Mas poderia ser outro. Isso dá-me liberdade. Se há um terramoto num ano e a mim convém-me que seja no ano seguinte, posso alterar. Se menciono o país, não posso fazer essas alterações. Fico mais limitada.

Neste romance mostra-nos também a evolução social, a crise económica que se segue à pandemia que afeta a família de Violeta. Da crise sanitária da pandemia à crise económica e social, poderia ser um retrato de hoje? Pode fazer-se esse paralelismo?

Dá-se automaticamente. Não me proponho a passar mensagens, nem ensinar nada. Mas gosto de estudar História. Escrevi vários romances históricos. Ao estudarmos o passado, ao fazer a investigação vê-se as analogias com as coisas que se passam hoje. Pode-se comparar e ver como muitas situações são cíclicas, repetem-se. Isso é interessante do ponto de vista literário, é também algo que eu já vi na longa vida que já vivi e que a Violeta, por ter vivido 100 anos, também teve de ver como se fecham alguns ciclos.

O que há de Isabel Allende na personagem de Violeta?

Algumas das minhas experiências. Por exemplo, a personagem de Nieves, a menina que era drogada. Eu estive casada com Willie durante 28 anos. Ele tinha três filhos viciados. Os três morreram. O drama, a tragédia do vício afeta não só a vítima, mas também todos os que estão ao seu redor, sobretudo a família. Não tive que investigar para essa parte, porque a conheço intimamente. E a filha de Willie, a Jennifer, serviu-me de modelo para a personagem da Nieves.

Há situações dos amores de Violeta que eu fui retirar a experiências minhas e outras experiências da minha mãe que eu conhecia. Há muito da memória dos factos que ocorreram no meu país e na América Latina em geral. No final do romance, há a ideia de que Violeta começa a trabalhar para proteger as mulheres de violência doméstica. Isso é o que faz a minha fundação. Nem isso tive que inventar.

Faz parecer que a arte da escrita é fácil!

É como cozinhar. Há que agarrar os ingredientes e saber misturá-los. Saber cozinhá-los. Mas os ingredientes estão por aí, em toda a parte.

Neste livro retrata também a crise social que se segue à gripe espanhola. A Violeta viveu sempre de forma abastada, mas diz que, quer na pobreza quer na riqueza, há bondade e maldade. Ela acaba por ser também espectadora dessas mudanças. Acredita que hoje estamos também no precipício para uma crise económica, com a pandemia que vivemos?

Acho que a crise iria chegar de qualquer forma. A pandemia acelerou e acentuou os sintomas. Mas a crise estava a chegar. Estamos no século XXI e ainda temos as mesmas instituições e os mesmos partidos políticos que tínhamos no século XIX. Já não servem.

Os jovens já não confiam em nenhuma das instituições que existem, no sistema judicial, na polícia, na presidência, no parlamento, não confiam sequer nas religiões. Há uma perda de vocações e de membros das igrejas, porque já ninguém confia em ninguém!

Os jovens procuram um novo mundo, uma nova maneira de enfrentar o futuro. Estão muito preocupados com as alterações climáticas, com a destruição da natureza, com as desigualdades. Tudo isso que a nossa geração não viveu de forma tão intensa, vivem agora os jovens. Por isso as mudanças estão aí.

Foi diferente na pandemia de gripe espanhola?

O que se passou foi que a pandemia que começou em 1918, nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, se alastrou ao mundo mais lentamente do que a nossa pandemia, porque as comunicações não eram como são agora. As pessoas não viajavam como agora. Por isso levou um par de anos a chegar ao Sul da América Latina.

Depois da pandemia e depois da Primeira Guerra Mundial, vieram os anos loucos, os anos 1920, em que as pessoas saíram às ruas a gastar tudo o que tinham, a tentar compensar os anos terríveis da depressão da guerra e da pandemia. Depois disso veio a depressão económica dos anos 30. Caiu o mercado internacional.

Não posso prever o que vai acontecer depois desta pandemia, mas há que observar o passado para ver os sintomas das coisas que vão mudar e creio que, sem dúvida, há uma crise social e política muito grave neste momento e vai haver uma crise económica em breve.

