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50 anos da Revolução

Do trabalho infantil à universidade: o que mudou na vida de três gerações

24 abr, 2024 - 19:47 • Ana Catarina André (reportagem) , Diogo Camilo (gráficos)

A avó tem a terceira classe, começou a trabalhar no campo aos 5/6 anos e, apesar de morar a poucas dezenas de quilómetros da costa, só viu o mar pela primeira vez na adolescência. A neta concluiu uma licenciatura, trabalha numa empresa que gere fundos de capital de risco e tem como objetivo “ser independente”.

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Há 50 anos, quando a 25 de abril de 1974 Portugal transitava de um regime ditatorial para uma democracia, Natália Ferreira, então uma jovem de 25 anos, “mal sabia ler e escrever”. Como a maioria dos portugueses da sua idade, tinha deixado de ir à escola. “Já era uma mulher, quando saí. Tinha 13 ou 14 anos e andar lá, ou não, era a mesma coisa”, recorda, contando que “mal” concluiu a terceira classe. Quando a revolução chegou, estava já casada. Vivia com as duas filhas e o marido numa pequena aldeia do concelho de Alenquer, no distrito de Lisboa. Não tinham água, nem luz em casa. Era a agricultura que lhes dava sustento.

Meio século depois de Abril, Joana Isidoro, neta de Natália Ferreira, tem uma idade semelhante à que a avó tinha em 1974, mas uma vida completamente diferente. É licenciada. Estudou Finanças e Contabilidade, no ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa, e, aos 26 anos, trabalha numa empresa que gere fundos de capital de risco. É solteira, não tem filhos e mora com os tios, nos subúrbios de Lisboa – ainda não conseguiu comprar casa.

Em cinquenta anos de democracia, a vida dos portugueses mudou profundamente, tal como sucedeu com a família de Natália Ferreira. De acordo com dados do INE (Instituto Nacional de Estatística), se em 1970 uma em cada quatro pessoas era analfabeta, ou seja 25% da população, em 2021, a taxa de analfabetismo diminuiu para 3%. Noutras áreas como a família e os filhos, a transformação também foi notória. A taxa de mortalidade infantil diminuiu quase 15 vezes desde 1975, e o número de médicos por 100 mil habitantes quase quintuplicou, passando de 122 para 578 por cada mil pessoas. A idade com que as mulheres são mães, pela primeira vez, também se alterou: em 1975, a idade com que se tinha o primeiro filho estava nos 24 anos, em 2022 passou para os 31 anos.

Na educação, não se tratou apenas de dotar os portugueses de uma escolaridade básica. De acordo com os dados, em 1975, apenas 8,1% da população tinha concluído o ensino secundário. Em 2022, esse número aumentou para 88%. O acesso ao ensino superior também se tornou mais democrático: entre 1978, data a partir do qual existem dados disponíveis, e 2023, passou a haver cinco vezes mais alunos no ensino superior.

Uma transformação visível também na família de Natália Ferreira, que, apesar de ter apenas a terceira classe, viu a sua descendência progredir nos estudos. Nas décadas seguintes ao 25 de Abril, Luísa Isidoro, a sua filha mais nova, concluiu o 6º ano de escolaridade, e anos mais tarde, a neta, Joana Isidoro, seria a segunda pessoa da família a frequentar a universidade.

Na vida familiar propriamente dita, a transformação também foi gradual. Quando Luísa Isidoro chegou à faixa etária dos 20 anos, a mesma que a mãe tinha na Revolução, já tinha dois filhos. Estava casada desde os 18 anos, mas, ao contrário da mãe, possuía carta de condução. “Isso permitiu-me ser independente para pegar no carro e sair da aldeia”, lembra, acrescentando que foi graças a esta ferramenta que arranjou emprego no lar de idosos, onde permanece até hoje. Antes, trabalhou na apanha da fruta e nas limpezas. Nunca ganhou muito mais do que o salário mínimo.

A infância no meio do gado e a primeira televisão

Um dos maiores contrastes entre as gerações da família de Natália Ferreira reside provavelmente na infância. Em 1949, quando Natália Ferreira nasceu, era comum ter-se filhos em casa. Foi assim com ela e com os cinco irmãos, cujos partos foram todos feitos no domicílio. Dados mais tardios, indicam que antes do 25 de Abril, em 1970, apenas quatro em cada dez nascimentos (38%) ocorria em estabelecimentos de saúde.

