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E depois de Mossul?

Cristãos do Iraque entre a espada curda e a parede árabe

29 jun, 2017 - 17:50 • Filipe d'Avillez

Centenas de milhares de cristãos e de membros de outras minorias aguardam a libertação de Mossul para poder voltar para as suas casas, mas a possibilidade de um conflito entre curdos e árabes ameaça frustrar os sonhos de uma vida pacífica numa região autónoma.

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As forças armadas do Iraque anunciaram esta quinta-feira a libertação da Grande Mesquita de Al-Nuri, no centro histórico da cidade de Mossul, marcando o fim simbólico das pretensões territoriais do autoproclamado Estado Islâmico. Com a coligação contra o Estado Islâmico a conseguir grandes avanços no Iraque, a região prepara-se para a vida depois da libertação de Mossul.

No Curdistão Iraquiano estima-se que são 120 mil os cristãos que aguardam a reconstrução das suas aldeias, vilas e cidades situadas na Planície de Nínive, que fica entre o Curdistão e Mossul, para poderem regressar às suas terras ancestrais, de onde foram expulsos pelos jihadistas.

Há planos de reconstrução em marcha, com o apoio da fundação Ajuda à Igreja que Sofre, mas permanece uma grande incerteza sobre o futuro. A libertação de Mossul pode significar o fim do Estado Islâmico enquanto ameaça na região, mas não expulsa o espectro da guerra e do conflito.

A Planície de Nínive é uma das regiões que compõem as “áreas disputadas” entre o Iraque e o Curdistão. Por enquanto, as duas entidades convivem num único Estado Federal, mas caso o Curdistão avance com um referendo pela independência, marcado para Setembro, o domínio das áreas disputadas poderá ganhar contornos de conflito.

“Neste momento, no terreno, podemos ver o regime a tentar assegurar o controlo do nordeste da Planície de Nínive e os soldados curdos a tentar controlar a parte sudeste. Na prática já dividiram a região. Para nós, cristãos, é muito importante deixar claro que a planície de Nínive não pode ser dividida entre Bagdad e Erbil”, diz Metin Rhawi, representante da comunidade cristã.

Rhawi é um exemplo vivo da disparidade desta comunidade. Nasceu na Turquia, em Midyat, onde ainda existem pequenas bolsas de cristãos que sobreviveram ao genocídio de 1915, que afectou principalmente arménios, mas não só. Actualmente vive na Suécia, onde há também uma comunidade significativa de cristãos que emigraram da Turquia, da Síria e do Iraque, mas viaja frequentemente para o Médio Oriente para ver a situação dos seus correligionários no terreno.

Sonhando com a autonomia

Os cristãos desta zona são orgulhosos descendentes dos antigos assírios, uma das superpotências referidas na Bíblia. Muitos deles ainda insistem em ser reconhecidos como assírios, outros preferem o termo siríacos e outros ainda caldeus, estando estes nomes muitas vezes associados à confissão cristã a que pertencem. Todos reconhecem, contudo, que se trata de um só povo.

Metin Rhawi é actualmente o responsável pelas relações internacionais da União Siríaca Europeia. “O nosso trabalho passa sobretudo por chamar atenção para esta minoria, que é o povo indígena da região há cerca de oito mil anos. A situação para os cristãos é actualmente crucial, perderam quase tudo e muitos emigraram”, explica à Renascença.

Sem segurança são cada vez mais os que partem. Rhawi e outros acreditam que a solução passa por estabelecer na Planície de Nínive uma região autónoma onde os cristãos se possam governar, juntamente com membros de outras minorias étnicas e religiosas, com um certo grau de independência. Mas a disputa entre Bagdad e Erbil poderá ser um grande entrave a este sonho.

“Neste momento há uma grande falta de cultura democrática no Iraque. São os fortes que tomam todas as decisões e as minorias são praticamente impotentes. O que temos de fazer é dar mais poder às minorias como os yazidis, os shabaques, os turcómanos e os assírios para podermos ter uma região autónoma conjunta, com diferentes províncias.”

Idealmente esta seria uma região autónoma dentro de um Iraque federal, mas se o Curdistão declarar independência isso poderá ser inviável. “Obviamente devíamos estar mais próximos de Bagdad, mas com excelentes relações com Erbil”, diz Metin Rhawi.

Enquanto o passado recente revela mais conflitos com extremistas islâmicos que tendem a ser árabes sunitas, não há falta de histórias de perseguição às mãos dos curdos, num passado não muito distante. Vários cristãos com quem a Renascença contactou ao longo dos últimos anos mostraram-se agradecidos pelo acolhimento que receberam no Curdistão, mas dizem que não conseguem confiar inteiramente nos curdos.