Como vê a situação nos países da América Latina. Agravou-se muito com a situação da pandemia?

A situação da pandemia fez com que a situação da mulher seja pior agora do que antes. Há mais violência doméstica, mais violência de todas as classes contra as mulheres. Elas foram as primeiras a perder o trabalho, estão fechadas em casa, a cuidar dos filhos e a dar-lhes escolaridade, pobres, porque perderam dinheiro; e, ao mesmo tempo, muitas delas estão fechadas com um companheiro que bebe demasiado, que está frustrado e é aí que começa a violência doméstica. Serão também as últimas a conseguirem recuperar os seus empregos.

Apesar disto, quando olho para toda a América Latina, tirando a questão da pandemia estamos muito melhor do que antes. Há mais governos democráticos, há mais ação das comunidades e dos povos. Os militares estão calados.

E há estas duas forças que se opõem: por um lado, uma força de esquerda emergente e, por outro, uma força de ultradireita que está a tentar manter-se no poder. Isso cria uma tensão que é muito interessante do ponto de vista histórico e creio que dá muita esperança à América Latina. Era muito pior quando vivíamos todos debaixo de ditaduras militares.


Acabei agora um romance sobre refugiados da América Central que está a ser traduzido.


Pelo livro passam também a Guerra Mundial e a Guerra Fria. É um longo diálogo entre Violeta e Camilo. Fala muito sobre o surgimento das ditaduras militares neste país onde se passa a ação do livro. Em que medida considera importante continuar a falar sobre o perigo das ditaduras?

Interessa-me porque o vivi. No caso deste livro, é muito importante, porque muda a vida de Violeta. Ela nunca se interessou por política, pelas classes sociais ou trabalho social. Até que as circunstâncias do seu país a obrigam e a atacam pessoalmente. Quando ela mesma e a sua família é afetada, abre os olhos e olha ao seu redor. Começa a mudar. Incorpora uma ação social e política que não tinha antes.

Foi o que aconteceu a muita gente durante essa época. Houve muita gente que preferiu não ver nada, ignorar tudo e fingir que tudo estava bem até que lhes tocou. Então aí, já não podiam fingir que tudo estava bem. Interessa-me contar isso, porque em todos os meus livros, o que acontece fora é o que determina a vida das personagens. Então, os problemas sociais e políticos entram sempre nos meus livros porque movem as personagens para diferentes direções.

Neste livro vemos também a atuação dos Estados Unidos na mudança política em países da América Latina. Escreve que, a pretexto da Guerra Fria, a CIA derruba democracias e apoia ditaduras brutais.

Às vezes, de forma nefasta!

Que atuação foi essa?

Durante o tempo da chamada Guerra Fria, o mundo dividiu-se entre a área de influência da União Soviética e a área de influência dos Estados Unidos. A América Latina estava nessa parte dos Estados Unidos. E, através da CIA, os Estados Unidos intervieram em muitos países, não só na América Latina, mas também em África e noutras partes para derrubar regimes democráticos que poderiam ser de esquerda. E colocavam no seu lugar regimes repressivos de direita – geralmente, ditaduras militares, porque era mais fácil manipulá-las. Neste contexto, nos Estados Unidos não se podia admitir a ideia de que haveria outra Cuba na América Latina. A revolução cubana triunfou em 1959.

Aliás, umas das personagens do livro, um dos maridos de Violeta, o aviador Julián Bravo repete isso. Não pode haver outra Cuba. Ele trabalha em missões secretas para os Estados Unidos.

Certo. Isso justifica muitas das ações criminais que cometeram os americanos na América Latina. Terminada a Guerra Fria isso mudou. Agora, o interesse do mundo não está na América Latina, está no Médio Oriente e os Estados Unidos deixam-nos bastante em paz. Por isso, acho que as relações melhoraram. Agora, temos o problema da migração que vem da América Central, mais do que do México. Chegam à fronteira com os Estados Unidos e isso tornou-se num tema político.

Como vê a situação desses migrantes que caminham quilómetros a pé até aos Estados Unidos? Há muitas histórias que possam ser interessantes para uma escritora contar?