O acesso a cuidados de saúde era diminuto, fator que provavelmente explica que, com apenas 3 anos, Natália tenha ficado órfã – a mãe morreu no parto, juntamente com o bebé a que ia dar à luz. A menina foi, então, criada pelo pai, pela madrasta e pelos irmãos mais velhos. “Tive uma vida em sofrimentos”, sublinha, hoje aos 74 anos.

Na época, a família vivia da agricultura, e aos 5/6 anos Natália Ferreira já andava na fazenda a apanhar ervas para os animais. Chegou a dormir no meio do gado. “Às vezes, tinha de ir para a frente do gado. Tinha medo”, recorda, contando que puxava “as vacas com uma cordinha para seguirem a direito pelo terreno, enquanto o pai seguia atrás com o arado”.

“Um dia, fui semear milho e, em vez de ir deitando, na terra, um ou dois de cada vez, ia pondo uma mão cheia. Quando o meu pai viu, bateu-me. Tive de fazer tudo de novo”, recorda.

Apesar de ter nascido no concelho de Torres Vedras, conhecido também pelas suas praias, e de aí ter crescido até se casar, Natália Ferreira só viu o mar pela primeira vez na adolescência. “Devia ter uns 15 ou 16 anos”, lembra, recordando também como foram os primeiros tempos em que passou a haver, na sua aldeia, uma televisão que era partilhada por todos os moradores. “Enchia-se uma sala inteira para ver a tourada e os ranchos. Era tão bonito.”

Anos mais tarde, já casada – as primas tinham fugido para se juntarem aos companheiros, mas Natália fez questão de fazer tudo “como deve ser” –, teve as duas filhas no hospital. “Nunca fui ao médico durante a gravidez”, diz, contando que a filha mais velha emigraria para o Luxemburgo onde permanece até hoje.

Os anos que o marido passou, ainda solteiro, na Guerra do Ultramar acabariam também por marcar a família. “Traumatizou-o muito. Levou com ele muitos amigos que já não voltaram. Outros ficaram sem a perna ou sem o braço”, recorda a filha, Luísa Isidoro, contando que, durante algum tempo, o pai procurou no álcool um refúgio para esquecer os tempos passados na Guiné.

A Liberdade: “As pessoas passaram a trabalhar das oito da manhã às cinco da tarde. Foi uma coisa maravilhosa”

O “dia inicial inteiro e limpo”, como lhe chamou Sophia de Mello Breyner, é uma memória pouco nítida para Natália Ferreira. Meio século depois, não se lembra com precisão do que fez ou ouviu a 25 de abril de 1974. Só começou a perceber que alguma coisa tinha mudado na vida do País, quando de repente o quotidiano mudou. “As pessoas passaram a trabalhar das oito da manhã às cinco da tarde. Foi uma coisa maravilhosa. Antes, trabalhavam de manhã à noite. Nós [as mulheres] tínhamos de levar aos pais e aos irmãos, na fazendo, o almoço, às dez, e o jantar, às duas da tarde”.

O dia em que votou pela primeira vez, a 25 de abril de 1975, esse, não esquece. “Fomos todos: homens e mulheres. Foi uma alegria”, conta, sorridente. Um gesto que sabe ter tido profundo impacto na vida das filhas e dos netos, em particular nas oportunidades a que Joana teve acesso, a segunda da família a concluir uma licenciatura. “A Joana fez-se uma doutora. Sabe muitas coisas e ajuda-me muito”. E dá um exemplo: “Antes, eu tinha de ir a Alenquer, para tratar de coisas das finanças. Ela não perde tempo. Faz em casa [no computador].”

As mudanças sociais e políticas tiveram também impacto nas aspirações dos jovens, sobretudo das mulheres. Ao contrário da avó que “tinha como objetivo de vida casar-se e ter filhos”, Joana Isidoro sonha com autonomia. “Quero ser completamente independente do ponto de vista financeiro, para fazer face às minhas obrigações. Também me proponho constituir família, mas vejo isso num futuro a 10 anos”, considera a jovem contabilista, frisando também a importância da defesa dos valores democráticos. “É fundamental que a minha geração não dê por garantido os direitos conquistados no 25 de Abril. Devemos ter muito presentes princípios como a igualdade, o papel da mulher na sociedade e a liberdade de expressão.”

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