Rhawi confirma esta impressão. “Temos tido experiências muito más, tanto às mãos dos árabes, sunitas ou xiitas, como dos curdos. Não sei se precisamos de carregar todos esses medos para o futuro, mas não o podemos esquecer. Devemos perdoar e tentar construir um futuro conjunto. O que importa agora é reconciliação.”

Minoria fracturada

Antes de se poder sonhar seriamente com uma região autónoma, urge garantir a união entre os próprios cristãos, algo que parece muito difícil de fazer. Neste momento existem mais de uma dúzia de partidos políticos, alguns no terreno e outros sobretudo com raízes na diáspora. Destes, cinco têm as suas próprias milícias, algumas apoiadas por Bagdad, outras apoiadas por Erbil.

Esta realidade enfraquece a comunidade, confirma Metin Rhawi, mas a situação já foi pior. “Estamos a começar a ter uma agenda comum em relação a alguns assuntos importantes, mas claro que é frustrante vermos tantas facções numa comunidade tão pequena. De dois milhões, há uma década, passámos a ser hoje perto de 400 mil, por isso sabemos que não devíamos estar tão divididos.”

Havendo o desejo de uma região autónoma, será esta uma possibilidade viável? O sueco Lars Adaktusson é um dos maiores aliados dos assírios no Parlamento Europeu e acredita que sim. “É viável e é a única opção que permite a estas pessoas voltar. No Parlamento Europeu apoiamos esta opção, dentro do contexto da constituição iraquiana.”

Adaktusson, que nestes dias acolhe em Bruxelas um encontro precisamente sobre o futuro dos cristãos no Iraque, já viajou várias vezes para o terreno, mas também tem estado em contacto com Washington. “Tenho trabalhado de perto com congressistas que também estão comprometidos com isto e existe muito apoio também.”

Mas nem todos os cristãos estão em sintonia com este projecto e curiosamente alguma da maior oposição vem dos líderes religiosos. O actual patriarca da Igreja Católica Caldeia, uma das maiores do Iraque, disse à Renascença, numa entrevista em 2011, que a ideia de uma região autónoma era uma armadilha. “Há cristãos em todo o país, criar um gueto é muito perigoso e é contra a nossa natureza e missão enquanto Igreja”, considerava Louis Sako. Mais recentemente, parece ter moderado a sua posição, dizendo que o estabelecimento de uma zona autónoma é aceitável, mas só se for por vias pacíficas.

Também o então patriarca da Igreja Melquita, conhecido pelas suas posições pró-árabes, reagiu de forma negativa perante a sugestão de criação de um estado para os cristãos, numa entrevista em 2014. “Nunca, nunca, nunca! Essa foi uma tentação nos séculos passados, mas já não. Não podemos viver separados! Temos um historial de viver em conjunto. Disse ao meu povo que não teremos o nosso estado, viveremos em todos os estados e seremos, nesses estados, sal e luz. Não podemos viver sozinhos, não temos espírito de gueto, para sermos colocados numa reserva, como se fossemos animais”. Gregório III resignou ao cargo entretanto, e o seu sucessor, escolhido a semana passada, não tem posição pública sobre o assunto.

Por fim, Inácio José III, o patriarca da Igreja Siríaca Católica adopta uma posição totalmente diferente, numa entrevista de 2016. “No Iraque já não existe nenhum lugar onde os cristãos possam viver com dignidade e liberdade se não num espaço seguro. Não se sabe como seria esse espaço, mas normalmente fala-se de uma espécie de província para cristãos e outras minorias, na Planície de Nínive. Não estamos a falar de uma zona autónoma, isso seria irrealista, mas de uma zona segura que estaria dependente de Bagdad ou do Curdistão, porque até agora ainda não sabemos qual dos dois vai controlar Nínive, ou eventualmente sob a protecção das Nações Unidas durante uma década, até encontrarmos uma forma de coexistência real entre os diferentes grupos."

Uma vez que os assírios, enquanto minoria, tendem a ser identificados principalmente pela sua religião, frequentemente assume-se que os seus representantes são os líderes religiosos, mas muitos dos activistas no terreno rejeitam esta possibilidade, dizendo que o futuro político dos cristãos cabe ao povo e não aos patriarcas e bispos.

Por enquanto, tanto uns como outros acreditam no diálogo entre o Curdistão e o Iraque, na esperança de que o conflito não chegue, devastando os sonhos das minorias de finalmente viver em paz.

“Quanto ao futuro, se vai haver um conflito armado, não sei. Até agora eles têm conversado bem, respeitam-se, mas nunca se sabe. Há dois anos que enfrentam o Estado Islâmico, o que acontecerá no futuro é difícil de prever”, conclui Metin Rhawi.

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