Cada um tem uma história trágica e uma história que deve ser contada. Conheci alguns desses casos. No inverno, tivemos uma emigrante da Guatemala. E acabei agora um romance que é sobre refugiados da América Central que está a ser traduzido.

A ideia de que todas as famílias têm segredos é muito fértil para uma escritora?

Claro que sim! Em todas as famílias há um lunático, há segredos, há vícios e coisas que existem e que não se conta, de que não se fala. Mas eu encarreguei-me de revelar todos os segredos familiares! Acho que já não sobra nenhum!

Quando escrevi "A Casa dos Espíritos" alguns membros da minha família ficaram furiosos e deixaram de me falar durante muitos anos, porque sentiram que eu tinha traído a família, tinha exposto o nome da família. Mas nem sequer sai o nome da minha família no romance. É ficção! Mas identificaram-se com alguma coisa.

Diz neste livro que "recordar é o meu vício". A memória é um lugar onde gosta de ir buscar material para escrever?

Acho que todos os escritores se nutrem das experiências pessoais da memória, sem dúvida; também da imaginação, da intuição e das vidas de outras pessoas. Escrevemos também sobre o que vemos e ouvimos. Como eu tenho uma fundação que trabalha com gente muito vulnerável, escuto as histórias mais incríveis. Conheço pessoas extraordinárias, mulheres que perderam tudo, passaram por traumas terríveis. Algumas perderam inclusivamente, os filhos e erguem-se e seguem em frente. Essas personagens, eu não invento. Estão aí. Podem servir-me de modelos para as protagonistas dos meus romances.

Escreve na sua biografia que os feitos mais significativos da sua vida não são os seus livros, mas sim o amor que tem pela família e pessoas a quem ajuda. Tem a fundação com o seu nome, que criou na sequência da morte da sua filha. Isso é também uma motivação diária de trabalho?

Sim, dá-me uma grande alegria e uma grande satisfação tudo o que se passa com a fundação. Eu sei que somos uma fundação familiar, que podemos fazer uma ajuda limitada, mas a minha nora lembra-me sempre que não temos de ver os grandes números, há que olhar caso a caso. Se podemos ajudar uma pessoa a ter uma vida melhor, salvá-la de uma situação, então já fizemos algo nesse dia. Isso dá-lhe alegria e satisfação.

O que significa para si o livro “Violeta” ter um lançamento mundial, chegar a leitores de diferentes países e línguas no mesmo dia?

É uma experiência nova. Nunca me tinha acontecido publicar um livro em simultâneo em várias línguas. Foi uma ideia da minha agente americana e vamos ver se resulta. Como neste momento estamos em pandemia, não fiz a divulgação com apresentações locais. Espero não ter de o fazer nunca mais! Faço tudo aqui, por ‘zoom’, onde estou agora. Mas levanto-me às cinco da manhã para poder fazer ‘zooms’ com todos os países que estão noutro fuso horário. De todos os modos, foi uma experiência muito interessante.

Também se levanta cedo para escrever?

Sim, mas não às cinco! Levanto-me às seis (risos). Quando estou a escrever, fico totalmente focada no livro, mas tenho de dedicar pelo menos uma hora por dia para responder aos e-mails que chegam. Tenho muitos e-mails dos leitores e respondo a todos. Respondo sempre ao primeiro correio de um leitor. Isso ocupa muito tempo. O resto é investigar, ler, escrever, corrigir, editar. Gosto de o fazer, é um trabalho maravilhoso. Passo muitas horas neste lugar, que é um sótão que tenho em casa. É muito pequeno, mas basta-me.


A situação da pandemia fez com que a situação da mulher seja pior agora do que antes. Há mais violência doméstica.


Consegue ler outros romances enquanto escreve?

Geralmente não. Quando leio um romance, sinto a voz do autor dentro da cabeça durante muito tempo. Invade-me. Influencia o que estou a escrever. Espero terminar algo e então depois faço uma maratona de leituras durante três meses.

E tem alguns escritores que gosta de ler depois de acabar de escrever um livro seu?

Não. A única coisa que faço antes de começar um livro, que começo sempre a 8 de janeiro, no dia 7 de janeiro e na semana anterior começo a ler poesia em espanhol, porque isso ajuda-me a recuperar a língua. Eu vivo em inglês e todo o meu trabalho é em inglês. Mas escrevo em espanhol. Então para recuperar o meu espanhol, recuperar a riqueza da linguagem, a cor do meu idioma leio poesia.

