06 set, 2022 - 07:00 • Fábio Monteiro , Maria Costa Lopes (vídeo)
Este é o terceiro de nove capítulos do especial "Serra da Estrela, 29 mil hectares depois" sobre os incêndios que consumiram perto de 25% do Parque Natural da Serra da Estrela.
João Biscaia e Maria da Graça descarregam um trator com lenha de carvalho para a casa de uma cliente; tudo acontece bem perto da sede da junta de freguesia do Sameiro, Manteigas. Num ano normal, dir-se-ia: com verão a aproximar-se do fim, já há quem esteja a preparar-se para o outono e o inverno. Tendo em conta a catástrofe ambiental que retalhou a Serra da Estrela, todavia, a leitura a fazer é: antecipa-se escassez.
Perto de 90% da área florestal da aldeia, integrada no geoparque, ardeu em agosto. Sameiro sobreviveu ao incêndio, mas a zona circundante ficou pintada em tons de carvão. De tal modo ainda alterado com o sucedido, Miguel Ramos, o autarca local, pede desculpa, mas escusa-se a falar à Renascença. “Está à vista de todos. O que há para dizer?”
“Com o vento e o fogo, parecia o inferno. Saltava para a frente. Parecia bichos, parecia um demónio”, recorda João Biscaia. “Quando as chamas chegaram ao cimo da serra, disse: vai tudo pelo ar. Ora, dito e feito.”
Até o verde voltar a ser a cor principal da paisagem da aldeia, serão agora precisos vários anos. “Matagal? Em dois ou três anos faz-se num instante. O resto é preciso muitos anos. Coisas que arderam nuns segundos. Um pinho demora muitos anos a fazer-se”, diz João, encostado ao atrelado do trator.
Para o casal de reformados, o incêndio é um problema que está para durar. Os dois vivem de forma comedida e, maioritariamente, do campo. De modo a ter mais algum sustento, dedicam-se à agricultura, apicultura e à venda de lenha.
“A lenha é como os lobos quando agarram uma cabra: comem tudo de uma vez. À lenha vai acontecer a mesma coisa. Quem é que vai querer esta lenha? Ninguém. Se a lenha é reles, ainda mais reles ficou. Agora só os madeireiros é que vão apanhar isto”, diz o homem de 69 anos.
De forma discreta, Maria da Graça lamenta outro problema: “Ainda não temos televisão em casa, o TDT ainda não funciona.”
Quando a Renascença visita Sameiro, já passaram mais de dez dias desde que as chamas varreram a localidade. A rede telefónica foi restabelecida, quem tem contrato com uma operadora consegue ver televisão. Mas quem não quer pagar e precisa do serviço tradicional continua à espera.
No meio da desordem provocada pelas chamas, de momento, a única coisa de que João Biscaia se pode regozijar é das suas colmeias que, contra todas as expectativas, escaparam. “Fui obrigado a trazê-las cá para baixo, que lá em cima ficou tudo queimado. As abelhas queriam apanhar alguma coisa e não tinham lá nada”, conta.
Semeadas no meio da serra, o reformado chegou a dar as colmeias como perdidas depois do incêndio. Um filho que veio à aldeia para ajudar, contudo, foi à procura e descobriu que apenas três haviam ardido. “Aquilo foi um milagre”, nota.
Segundo o casal, os bombeiros fizeram tudo o que podiam. “Não tiveram culpa. Quem andava a comandá-los é que teve culpa.” Quem em concreto? A Autoridade Nacional de Emergência e Proteção Civil (ANEPC) e o Instituto da Conversação da Natureza e das Florestas (ICNF), entidade responsável pela gestão do Parque Natural da Serra da Estrela.
“Antigamente, [os bombeiros] trabalhavam com mais segurança. Botava-se contrafogos, segurava-se no sítio que era devido. Agora a malta [do parque] não deixa botar fogos a ninguém. E por isso é que isto adiantou mais”, atira João.
O idoso queixa-se ainda de descoordenação no ataque inicial ao incêndio na Serra da Estrela - erro já admitido pelo Governo e ANEPC. Sérgio Costa, autarca da Guarda, afirmou-o publicamente mais do que uma vez, ainda o incêndio estava ativo.
As proporções da catástrofe têm, por isso, uma explicação, mesmo que parcial. João sentencia: “Foi mais relaxe que outra coisa.”