Há muitos portugueses em isolamento devido à pandemia. Os livros são um bom refúgio para passar o tempo?

Parece que a indústria dos livros passou muito bem com a pandemia. Todos os meus editores dizem que estão a vender muito mais do que antes. Deve ser porque as pessoas estão fechadas. Há um momento em que te cansas de ver televisão. Necessitas do recolhimento, do silêncio, de estar isolado com o livro. Não podes estar sozinho porque a casa está cheia de gente, mas se estás a ler o teu livro, de certa forma estás na tua cela.

E que poder pode ter e tem a literatura?

Não sei que poder possa ter, mas há diferenças para o jornalismo. A literatura fica por mais tempo. Nada é eterno, mas tem mais durabilidade. Se eu escrevo sobre os refugiados da América Central, quem não sabe nada sobre isso, que não se interessa pelos refugiados, pode de repente ficar surpreendido pelo livro. Fica dentro do livro e esse livro vai ficar. Uma página de jornal, facilmente desaparece. Então essa durabilidade da literatura é uma das vantagens e talvez o único poder que tem.

Tem também o poder de nos ligar. Várias pessoas que leiam o mesmo livro, têm uma ligação que agora é global. Antes não o era, mas agora é. Ligas-te a muitas línguas e a muita gente e isso também é uma forma de poder.

Faz 80 anos a 2 de agosto deste ano, completará 40 anos de escrita. Continua a sentir a mesma vontade de contar histórias e começar novos livros?

Tenho sempre vontade, a energia e a saúde. Mas não sei quanto tempo isto vai durar. As histórias nunca me vão faltar. Toda a gente tem uma história. O mundo está cheio de histórias a flutuar no ar como balões. É uma questão de as agarrar. Isso não me vai faltar. O que me pode faltar com o tempo é cérebro e energia. Tenho uma boa saúde e faço exercício. Assim, espero que possa durar um bocadinho mais.


Não posso prever o que vai acontecer depois desta pandemia, mas há que observar o passado para ver os sintomas das coisas que vão mudar. Há uma crise social e política muito grave neste momento.


Como vê a literatura que se está a escrever hoje na América Latina?

Há uma literatura nova, escrita por mulheres jovens. São muito fortes, têm umas vozes incríveis. Têm histórias impressionantes, mas de uma grande beleza literária e originalidade e uma tremenda força. Essas vozes femininas resgataram a ideia de que na América Latina só escrevem os homens. Há agora um ‘boom’ da literatura feminina.

Qual é o poder das mulheres?

As mulheres sabem relacionar-se. Estão mais próximas da emoção. Como lhes toca serem mães e criar crianças, entendem mais a Humanidade e as relações humanas. Isso é muito importante. Há certos valores femininos que foram menos valorizados em detrimento dos homens. Vivemos num patriarcado, não nos podemos esquecer.

Agora, no Chile, há um novo Presidente e acaba de aparecer a fotografia de todos os seus ministros. Há 14 mulheres e 10 homens. Todos jovens, de máscaras, vestidos assim de ‘hippies’. São alegres e jovens e com uma paridade de género. Isso significa que nas tomadas de decisão do poder, a voz feminina e os valores femininos vão ter o mesmo peso que os masculinos. Nem tudo é competição, agressão, ambição e poder. Há que colocar nessa balança o sentido feminino da inclusão, da compaixão, a diversidade, a ajuda, a igualdade. Todas essas coisas que as mulheres têm, há que incorporá-las no poder. Não podemos continuar com este patriarcado até ao final do século! Não pode ser.

Precisamos de mais mulheres na política?

Não precisa de ser só na política. Precisamos de mais mulheres nas decisões financeiras, económicas, militares, de qualquer género. Quando há uma mulher no poder, como a senhora Thatcher, por exemplo, está sozinha, tem de atuar como um homem para aí chegar. Mas quando há mais mulheres, os valores femininos são incorporados nas decisões. E não têm de se vestir e atuar como um homem para ser escutadas.

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